sexta-feira, 24 de março de 2023

Angola | A Vitória da Humanidade no Triângulo do Tumpo – Artur Queiroz

Artur Queiroz*, Luanda

No dia 23 de Março de 1988, Angola, África e o Mundo triunfaram sobre os racistas de Pretória. O mês começou mal para os invasores. Intensas chuvas com vento “arrasa capim” inundaram as chanas do Cuando Cubango. As tropas do apartheid e o seu biombo UNITA prepararam nessa altura e com essas condições atmosféricas o assalto final ao Triângulo do Tumpo onde as FAPLA se batiam heroicamente contra os invasores. 

Aos primeiros minutos do dia 1 de Março, Mike Muller, comandante do 61º Batalhão Mecanizado sul-africano pediu o adiamento do ataque porque considerou as condições “muito adversas”. O seu superior, coronel McLoughlin, aceitou. Às 7h30 a artilharia das FAPLA atacou a posição dos tanques sul-africanos. Mike Muller recuou para posições mais seguras. Às oito da manhã desse primeiro dia de Março, com o céu carregado de nuvens, quatro obuses de “BM21” das FAPLA atingiram um camião de apoio “61 Koppie”. A desorientação instalou-se entre o inimigo. Os que integravam o biombo da UNITA fugiam espavoridos.

Às 11h25 do dia 1de Março de 1988, os “MIG” da Força Aérea Nacional aproveitaram uma aberta no tecto de nuvens baixas e atacaram os invasores. Alguns minutos depois, os mísseis “Stinger”, fornecidos pelos Estados Unidos da América à UNITA, entraram em acção e Mike Muller avançou com os tanques em direcção ao Triângulo do Tumpo. Este relato está detalhado no livro “War in Angola – The Final South Africa Phase” do especialista sul-africano em assuntos de Defesa, Helmoed Roemer Heitman.

Às 13h55 do dia 1 de Março, a força de Mike Muller estava a pouco mais de dois quilómetros do Triângulo do Tumpo. Os invasores já viam a ponte sobre o rio Cuito e as árvores gigantes à entrada da aldeia de Samaria. Um veículo sapador sul-africano accionou várias minas. A reacção das FAPLA foi contundente. Dispararam com os morteiros de 120 milímetros, os canhões “D30” e os “BM21”. Um inferno de fogo e metralha envolveu os invasores e a tropa de Jonas Savimbi. Debandada geral.

Mike Muller respondeu com morteiros de 81 milímetros. Às 14h22, um super tanque “Oliphant” detonou uma mina não convencional. As FAPLA dispararam de frente e do flanco esquerdo. Os sul-africanos e as unidades da UNITA estavam num campo de minas não convencionais criado pela engenharia angolana. Mais três tanques “Oliphant” detonaram minas. Um ficou imobilizado porque sofreu danos graves na esteira. Mike Muller entrou em desespero e recuou. 

Nessa ocasião, a tropa de Jonas Savimbi já tinha desaparecido. Para “abrir caminho”, a artilharia dos invasores disparou 500 obuses contra as posições das FAPLA. No auge da batalha, o próprio tanque “Ratel” do comandante Mike Muller foi atingido numa roda. Uma antena foi arrancada pelo fogo das FAPLA. 

O tanque de outro oficial sul-africano, Tim Rudman, também ficou debaixo de fogo. Um obus de morteiro de 120 milímetros explodiu numa árvore, por cima da sua cabeça. Por sorte, instantes antes Rudman tinha entrado no tanque e baixado a escotilha. Um “Oliphant”, que avançava com soldados da UNITA sentados na parte de trás, à boleia, foi atingido e o canhão arrancado da torre. Os homens de Savimbi morreram.

Recuo Organizado

Segundo Heitman, a situação era “muito grave”. Mas ia piorar para o lado dos racistas sul-africanos. Uma equipa de reconhecimento dos invasores informou que os tanques das FAPLA foram abastecidos de combustível e munições na aldeia de Samaria e avançavam para o Triângulo do Tumpo. 

A população de Samaria nunca abandonou a sua terra e teve um papel importante nos combates no Tumpo e na Batalha do Cuito Cuanavale. As Forças Armadas Angolanas (FAA) têm para sempre a gente Samaria entre aqueles a quem agradecem a ajuda.

