segunda-feira, 28 de outubro de 2013

A EUROPA É UM MANICÓMIO?

 

Vicente Jorge Silva – Sol, opinião
 
Na crónica anterior, referi várias organizações internacionais que, quase em simultâneo, publicaram recentemente relatórios com uma conclusão idêntica: as políticas de austeridade revelam-se cada vez mais contraproducentes e insustentáveis num mundo – e em particular numa Europa – onde florescem as desigualdades sociais e a riqueza tende a concentrar-se nas mãos de um número cada vez mais restrito de cidadãos, cujas fortunas têm vindo a crescer a um nível histórico recorde.
 
Entre as instituições que, por caminhos diversos, coincidiam nesse diagnóstico, contavam-se, como recordei, o Crédit Suisse, a Cruz Vermelha, o Banco Mundial e o já inevitável FMI. Isso permitia-me observar um sinal de alerta na reflexão e orientação, pelo menos teóricas, de organizações com irradiação global mas frequentemente ausentes do debate sobre as raízes da crise que o mundo e a Europa hoje enfrentam.
 
Não encontrei ecos desses relatórios na imprensa portuguesa – porventura, por distracção minha… –, o que me levou a retomar o tema para evocar as já intoleráveis contradições e duplicidades que organismos como o FMI vêm repetidamente manifestando sobre a política de austeridade e os efeitos terrivelmente corrosivos que provoca na coesão social e no aumento vertiginoso do desemprego.
 
Enquanto se multiplica a produção teórica do FMI sobre os malefícios da austeridade e da recessão, a prática da organização e as declarações dos seus principais responsáveis – como a directora-geral, Christine Lagarde – persistem, em geral, no sentido diametralmente oposto e ao arrepio das novas reflexões introduzidas por essa produção teórica.
 
O FMI vive em plena esquizofrenia, contrariando radicalmente na prática o que os seus teóricos preconizam em sucessivos relatórios. Coexistem na organização duas entidades distintas, de costas voltadas ostensivamente uma para a outra: o velho FMI da ortodoxia financeira neoliberal, incapaz de tirar conclusões do fracasso das políticas seguidas (designadamente no âmbito da troika), e um outro FMI que persiste em defender posições opostas àquelas que a instituição pratica. Até quando se poderá prolongar a credibilidade de uma organização que mantém dois discursos radicalmente incompatíveis?
 
O mais extraordinário é que tudo isto decorre com a maior das normalidades, aparentemente sem convulsões internas, como se o comportamento esquizofrénico se tivesse tornado uma segunda natureza do FMI. E nenhum Estado membro da organização se atreve, visivelmente, através das autoridades respectivas, a confrontá-la com esse comportamento – mesmo quando a prática política do FMI, em convergência com a troika, se traduz num desprezo ostensivo da soberania democrática e constitucional desses Estados.
 
Os episódios sucessivos de chantagem sobre o Tribunal Constitucional, em que participou Lagarde e, mais recentemente, a Comissão Europeia – servindo-se de um relatório fantasma do seu gabinete em Lisboa –, ilustram até que ponto pode chegar a degradação dos valores da democracia. Sobretudo porque tudo isto acontece com a cumplicidade descarada do Governo português.
 
Uma coisa é os cidadãos de um país formalmente soberano e os seus legítimos representantes políticos questionarem o conteúdo da sua Constituição e os respectivos artigos eventualmente anacrónicos. Outra coisa, inteiramente diferente, é sujeitar o actual Tribunal Constitucional a pressões vexatórias (internas e externas) contra o livre exercício de soberania pelos seus juízes.
 
Ora como se não bastasse vivermos num regime de protectorado e submetidos a uma política cujos resultados se têm revelado desastrosos para o país, teríamos ainda de abdicar do que nos resta de soberania formal e do primado da lei que constitui o alicerce essencial da democracia.
 
Quando se assiste a uma tomada de consciência mais ou menos generalizada por parte de várias organizações internacionais (apesar da esquizofrenia do FMI) sobre os fundamentos da crise europeia e o ambiente político na Europa pós-eleições alemãs se mostra agora mais propício a uma revisão dos chamados ‘programas de ajustamento’, mais insuportável se torna o que nos obrigam a sofrer – em nome do dogma fundamentalista que, contra todas as evidências já comprovadas de fracasso, a troika e os governos a ela submissos (ou, pior ainda, professando a sua doutrina com um integrismo de talibãs) insistem em conduzir até às últimas e ruinosas consequências.
 
Não é possível assistir, impávido e sereno, à demência que paira neste manicómio cada vez mais desgovernado em que se tornou a Europa segundo a troika.
 

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