Catarina Falcão – i online
No cerco à
Assembleia os deputados passaram fome e dormiram nas bancadas. O
primeiro-ministro foi obrigado a ceder aos manifestantes
De 12 para 13 de
Novembro de 1975 o governo e os deputados da Assembleia Constituinte foram
sequestrados por manifestantes que queriam melhores salários e melhores
condições de trabalho. Foram 40 horas com insultos ao primeiro-ministro e deputados
a dormitarem nas bancadas e nos sofás do parlamento.
Em Novembro de
1975, os trabalhadores da construção civil exigiam ao VI governo provisório –
liderado pelo almirante Pinheiro de Azevedo – novas tabelas salariais. As
negociações chegaram a um impasse, e foi convocada para dia 12 uma manifestação
que seguiria do Terreiro do Paço para o Ministério do Trabalho. Um comunicado
de última hora dá conta que o Conselho de Ministros “puxou para si a resolução
do conflito” e que todas as instalações do Ministério do Trabalho estariam
fechadas, relata “A Capital”, sendo então a manifestação dirigida para S.
Bento.
Milhares de pessoas
concentraram-se nas ruas da Baixa e daí seguiram para exigir uma reunião com o
primeiro-ministro.
Mas numa altura
conturbada em termos políticos e ideológicos, nem toda a gente queria negociar.
“Muitos trabalhadores estavam efectivamente com o PCP, mas havia outras
correntes, algumas com palavras de ordem mais radicais e havia quem defendesse
um ataque a S. Bento”, diz Carlos Brito, deputado da Assembleia Constituinte e
antigo dirigente do PCP que nesse dia orientava os líderes do movimento
sindical.
Perante a
demonstração de força dos trabalhadores, que trouxeram consigo carrinhas,
betoneiras e gruas que bloquearam progressivamente o acesso ao palácio de S.
Bento – “piquetes de trabalhadores controlavam o acesso aos palácios” pode
ler-se em ”O Jornal” de 14 de Novembro – e as parcas forças policiais que
garantiam a segurança, o primeiro--ministro acabou por receber os sindicatos.
Pinheiro de Azevedo
veio depois à varanda anunciar que tinha sido atingido um primeiro acordo, mas
foi logo apelidado de “fascista” e “Pinochet”. E o primeiro--ministro retorquiu
– “Vão bardamerda mais o fascista” – o que terá enfurecido ainda mais as massas
e obrigou à continuação da maratona negocial pela noite dentro, já que ninguém
arredava pé, sitiando o palácio e a Assembleia sem permitir entradas nem saídas
– excepto jornalistas. Apenas o deputado Abílio França do PPD foi autorizado a
sair porque se sentiu mal e foi levado de ambulância para o hospital.
Uma noite na
Assembleia Dentro da Assembleia, os deputados começaram a ficar preocupados.
Mário Soares conta no livro “Ditadura e Revolução” que foi avisado por Jaime
Gama do que estava a acontecer, terminou o discurso que estava a fazer à pressa
e ainda conseguiu fugir com Manuel Alegre. Outros não tiveram tanta sorte.
“Havia medo e receio. Deu-se um caso muito grave na minha bancada em que a
mulher de Francisco Oliveira Dias – que mais tarde foi presidente da Assembleia
– teve uma sincope cardíaca com o susto de ter o marido sequestrado e morreu”,
relata ao i Basílio Horta, na altura deputado do CDS e actual deputado pelo PS.
“Estávamos ali
cercados, não podíamos ir jantar – na altura não havia restaurantes dentro da
AR. Os víveres eram mesmo só os do bar e esgotaram-se em meia hora. Foi um
jejum forçado”, lembra Mota Amaral, que era deputado da Constituinte e ainda
hoje é deputado. Um helicóptero ainda tentou levar mantimentos aos deputados,
mas foi interceptado por manifestantes que julgaram ser um meio de fuga.
Igrejas Caeiro,
deputado do PS, acusava os trabalhadores de introduzirem sacos com comida para
o PCP, dizia “A Capital”, uma versão também patente nas memórias políticas de
Freitas do Amaral. Carlos Brito desmente: “Isso é uma ideia fantasiosa”.
Para dormir, muitos
optaram pelas bancadas ou pelos sofás. O deputado socialista Sottomayor Cardia
aparece numa fotografia do jornal “A Capital” a dormir nos sofás, enquanto
outros deputados preferiram ficar a conversar. Galvão de Melo, deputado do CDS,
queixava-se por “ter perdido um óptimo jantar”, outro deputado do PPD, de
acordo com “O Jornal”, dizia ter bilhetes para o cinema para aquela noite.
Sophia de Melo Breyner, deputada socialista na Constituinte, lamentava o
sequestro afirmando: “Acho um abuso de força. Só há revolução quando ninguém
abusa de ninguém”.
Mas nem todos
estavam restringidos nos seus movimentos. A deputada do PCP Hermenegilda
Pereira estava nas escadas de S. Bento à procura de boleia pois àquela hora “já
tinha perdido o barco para casa”. “O PCP teve um papel de moderar, não as
reivindicações dos trabalhadores nem a marcha até São Bento mas no sentido de
dissuadir um assalto à AR”, explicou ao i Carlos Brito que assegura que “houve
momentos em que o perigo de invasão à AR existiu e era importante para o PCP
tentar ao máximo evitar essa situação, porque seríamos crucificados caso isso
acontecesse”.
Às 12h45 de 13 de
Novembro, depois de uma promessa de aumento salarial por Pinheiro de Azevedo,
os deputados saíram da Assembleia entre fileiras de protecção. Enquanto os
deputados do PS, PPD e CDS eram apupados e insultados, os deputados do PCP
foram recebidos pela multidão que ali ainda se mantinha com gritos de vitória.
“O cerco foi o
culminar de um processo revolucionário que estava em curso. Havia uma luta
feroz entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade democrática que só
terminou no 25 de Novembro. Estivemos à beira da guerra civil. O cerco foi o
clímax”, recorda Basílio Horta.
Hoje como ontem A
História voltou a repetir-se em parte, na noite de 31 de Outubro, quando os
deputados tiveram de ser escoltados devido à manifestação “Que se lixe a
troika! Este Orçamento não passará!”, mas para os mais experientes nestas
situações o caso é diferente.
“O sequestro de
1975 ficou a dever-se em muito às fracas forças de segurança, mas actualmente
são muito mais treinadas e poderosas e não deram nenhuma hipótese à
manifestação para avançar”, considera Carlos Brito, que acrescenta que agora
“há um alto sentido cívico de até onde devem ir estas manifestações”.
“Enquanto as
manifestações obedecerem às regras democráticas não há porque nos opormos a
elas. Se ultrapassarem os limites tem de se recorrer às forças policiais para
manterem a integridade. A Assembleia da República é inviolável” afirma Mota
Amaral. Já Basílio Horta mostra-se preocupado com o futuro: “Se o governo não
inflectir a sua política, isto pode ser um rastilho e vamos ter situações muito
delicadas. O país está um barril de pólvora”.
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