sábado, 4 de março de 2023

EUROPA: A GUERRA SUJA E O SILÊNCIO DOS INTELECTUAIS

Diante do alarmante avanço do fascismo e da naturalização de conflitos sem fim, o mutismo de quem deveria denunciar a mentira e a falsificação dos valores. Autodemitidos de seu papel social, assistem apáticos à escalada imperial dos EUA

Boaventura de Sousa Santos* | Outras Palavras  

Cada povo andou pelas ruas da Europa fora
com uma pequena tocha na mão; e agora, eis o incêndio.
(Jean Jaurès, 25 de julho de 1914, seis dias antes de ser
assassinado por um fanático militarista)

Os intelectuais não têm o monopólio da cultura, dos valores ou da verdade, e muito menos o monopólio do que se deva entender por qualquer desses “domínios do espírito”, como dantes se dizia. Mas também não podem demitir-se de denunciar o que, em seu entender, considerem ser destrutivo da cultura, dos valores e da verdade, sobretudo quando essa destruição ocorre supostamente em nome da cultura, dos valores e da verdade. Os intelectuais não podem impedir-se de saudar o sol antes que o dia nasça, mas também não podem deixar de avisar que muitas nuvens podem toldar o céu antes que a noite caia e impedir que se goze a claridade do dia.

Assistimos na Europa à (re)emergência alarmante de duas realidades destrutivas dos “domínios do espírito”: a destruição da democracia, com o crescimento das forças políticas de extrema-direita; e a destruição da paz, com a naturalização da guerra. Qualquer destas destruições é legitimada pelos valores que visa destruir: a apologia do fascismo é feita em nome da democracia; a apologia da guerra, em nome da paz. Tudo isto é possível porque a iniciativa política e a presença mediática estão a ser entregues às forças conservadoras de direita ou de extrema-direita. As medidas de proteção social para que a população sinta no concreto (no orçamento familiar e na convivência social) que a democracia é melhor que a ditadura são cada vez mais escassas devido aos custos da guerra na Ucrânia e ao fato de que as sanções econômicas contra o inimigo (neste momento 14.081 sanções), que supostamente deviam causar dano ao inimigo, estão, de fato, causando dano aos cidadãos dos países europeus que se aliaram aos EUA. De outro modo, como se poderia explicar que, segundo os dados FMI, a economia russa crescerá mais que a economia europeia?

A destruição da paz e da democracia dá-se em geral pela constituição desigual e paralela de dois círculos de liberdades autorizadas, isto é, de liberdades de expressão e de ação acolhidas pelo poder midiático e político. O círculo das liberdades autorizadas para posições progressistas que defendem a paz e a democracia diminui cada vez mais, enquanto o círculo das liberdades autorizadas para posições conservadoras que fazem a apologia da guerra e da polarização fascista não cessa de crescer. Os comentadores progressistas estão cada vez mais ausentes da grande mídia, enquanto os conservadores debitam semanalmente páginas inteiras de mediocridade estarrecedora.

Vejamos alguns dos principais sintomas deste vasto processo em curso.

1. A guerra de informação sobre o conflito entre a Rússia e a Ucrânia apoderou-se de tal maneira da opinião publicada que até comentadores com algum bom senso conservador se submetem a ela com uma subserviência repugnante. Um exemplo entre muitos outros dos media corporativos europeus: no comentário semanal de um canal de televisão português (SIC, 29 de janeiro de 2023), um comentador muito conhecido, em geral pessoa de bom senso dentro do campo conservador, afirmou mais ou menos isto: “a Ucrânia tem de ganhar a guerra porque, se não ganhar, a Rússia invadirá outros países da Europa”. Mais ou menos o mesmo que os telespectadores norte-americanos ouvem todos os dias de Rachel Maddow no canal de televisão MSNBC. De onde vem este absurdo senão do consumo excessivo de desinformação? Ter-se-ão esquecido que a Rússia pós-soviética quis integrar a Otan e a UE e foi rejeitada, e que a expansão da Otan nas fronteiras da Rússia, contra o que foi prometido a Gorbachov, pode constituir uma legítima preocupação defensiva por parte da Rússia, ainda que seja ilegal a invasão da Ucrânia, como eu fiz questão de condenar desde a primeira hora? Não saberão que foram os EUA e o Reino Unido que boicotaram as primeiras negociações de paz pouco depois da guerra ter começado? E se, por hipótese, Zelensky quisesse abrir negociações com Putin, acham que ele seria apenas travado pela extrema-direita ucraniana? Os EUA ou a Inglaterra permitiriam negociações? Não terão os comentadores pensado por um momento que uma potência nuclear, confrontada com a eventualidade de derrota na guerra convencional, pode recorrer a armas nucleares, e que isso pode causar uma catástrofe nuclear? E não se darão conta de que na guerra da Ucrânia se exploram dois nacionalismos (o ucraniano e o russo) para submeter a Europa à total dependência dos EUA e travar a expansão da China, o país com quem os EUA estão verdadeiramente em guerra? Que a Ucrânia é hoje a prefiguração do que será Taiwan amanhã? Curiosamente, nesta vertigem ventriloquista de propaganda nunca se dão detalhes sobre o que significa a derrota da Rússia. Levar à destituição de Putin? A balcanização da Rússia?

