Vicente Jorge Silva – Sol, opinião
Na crónica
anterior, referi várias organizações internacionais que, quase em simultâneo,
publicaram recentemente relatórios com uma conclusão idêntica: as políticas de
austeridade revelam-se cada vez mais contraproducentes e insustentáveis num
mundo – e em particular numa Europa – onde florescem as desigualdades sociais e
a riqueza tende a concentrar-se nas mãos de um número cada vez mais restrito de
cidadãos, cujas fortunas têm vindo a crescer a um nível histórico recorde.
Entre as
instituições que, por caminhos diversos, coincidiam nesse diagnóstico,
contavam-se, como recordei, o Crédit Suisse, a Cruz Vermelha, o Banco Mundial e
o já inevitável FMI. Isso permitia-me observar um sinal de alerta na reflexão e
orientação, pelo menos teóricas, de organizações com irradiação global mas
frequentemente ausentes do debate sobre as raízes da crise que o mundo e a
Europa hoje enfrentam.
Não encontrei ecos
desses relatórios na imprensa portuguesa – porventura, por distracção minha… –,
o que me levou a retomar o tema para evocar as já intoleráveis contradições e
duplicidades que organismos como o FMI vêm repetidamente manifestando sobre a
política de austeridade e os efeitos terrivelmente corrosivos que provoca na
coesão social e no aumento vertiginoso do desemprego.
Enquanto se
multiplica a produção teórica do FMI sobre os malefícios da austeridade e da
recessão, a prática da organização e as declarações dos seus principais
responsáveis – como a directora-geral, Christine Lagarde – persistem, em geral,
no sentido diametralmente oposto e ao arrepio das novas reflexões introduzidas
por essa produção teórica.
O FMI vive em plena
esquizofrenia, contrariando radicalmente na prática o que os seus teóricos
preconizam em sucessivos relatórios. Coexistem na organização duas entidades
distintas, de costas voltadas ostensivamente uma para a outra: o velho FMI da
ortodoxia financeira neoliberal, incapaz de tirar conclusões do fracasso das
políticas seguidas (designadamente no âmbito da troika), e um outro FMI que
persiste em defender posições opostas àquelas que a instituição pratica. Até
quando se poderá prolongar a credibilidade de uma organização que mantém dois
discursos radicalmente incompatíveis?
O mais
extraordinário é que tudo isto decorre com a maior das normalidades,
aparentemente sem convulsões internas, como se o comportamento esquizofrénico
se tivesse tornado uma segunda natureza do FMI. E nenhum Estado membro da
organização se atreve, visivelmente, através das autoridades respectivas, a
confrontá-la com esse comportamento – mesmo quando a prática política do FMI,
em convergência com a troika, se traduz num desprezo ostensivo da soberania
democrática e constitucional desses Estados.
Os episódios
sucessivos de chantagem sobre o Tribunal Constitucional, em que participou
Lagarde e, mais recentemente, a Comissão Europeia – servindo-se de um relatório
fantasma do seu gabinete em Lisboa –, ilustram até que ponto pode chegar a
degradação dos valores da democracia. Sobretudo porque tudo isto acontece com a
cumplicidade descarada do Governo português.
Uma coisa é os
cidadãos de um país formalmente soberano e os seus legítimos representantes
políticos questionarem o conteúdo da sua Constituição e os respectivos artigos
eventualmente anacrónicos. Outra coisa, inteiramente diferente, é sujeitar o
actual Tribunal Constitucional a pressões vexatórias (internas e externas)
contra o livre exercício de soberania pelos seus juízes.
Ora como se não
bastasse vivermos num regime de protectorado e submetidos a uma política cujos
resultados se têm revelado desastrosos para o país, teríamos ainda de abdicar
do que nos resta de soberania formal e do primado da lei que constitui o
alicerce essencial da democracia.
Quando se assiste a
uma tomada de consciência mais ou menos generalizada por parte de várias
organizações internacionais (apesar da esquizofrenia do FMI) sobre os
fundamentos da crise europeia e o ambiente político na Europa pós-eleições
alemãs se mostra agora mais propício a uma revisão dos chamados ‘programas de
ajustamento’, mais insuportável se torna o que nos obrigam a sofrer – em nome
do dogma fundamentalista que, contra todas as evidências já comprovadas de
fracasso, a troika e os governos a ela submissos (ou, pior ainda, professando a
sua doutrina com um integrismo de talibãs) insistem em conduzir até às últimas
e ruinosas consequências.
Não é possível
assistir, impávido e sereno, à demência que paira neste manicómio cada vez mais
desgovernado em que se tornou a Europa segundo a troika.
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