O coronel McLoughlin ordenou ao 32º Batalhão que retirasse ordenadamente e aguardasse novas ordens. Mike Muller estava a enfrentar graves problemas mecânicos nos seus tanques e ordenou a retirada para longe do teatro de operações. Mas um outro “Ratel” foi atingido por uma salva de 23 milímetros. Às 14h50, Mike Muller pediu nova retirada “para fazer uma reavaliação”. Menos de uma hora depois Muller informou o coronel McLoughlin que só já tinha cinco tanques operacionais.

O coronel McLoughlin contactou de imediato os generais Liebenberg e Meyer. Fez o relato do desastre. A tropa da UNITA tinha desaparecido. Por isso o criminoso de guerra Abílio Camalata Numa hoje diz que a Batalha do Cuito Cuanavale nunca existiu. Ele fugiu muito antes dos combates.  

A artilharia das FAPLA atacava com muita força. O comando sul-africano ordenou então a retirada de Mike Muller, que comandava a força principal. A derrota era evidente. “Mike Muller resumiu concisamente o resultado: o inimigo é forte e astuto. Apesar de não terem uma força poderosa na cabeça-de-ponte, as FAPLA possuíam um forte dispositivo de artilharia que fez a maior parte da luta. Planearam e executaram a sua defesa, seguramente de forma muito inteligente”, diz Heitman no seu livro. 

Às 17h00 do dia 1 de Março de 1988 o coronel McLoughlin desistiu do ataque ao Triângulo do Tumpo e Mike Muller regressou ao ponto de partida.

Operação Hooper

 No dia 2 de Março os invasores estavam a digerir a derrota. O brigadeiro Smith, o coronel McLoughlin e outros oficiais sul-africanos estavam no posto de comando e discutiam as operações para o futuro. O brigadeiro e o coronel decidiram voar para a base do Rundo, na Namíbia ocupada. Regressaram no dia seguinte e traziam ordens de retirar a Bateria Quebeque. As baterias “Romeo” e “Sierra” continuavam no teatro de operações, mas só atacavam de noite. De dia ficavam escondidas junto à nascente do rio Chambinga. 

No dia seguinte chegou à nascente do Chambinga a 82ª Brigada para render o pessoal. O coronel McLoughlin saiu de cena e entregou o comando táctico ao coronel Fouché. O derrotado passou a pasta a um perdido. Mike Muller teve o mesmo destino: Voltou para casa derrotado. 

No dia 6 de Março o 4º Batalhão de Infantaria da África do Sul retirou. Os invasores foram mais uma vez escorraçados e terminou a Operação Hooper. O apartheid continuava atolado, desta vez nos pantanais do Triângulo do Tumpo. 

Nas guerras a natureza é também adversário ou aliado. “Hooper” é um pássaro dos pântanos. Naquele dia o pássaro não emprestou as suas asas aos invasores para voarem do Triângulo do Tumpo até à vila do Cuito Cuanavale. Estava do lado da Humanidade e da Justiça.

Pilotos Ousados

No dia 9 de Março de 1988, ao fim da tarde, um MIG 23 da Força Aérea Nacional bombardeou uma unidade dos invasores na nascente do rio Lomba. O comando sul-africano ficou “muito preocupado”, diz Heitman, pelo ataque inesperado, mas sobretudo “porque foi um ataque muito audacioso”. Os militares angolanos batiam onde mais doía e estava traçado o início dos graves problemas que os racistas de Pretória tinham de enfrentar no Triângulo do Tumpo. Já tinham os pés na lama, mas haviam de ficar enterrados até ao pescoço.

“O general Meyer começou a ficar impaciente porque o próximo ataque contra o Triângulo do Tumpo podia nem ter lugar. A 9 de Março, manifestou a sua preocupação, ao enviar uma mensagem de desagrado aos homens no terreno, devido às demoras, tendo enfatizado que a situação só beneficiava as FAPLA, que podiam aproveitar o tempo para melhorar a sua defesa. Também estava preocupado com a situação internacional, que podia obrigá-los a retirarem-se do teatro das acções combativas antes que a missão tivesse sido levada a cabo” escreveu o especialista Heitman no seu livro.

Carne para Canhão

O coronel Fouché decidiu fazer um ataque em força entre 20 e 22 de Março. Mas, na sua opinião, os oficiais e soldados “brancos” tinham de ficar de fora. Apenas entravam em combate, aqueles que fossem indispensáveis. A lógica do chefe dos invasores era a seguinte: “É preciso evitar ao máximo que jovens boers continuem a morrer por uma causa nebulosa e pouco convincente”, escreve Heitman no seu livro.