2. De modo sub-reptício, a ideologia anticomunista que dominou o mundo ocidental até à década de 1990 está a ser reciclada para fomentar até à histeria o ódio antirrusso, mesmo sendo sabido que Putin é um líder autocrático, amigo da direita e da extrema-direita europeias. Proíbem-se artistas, músicos e desportistas russos, eliminam-se cursos sobre a cultura e literatura russa, tão europeias quanto a francesa. Na primeira reunião internacional do P.E.N. club depois da Primeira Guerra Mundial, realizada em maio de 1923, foi proibida a participação de escritores alemães, como parte da estratégia de humilhação da Alemanha no Tratado de Versalhes de 1919. A única voz discordante foi a de Romain Rolland, Prêmio Nobel da Literatura em 1915. Ele, que tanto escrevera contra a guerra, e especificamente contra os crimes de guerra dos alemães, teve a coragem de afirmar, “em nome do universalismo intelectual”: “não submeto o meu pensamento às flutuações tirânicas e dementes da política”. 

3. A democracia está a ser tão esvaziada de conteúdo que pode ser defendida instrumentalmente pelos que se servem dela para a destruir, enquanto os que servem a democracia para a fortalecer contra o fascismo são considerados esquerdistas radicais. No plano internacional, foi unânime o coro ocidental para celebrar os acontecimentos da praça Maidan de Kiev em 2014, onde afinal a guerra de hoje começou. Apesar de as bandeiras de organizações nazis estarem bem visíveis nos protestos, apesar de a fúria popular se dirigir contra um presidente, Victor Yanukovych, democraticamente eleito, apesar de as escutas telefônicas terem revelado que a neoconservadora dos EUA, Victoria Nuland, indicara os nomes de quem assumiria o poder em caso de vitória, incluindo o de uma cidadã norte-americana, Natalie Jaresko, que viria a ser nomeada nova Ministra das Finanças… da Ucrânia, apesar de tudo isto, estes acontecimentos, que foram um golpe bem orquestrado para afastar um presidente pró-russo e transformar a Ucrânia num protetorado norte-americano, foram celebrados em todo o Ocidente como uma vibrante vitória da democracia. E nada disto foi sequer tão absurdo quanto o fato de um deputado da oposição venezuelana, Juan Guaidó, se ter autoproclamado presidente interino da Venezuela numa praça de Caracas em 2019, e isso ter bastado para os EUA e muitos países da UE (incluindo Portugal) o terem reconhecido como tal. Em dezembro de 2022, foi a própria oposição venezuelana a pôr termo a esta farsa. 

4. A dualidade de critérios para julgar o que se passa no mundo assume proporções aberrantes e é exercida quase automaticamente para fortalecer os apologistas da guerra, estigmatizar os partidos de esquerda e normalizar os fascistas. Os exemplos são tantos que custa selecioná-los. Dou alguns exemplos. A nível nacional e internacional. Em Portugal, o comportamento desordeiro e insultuoso dos deputados do partido de extrema-direita, Chega, no parlamento é muito semelhante ao comportamento dos deputados do partido Nazi no Reichstag desde a sua entrada no parlamento alemão nos primeiros anos da década de 1920. Houve tentativas para os travar, mas a iniciativa política pertencia-lhes e as condições econômicas favoreciam-nos. Em maio de 1933 já promoviam a primeira queima de livros em Berlim. Até quando esperarão os portugueses? Por outro lado, também em Portugal, está em curso um processo para derrubar o governo do Partido Socialista (PS) que ganhou as últimas eleições com maioria absoluta. Seguindo uma orientação da direita global muito apadrinhada pelas instituições de contra-insurgência dos EUA, os governos de esquerda que não puderem ser derrubados por golpes brandos devem ser desgastados por acusações de corrupção, obrigando-os a lidar com questões de governabilidade e de urgência para não poderem governar estrategicamente. Em Portugal, aparentemente, só há corrupção no Partido Socialista que ganhou as últimas eleições com maioria absoluta. Para a mídia conservadora hegemônica, todos os ministros do governo socialista, até prova em contrário, são corruptos. Não é difícil encontrar em outros países exemplos semelhantes.

