quarta-feira, 6 de novembro de 2013

AS ESCUTAS DOS AMERICANOS

 


Benjamim Formigo – Jornal de Angola, opinião
 
Parlamento Europeu indignado, Chancelaria alemã em pé de guerra, Planalto em alerta, Matignon indignado, e por aí fora. Os americanos também escutavam as conversas dos seus aliados ou dos países amigáveis. Que novidade!
 
Desde 1988 que é pública a existência do sistema Echelon, uma rede de equipamentos operada pelos EUA, Grã-Bretanha, Austrália e Nova Zelândia, criada com a finalidade de interceptar em todo o mundo comunicações criptografadas ou não.

Em 1999 Duncan Campbell elaborou para o Parlamento Europeu um relatório sobre essa capacidade de intercepção e escuta. E o Echelon era então apenas um novo sistema que substituía ou complementava outros já existentes.

Edward Snowden, ao desertar alegando razões morais e éticas, veio apenas dizer que o rei vai nu. A Administração Obama espiar, escutar, ilegalmente as conversações dos cidadãos americanos era um escândalo, um escândalo que os europeus e muitos dos dirigentes mundiais procuraram ignorar.

Mais, atiraram Snowden para o lixo dos traidores, espiões a soldo, recusaram-lhe asilo, perseguiram-no ao ponto de o avião do Presidente colombiano – suspeito de transportar o antigo colaborador da NSA – ser proibido de aterrar para reabastecimento numa série de países europeus. A maioria dos países latino-americanos recusava receber Snowden.

De súbito, as revelações de Snowden, asilado em Moscovo, escalaram. Dois chefes de Estado e de Governo também haviam sido escutados. Dilma Rousseff e Ângela Merkel. Já não eram os cidadãos comuns os únicos a serem escutados, a Rousseff e Merkel juntavam-se empresas europeias e brasileiras, entre outras. O Papa caiu da cadeira de Pedro!

Ninguém parece recordar que a Airbus já fora interceptada em 1994 quando negociava um contrato, que viria a perder, por força dessas escutas, com a Arábia Saudita. Segundo o relato de Campbell, os russos dispunham da “Federalnoe Agentsvo Pravitelstvennoi Svyazi i Informatsii”, agência federal para as comunicações do Governo.

A China dispunha de estações de escuta, duas das quais orientadas e operadas em conjunto com os americanos. Os franceses, no âmbito da DGSE, usavam um sistema assente em duas bases de intercepção de satélites, com capacidade para interceptar comunicações codificadas e estações na Guiana, Nova Caledónia e até no Oceano Índico.

O BND – espionagem alemã – mantinha (mantém) uma rede de estações de intercepção na Alemanha e também em Taiwan, colaborando com Paros na operação de algumas estações, designadamente na Guiana, e até ao início da década de 90 operavam perto de Cádis, em Espanha, um posto de intercepção dos cabos saídos de Espanha e Portugal. Afinal, ao que parece todos espiavam todos.

O rei ia nu, mas ninguém o dizia. O relatório Duncan para o Parlamento Europeu foi mais ou menos inconsequente. A festa foi estragada por Edward Snowden ao revelar as escutas da NSA nos EUA e, em especial, a Dilma Rousseff e Ângela Merkel.

Os protestos diplomáticos, os pedidos de explicações, a exigência na ONU de que os aliados não se espiem, caiem todos sobre os americanos. Será que russos, chineses, franceses e alemães se tornaram meninos de coro e já não espiam nem escutam ninguém? Perante tal indignação, assim parece.

A questão de fundo nem é saber se Barack Obama tinha conhecimento. Os Estados Unidos usam sempre uma fórmula que permite ao Presidente negar conhecimento de um acto que está a ser praticado com o seu assentimento tácito. A tecnologia aperfeiçoou-se desde a década de 90 quando foi elaborado o Relatório Duncan. Uma vez desenvolvida, não é possível pará-la ou limitar o seu uso. Só é possível criar contra-medidas que impeçam a descodificação de mensagem ou conversas. No dia a dia, as nossas conversas, os nossos e-mails, são lidos, regular ou aleatoriamente, nem fazemos ideia por quem. Não que isso incomode muita gente, que o Facebook expõe diariamente toda a sua vida, muitas vezes a da sua família e os seus projectos.

De tal modo, que o Facebook se tornou uma fonte de informação para um potencial empregador. Já existem casos de candidatos a um emprego serem recusados pelo conteúdo das suas páginas no Facebook, ou até, imagine-se, por não terem uma página onde a entidade patronal possa monitorar a actividade do candidato ou do trabalhador.

Claro que quando Snowden grita que o rei vai nu e Rousseff e Merkel sabem publicamente que foram escutadas, têm de reagir. Outros as apoiarão por razões próprias ou de circunstância. Os americanos dispõem, seguramente, da maior rede de intercepção de comunicações, mas isso era sabido e ninguém tomou medidas. Outros candidatam-se a “Big Brothers” de pacotilha e passam por entre a chuva sem se molharem. As virgens descobriram que são puritanas.

Edward Snowden quase passa de pária a herói numa cínica manobra de relações públicas. Os Estados Unidos ficam embaraçados diplomaticamente, mas não podem revelar quais os outros países que procuram ou fazem – com as devidas distâncias – o mesmo. Seria revelar o que sabem e neste negócio a informação é poder e o segredo a sua alma. Resta-lhes “regulamentar” as escutas e isso já a Administração anunciou que irá fazer.

Provavelmente enterrando ainda mais o sistema à prova de qualquer outro Snowden. George Orwell não imaginou em “1984” um “Big Brother” com esta dimensão.

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