Fouché apresentou o seu plano aos oficiais da UNITA que, como sempre, deram o seu acordo. Estava garantida a carne de cidadãos angolanos para os canhões do regime racista de Pretória. Assim, inutilmente e sem glória, se perderam muitas vidas humanas, que nunca seriam choradas na África do Sul do apartheid.

No ataque ao Triângulo do Tumpo também participaram o Batalhão Búfalo, constituído por angolanos do biombo, e mais dois esquadrões de tanques do 61º Batalhão Mecanizado. Fouché e os oficiais da UNITA fizeram “um plano provisório” que depois entregaram ao brigadeiro Smith, para aprovação superior. Mas os invasores e a tropa de Savimbi tinham uma surpresa reservada. As FAPLA começam a pressionar a retaguarda das tropas inimigas, desferindo golpes mortíferos de aviação. Dois MIG atacaram o Regimento Mooi Rivier na noite de 10 de Março.

No dia seguinte, o posto de comando da 82ª Brigada sul-africana avançou para o Cuito e o 61º Batalhão Mecanizado foi para a “área de desmobilização”. O Estado-Maior da 82ª Brigada separou-se do Estado-Maior da 20ª Brigada e no dia seguinte a 20ª Brigada retirou-se em direcção ao Rundo, no então Sudoeste Africano, hoje Namíbia. 

A 13 de Março foi declarado o fim oficial da Operação Hooper. Estava na hora de “embalar” tudo e regressar a casa. O Cuando Cubango já não era um “campo de treinos” para os cadetes boers das escolas militares.

Operação Packer

O alto comando sul-africano ordenou então o início da “Operação Packer”. Foi o último folego dos invasores. A 82ª Brigada, cujas tropas fizeram treinos em Bloemfontein entre 10 e 26 de Fevereiro, recebeu ordens para entrar em acção. A chuva, novamente ela, atrasou o seu avanço para Angola. Mas agora estava no Cuando Cubango, pronta para atacar o Triângulo do Tumpo e a partir daí tomar a vila do Cuito Cuanavale e a sua base aérea. 

O coronel Fouché assumiu pessoalmente o comando dos ataques ao Triângulo do Tumpo. O derrotado Mike Muller foi substituído por um tanquista experiente, o comandante Gerhard louw, e Boet Schoeman foi nomeado comandante adjunto. Mas o Triângulo do Tumpo era intransponível. Morteiros e canhões anti-tanque estavam prontos para rechaçar qualquer força que tentasse penetrar. 

Nas posições principais das FAPLA estavam cinco “GRAD”. Por trás das forças de Infantaria estavam preparados dez tanques, escondidos nos refúgios. Os engenheiros angolanos fizeram campos de minas, algumas não convencionais, em todas as entradas possíveis. O rio Tumpo e os seus afluentes eram obstáculos naturais intransponíveis num mês de Março particularmente quente e chuvoso. A artilharia e infantaria angolanas tinham muito poder. As forças defensoras das FAPLA tornaram-se invencíveis.

Dia da Decisão

Os invasores sul-africanos colocaram no campo de batalha os artilheiros do Regimento da Universidade de Potchefstroom, a elite da sua artilharia. O derradeiro ataque ao Triângulo do Tumpo recebeu o nome de Operação Packer. O brigadeiro Smith marcou o ataque para 23 de Março. O coronel Fouché pediu que a data fosse adiada para o dia 25, porque estava a enfrentar “grandes dificuldades logísticas”. Os MIG da Força Aérea Nacional não descansavam e atacavam com frequência as colunas de reabastecimento. O brigadeiro recusou o adiamento da acção.

No dia 18 de Março os sul-africanos perderam duas pontes móveis de engenharia, atingidas por “fogo amigo” dos canhões “G5”. A desorientação começou a apoderar-se dos invasores. E foi nesse estado que partiram para a batalha final.

Os racistas de Pretória atacaram com tudo: A 82ª Brigada, com mais dois esquadrões de tanques do Regimento Presidente Steyn, um esquadrão de carros blindados do Regimento Mooi Rivier, dois batalhões de infantaria motorizada do Regimento de La Rey e do Regimento Groot Karoo, artilharia do Regimento da Universidade de Potchefstroom com canhões “G5” e “G2”, 44ª Brigada de Paraquedistas e a Defesa Anti-Aérea. A UNITA entrou com os 3º, 4º e 5º batalhões regulares, o 66º e 75º batalhões semi-regulares, mais os “Stinger” oferecidos pelos EUA, o amado país do Presidente João Lourenço.