No plano internacional refiro dois exemplos gritantes. É hoje praticamente assente que a explosão dos gasodutos do Nordstream, em setembro de 2022, foi obra dos EUA (como, aliás, tinha sido prometido por Joe Biden), com a eventual colaboração de aliados. Um caso destes deveria ser prontamente investigado por uma comissão internacional independente. O que parece evidente é que a parte prejudicada, a Rússia, não tinha nenhum interesse em destruir uma infraestrutura que poderia ser inutilizada simplesmente fechando as torneiras. Finalmente, em  8 de fevereiro passado, o respeitado jornalista norteamericano Seymour Hersh revelou com informação concludente que foram os EUA quem de fatoplanejaram a partir de dezembro de 2021 a sabotagem dos gasodutos Nordstream 1e Nordstream 2. Se assim foi, estamos perante um crime grave que configura um ato de terrorismo de Estado. Se foram os EUA que cometeram esta sabotagem tratou-se de um ato criminoso por parte de um país da Otan contra outro país da Otan, já que a Alemanha detinha parte do capital dos gasodutos. Se não foram os EUA, a acusação é de tal modo grave que o jornalista Seymour Hersh deveria ser de imediato processado judicialmente, o que não sucedeu até a presente data. Deveria ser do máximo interesse para os EUA, o Estado que se afirma como defensor da democracia global, averiguar o que se passou. Terá sido esta a única maneira de obrigar a Alemanha a juntar-se à guerra contra a Rússia? Destinou-se a sabotagem dos gasodutos a pôr fim à política de maior autonomia energética da Europa em relação aos EUA iniciada por Willy Brandt?  Com a energia cara e empresas encerradas não foi este um modo eficaz de pôr um travão ao motor econômico da UE? Quem se beneficia com ele? Foi incluído no cálculo o sacrifício injusto imposto às famílias alemãs de passar o inverno sem aquecimento razoável? Sobre este ato terrorista pesa o mais profundo silêncio.  

O segundo exemplo. Intensifica-se a violência da ocupação colonial da Palestina por parte de Israel. Desde o início do ano, Israel já matou 35 palestinos; no dia 26 de janeiro fez um raid no campo de refugiados de Jenin no West Bank e matou mais dez pessoas, incluindo duas crianças. Um dia depois, um jovem palestino matou sete pessoas ao lado da sinagoga de um colonato israelita na seção oriental de Jerusalém, ilegalmente ocupada por Israel. A violência existe dos dois lados, mas a desproporção é brutal, e muitos atos do terrorismo do Estado de Israel (por vezes cometidos impunemente por colonos ou por militares nos checkpoints) não chegam sequer a ser noticiados. Não há enviados das mídias ocidentais para relatar o que se passa nos territórios ocupados, onde a maior violência ocorre. Não temos imagens lancinantes de sofrimento e morte do lado palestino (exceto imagens furtivas de celulares). A comunidade internacional e o mundo árabe nada dizem. Apesar da imensa desproporção dos meios bélicos, não há nenhum movimento para enviar equipamento bélico eficaz para a Palestina, ao contrário do que se está fazendo para a Ucrânia. Por que é que a resistência dos ucranianos é justa e a dos palestinos não é? A Europa, o continente onde ocorreu o holocausto dos judeus está na origem remota dos crimes cometidos contra a Palestina, mas mostra hoje uma cumplicidade odiosa com Israel. A UE afadiga-se neste momento para criar um tribunal para julgar os crimes de guerra. Mas, hipocritamente, só os crimes cometidos pela Rússia. Tal como aconteceu nos anos que precederam a Primeira Guerra Mundial, os apelos ao europeísmo (a Pan-Europa, como então se dizia) são crescentemente apelos à guerra e retórica para encobrir o sofrimento injusto e a perda de bem-estar que está a ser imposto aos povos europeus sem que eles tenham sido consultados sobre a necessidade ou conveniência da guerra.

Por que o silêncio dos intelectuais? 

Perante tudo isso, talvez o silêncio mais incompreensível seja o dos intelectuais. Incompreensível, porque os intelectuais reivindicam a cada passo ter uma clarividência superior à dos comuns mortais. Sabemos por experiência histórica que nos períodos imediatamente anteriores à eclosão das guerras, todos os políticos se dizem contra a guerra, ao mesmo tempo que pelas suas ações contribuem para que ela ocorra. O silêncio é pura cumplicidade com os senhores da guerra. Não há declarações retumbantes de conhecidos intelectuais pela paz ou pela “independência de espírito” e em defesa da democracia. Quando a Primeira Guerra Mundial começou estavam em presença três imperialismos: o russo, o inglês e o alemão. Não restavam dúvidas a ninguém de que o mais agressivo, ou pelo menos, o mais expansionista, era o imperialismo alemão. 

Intrigantemente, nessa altura não se ouviam grandes intelectuais alemães a manifestar-se contra a guerra. Havia, pelo contrário, muitos a manifestar-se estridentemente a favor da guerra. O caso de Thomas Mann merece reflexão. Em novembro de 1914, publicava um artigo na Neue Rundschau intitulado “Gedanken im Kriege” (“Pensamentos em tempo de guerra”) em que defendia guerra como um ato de Kultur (ou seja, a Alemanha, como ele próprio acrescentaria) contra a civilização. Para ele, a Kultur era sublimação do demoníaco (“die Sublimierung des Dämonischen”) e estava acima da moral , da razão e da ciência. E concluía “A lei é a amiga dos fracos, gostaria de nivelar o mundo; mas a guerra faz surgir a força” (“Das Gesetz ist der Freund des Schwachen, möchte gern die Welt verflachen, aber der Krieg lasst die Kraft erscheinen”). Segundo Mann, Kultur e militarismo eram irmãos. Em 1919, publicou o livro Reflexões de um homem não-político em que defendia a política do Kaiser e afirmava que a democracia era uma ideia antialemã.  Felizmente para a humanidade, Thomas Mann viria mais tarde a mudar de ideia e transformar-se em um dos grandes críticos do nazismo. Ao contrário, no lado russo sempre foram bem audíveis as vozes dos intelectuais contra o imperialismo russo, de Kropotkin a Tolstoi, de Dostoievsky a Gorki. 

Hoje, defrontam-se o imperialismo norte-americano, o imperialismo russo e o imperialismo chinês. Há ainda o caso patológico do Reino Unido que, apesar do seu declínio abissal tanto no plano social como no plano político, ainda não se deu conta de que há muito perdeu o império. Sou contra todos os imperialismos e admito que no futuro o imperialismo russo ou o imperialismo chinês possam ser os mais perigosos, mas não tenho dúvidas de que neste momento o imperialismo mais perigoso é o dos EUA. Leva vantagem em dois domínios, o militar e o financeiro. Nada disso garante a longevidade deste imperialismo. Aliás, tenho defendido que ele está em decadência, usando fontes de instituições norte-americanas (por exemplo, o National Intelligence Council), mas a própria decadência pode ser um dos fatores que explica a maior periculosidade de hoje.