Os “Mirage” da força aérea sul-africana começaram a atacar no dia 19 de Março. Durante o ataque um “Mirage”, pilotado pelo major Willie van Coppenhagen, foi atingido e despenhou-se na área do Cavango. A 22 de Março a 82ª Brigada avançou para o Triângulo do Tumpo. A infantaria da UNITA ia atrás. Abílio Camalata Numa fugiu para uma posição a 80 quilómetros! Às 22h45, o coronel Fouché moveu o comando para o planalto norte do rio Chambinga e chegou à uma e meia da manhã de 23 de Março. Estavam à sua espera os generais Liebenberg e Meyer e os coronéis Deon Ferreira e Neil. 

Às quatro da manhã do dia 23 de Março de 1988 a força de ataque atingiu a “área avançada de concentração”.

Resposta Fulminante

As forças armadas angolanas responderam ao ataque do inimigo às sete da manhã, a norte da nascente do rio Dala. Dez minutos depois desta acção, entraram em acção os artilheiros do Regimento da Universidade de Potchefstroom, que bombardearam o Triângulo do Tumpo. 

Às oito da manhã, as FAPLA responderam com o flagelamento à força principal de ataque dos invasores. Às 8h35 um tanque “Oliphant”, no flanco direito da linha de ataque, accionou uma mina não convencional feita com uma bomba da aviação! Ficou fora de combate. 

Entre as 11h30 e as 11h50 os “G5” dispararam contra o posto de comando avançado das FAPLA em Nancova. Um aguaceiro intenso obrigou a parar o fogo. O comandante Louw limpou com um “plofadder” um campo de minas. Avançou em direcção ao Triângulo do Tumpo com dois esquadrões de tanques que levavam à cabeça um draga-minas. 

As FAPLA reagiram em força e às 12h45 Louw retirou. O 5º batalhão regular da UNITA sofreu severas baixas e os sobreviventes entraram em debandada. Louw tentou avançar de novo, mas foi travado por uma barragem de fogo das FAPLA. A infantaria da UNITA que ainda não tinha fugido, foi desbaratada. 

Às 13h46 os “Oliphant” entram num campo de minas. Dois ficaram destruídos. Louw tentou atacar de novo, mas mais uma vez foi travado. Às 13h48 Louw informou o comando que os tanques estavam sem combustível. Andaram às voltas para evitar os campos de minas o que levou a um gasto anormal de combustível.

Contributo dos Engenheiros

O excelente trabalho realizado pelos engenheiros das FAPLA na criação de obstáculos contra a infantaria mecanizada e a técnica blindada do inimigo atingiu o seu ponto culminante: Os super tanques “Oliphant” estavam confinados aos campos de minas, consumindo combustível, enquanto procuravam uma saída, no labirinto, totalmente à mercê da artilharia e da aviação angolana. 

Louw viu vários “Oliphant” atingidos. Deu ordens para que todos fossem retirados. Mas apesar dos esforços, três tanques foram abandonados. Eu e o repórter Paulino Damião “50” fomos visitá-los e fotografá-los no cemitério onde ainda se encontram. As FAPLA tinham ali os seus troféus e a prova de que tinham destroçado o regime de apartheid. 

O general Meyer enviou um telex ordenando que o Coronel Fouché se assegurasse que os três “Oliphant” abandonados eram destruídos. Mas isto já não foi possível. Os invasores, derrotados, retiraram para Mavinga, vergados ao peso da derrota. Até final de Março, todas as unidades invasoras abandonaram Angola. 

O regime de apartheid ficou enterrado no Triângulo do Tumpo. A Humanidade deve aos angolanos a libertação de Mandela, a instauração da democracia na África do Sul e a Independência da Namíbia. Março de 1988 foi o culminar do ano que mudou a face do continente africano. Por isso hoje, dia 23 de Março, é o Dia da Libertação da África Austral. Dedico este trabalho à memória do General José Domingues (Ngueto) e a todos os Heróis Nacionais que se bateram contra os invasores estrangeiros no Cuando Cubango e na Batalha do Cuito Cuanavale. Ao General Fernando Amândio Mateus (Nando Cuito) e à direcção do Fórum dos Combatentes da Batalha do Cuito Cuanavale (FOCOBACC) os meus agradecimentos pela colaboração.

*Jornalista

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