Desde o primeiro momento, condenei a invasão da Ucrânia por parte da Rússia, mas desde esse momento salientei que houve forte provocação dos EUA para que tal acontecesse com o objetivo de enfraquecer a Rússia e travar a China. A dinâmica do imperialismo norte-americano parece imparável, sempre alimentada pela crença de que a destruição que provoca, alimenta ou incita ocorrerá longe das suas fronteiras protegidas por dois vastos oceanos. Os EUA têm, pois, um desprezo total pelos interesses dos outros povos. Os EUA dizem intervir sempre a bem da democracia e apenas deixam destruição e ditadura ou caos no seu rasto. A mais recente e talvez mais extrema manifestação desta ideologia pode-se ler no último livro do neoconservador Robert Kagan (casado com a conhecida neoconservadora e atual Subsecretária de Estado para Assuntos Políticos dos Estados Unidos, Victoria Nuland), The Ghost at the Feast: America and the Collapse of World Order, 1900-1941 (Nova Iorque, Alfred Knopf, 2022). A ideia central deste livro é que os EUA são um país único no mundo no seu desejo de tornar os povos mais felizes, mais livres e mais ricos, lutando contra a corrupção e a tirania onde quer que existam. São tão maravilhosamente poderosos que teriam evitado a Segunda Guerra Mundial se tivessem intervindo militarmente e financeiramente a tempo de obrigar a Alemanha, Itália, Japão, França e Grã-Bretanha a seguir a nova ordem mundial ditada pelos EUA. Todas as intervenções norte-americanas no estrangeiro têm sido altruístas, para o bem dos povos intervencionados. Segundo Kagan, desde as primeiras intervenções militares no estrangeiro – a guerra espanhola-americana de 1898 (com o propósito de dominar Cuba, desde então até hoje), e a guerra Filipino-Americana de 1899-1902 (contra a autodeterminação das Filipinas e resultando em mais de 200 mil mortos) – os EUA têm sempre intervindo por fins altruístas e pelo bem dos povos.  

Este monumento à hipocrisia e ao apagamento das verdades inconvenientes nem sequer considera a realidade trágica dos povos indígenas e da população negra dos EUA submetidas ao mais violento extermínio e discriminação ao tempo dessas intervenções supostamente libertadoras no estrangeiro. O registo histórico revela a crueldade desta mistificação. Invariavelmente as intervenções foram ditadas pelos interesses geopolíticos e econômicos dos EUA, no que, aliás, os EUA não são exceção. Pelo contrário, tem sido sempre esse o caso de todos os impérios (veja-se a invasão da Rússia por Napoleão e por Hitler). O registro histórico mostra que a prevalência dos interesses imperiais levou muitas vezes a eliminar aspirações de autodeterminação, de liberdade e de democracia e a apoiar ditadores sanguinários do que resultou em devastação e morte, da Guerra das Bananas na Nicarágua (1912) e do apoio ao ditador cubano Fulgêncio Baptista e da invasão de Cuba na Baía dos Porcos de 1961, ao golpe no Chile contra o presidente  Salvador Allende, democraticamente eleito (1973); do golpe de Estado no Irã contra o presidente Mohammad Mossaddegh, democraticamente eleito (1953) ao golpe de Estado na Guatemala contra Jacobo Arbenz, democraticamente eleito (1954); da invasão do Vietnã para combater a ameaça comunista (1965) à invasão do Afeganistão (2001), supostamente para se defender dos terroristas (que não eram afegãos) que atacaram as Torres Gêmeas de Nova Iorque, depois de nos 20 anos anteriores ter apoiado os mujahidins contra o governo comunista apoiado pela União Soviética; da invasão do Iraque em 2003 para eliminar Saddam Hussein e as suas armas de destruição em massa (que não existiam), à intervenção na Síria para defender rebeldes que na sua maioria eram (e são) islamitas radicais; da intervenção, através da Otan, nos Balcãs sem autorização da ONU (1995) à destruição da Líbia (2011). Houve sempre “razões benévolas” para estas intervenções, que contaram sempre com cúmplices e aliados locais. Que restará da mártir Ucrânia quando a guerra acabar (todas as guerras um dia acabam)?  Em que situação ficarão os outros países da Europa, sobretudo a Alemanha e a França, ainda hoje dominados pela ideia falsa de que o Plano Marshall foi a expressão da filantropia abnegada dos EUA, à qual devem infinita gratidão e incondicional solidariedade? Como ficará a Rússia? Que balanço é possível fazer para além da morte e da destruição que a guerra sempre causa? Por que não surge na Europa um movimento forte a favor de uma paz justa e durável? Apesar de a guerra estar sendo travada na Europa, estarão os europeus à espera que surja um movimento contra a guerra nos EUA para se alistarem no movimento com boa consciência e sem risco de serem considerados amigos de Putin, se não mesmo comunistas?

São algumas das questões a que os intelectuais têm obrigação de responder. Por que se terão calado? Haverá ainda intelectuais, ou o que resta é uma pobre clericultura?

* Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale e Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.

Imagem: A parábola dos cegos (1568), do pintor flamengo Pieter Bruegel

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