sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

MANDELA: DA REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA Á CONTRA-REVOLUÇÃO LIBERAL

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - Poucos homens tiveram uma homenagem tão “unificadora de boas vontades e melhores intenções” como Nelson Mandela no seu funeral. Os mesmos que fecham fronteiras, que deportam imigrantes, que impedem a cidadania através de processos obscuros de controlo e segurança, os que andam sempre com o credo do “estrangeiro” na boca, os mesmos que deixam milhares e milhares de crianças sem registo, de adolescentes sem identificação, os criadores de “não-Homens”, os que apoiaram o apartheid na Africa do Sul, que o apoiam em Israel e que cultivam o apartheid social, os que bradam em rouquidão pela pena de morte, os que bloqueiam Cuba, criminalizam a Venezuela, a Bolívia e o Equador, que privatizam os recursos, a educação, a saúde, a habitação, a cultura, que legitimam golpes de Estado nas Honduras, estiveram todos presentes no ultimo adeus a Mandela.  
 
Mandela, que durante anos foi considerado “terrorista” por muitos dos que hoje emocionam-se com o seu nome, terminou os seus dias como “assimilado”. Foi como revolucionário que combateu o apartheid, vitoriosamente. A sua epopeia foi a epopeia dos povos sul-africanos contra a aberração racista. A sua importância nesse campo de batalha foi incomparável e o seu papel, fundamental. Assim como o foi na implantação da Democracia Politica na Africa do Sul, o marco essencial para que as novas elites necessitavam para a sua expansão. Do apartheid institucional, forma desgarrada de domínio das oligárquicas elites bóeres, eliminou-se a exclusão racial e a segregação, mantendo-se os compartimentos estanques a nível social. 
 
A imagem de Mandela, trabalhada pelos círculos elitistas do capital global, metamorfoseou-o num “antirracista abstracto”, numa “mente aberta ao mercado”. Esta ficção tronou-se economicamente rentável (o capitalismo tem destas coisas, fizeram o mesmo com o Gandhi – o pacifista abstracto – e até com o Che – o guerrilheiro abstracto – cujas estampas em t-shirts, estampilhas, boinas, autocolantes etc., tornaram-se uma rentável exploração comercial). Este é um fenómeno que ocorre em virtude de, no capitalismo, tudo ser reduzido á realidade económica, a mercadoria, a realidade única do universo unidimensional. Reduzidos a essa realidade ficam todos os Homens, independentemente do seu papel e da sua posição social. Os Homens tornam-se ficções, porque vivem num alienatório universo onde apenas se afirmam como mercadorias.
 
A ficção começa no “período revolucionário” de todos os processos. É o processo de formação dos mitos: os “fundadores de nações”, os “grandes e queridos líderes”, os “pais dos povos”, os “grandes timoneiros”, as “figuras históricas”, os “Homens que morrem, mas cujo pensamento permanece”. No continente africano esses mitos surgem durante os tempos áureos, marcados pelas “grandes epopeias”, onde os poderes aparecem diluídos, embora possam manifestar-se de uma forma brutal. É neste período que gera-se o processo de acumulação de capital, iniciado através do Estado, que aos poucos afirma-se no processo, reforça-se, abandona a sua função instrumental e torna-se cada vez mais absoluto.
 
A nova elite (vinda da clandestinidade, dos compromissos, das cadeias ou da luta armada) inicia uma nova fase da metamorfose. O Estado cumpre, agora, em pleno a função de instrumento de acumulação. O aparelho repressivo (forças armadas, policia e segurança) encontra-se estabilizado. O poder é único e não aceita esferas de actuação (nesta fase os três poderes são inexistentes, tudo está submetido ao estado. Os mecanismos judiciais e legislativos formam um amalgama com o executivo, sendo o partido-estado o aglutinador de interesses).
 
A fase seguinte é a fase de abertura. Os mecanismos de acumulação necessitam de um maior espaço para cumprirem a sua função. Já não lhes basta o estado. Os seus interesses necessitam de ser assumidos através de outras formas. Nova metamorfose. Termina a fase de acumulação.
 
Na Africa do Sul nada disto aconteceu. O fim do apartheid originou um processo de transição directa para a Democracia Politica. A razão deste factor prende-se com uma particularidade: a África do Sul foi a única região do continente africano onde a Revolução Industrial atingiu uma fase de maturidade que permitiu o desenvolvimento das elites industriais no terreno. O sector mineiro conduziu esse processo. O capitalismo instalou-se, de armas e bagagens. As elites bóeres, não foram nenhuma anomalia neste processo, mas no início do século XX a sua única possibilidade residia na tomada do poder, retirando-o às elites anglófonas. Os bóeres foram levados a essa atitude pelas elites britânicas. O isolamento, a que os bóeres foram sujeitos pelos seus concorrentes de origem britânica, a marginalização a que foram submetidos, já tinham gerado duas guerras anglo-bóeres, nas quais estes últimos saíram vencidos, mas não derrotados.
 
Como acontece neste tipo de comunidades de assentamento (caso dos judeus, por exemplo) os bóeres agarraram-se á sua identidade (nos guetos o elemento identitário torna-se dominante e preenche o imaginário). Ao assumirem o poder politico, as elites bóeres, condenadas a mais de um seculo de marginalização nos processos de renovação dos mercados (exclusivo para as elites anglófonas) assumiram uma estrutura oligárquica.
 
Mas os mecanismos de concorrência, deixados pela revolução industrial, prevaleceram. O capitalismo ali não se poderia expandir através dessa forma. Era necessário que as elites africanas reassumissem a sua importância, neste novo enquadramento. Para as elites anglófonas essa era uma condição essencial, não apenas para a sua expansão, mas também para a sua sobrevivência no país e para a oligarquia bóer tornou-se, também, evidente que o apartheid já não servia os seus interesses e diluiu-se nos mecanismos de mercado, perdendo peso político em troca de um lugar ao sol na economia. De qualquer forma as actuais elites bóeres são o elo mais fraco no capitalismo BRICS sul-africano. O seu sector principal continua a ser a agropecuária, agora paulatinamente convertida ao capitalismo pós-industrial através do agro-negócio e da agro-indústria. Por outro lado a burguesia comercial, industrial e financeira bóer ganhou algum peso, embora continue a ser de pouca expressão, quando comparada com as elites brancas anglófonas ou com as elites negras, asiáticas (islâmicas ou hindus) e judaicas.
 
Mandela tem de ser contextualizado em todo este cenário interno. Por outro lado no factor externo, o fim da guerra fria, a derrocada da União Soviética, a metamorfose da Europa de Leste, fizeram o resto. Um outro factor internacional, mas de contexto africano foi a libertação nacional das ex-colónias portuguesas (principalmente Angola e Moçambique) e o papel assumido por estes países na Linha da Frente (Angola em particular). Outro factor a ter em conta: o papel de Cuba.
 
Assumida que foi a forma de transição, um ponto deve ser retido: a Mandela - e ao ANC - couberam os papéis de actores principais. E cumpriram-no na perfeição.   
 
II - Para a direita de largo espectro (desde a dita cuja até aos centros dela mesma e da esquerda) este assunto é perfeitamente compreendido (basta ver as lágrimas de crocodilo que rolaram pelas faces dos lideres ocidentais). Já aquela esquerda que está fora do âmbito centrista (fora do largo espectro da direita) esta questão não é compreendida (excepto pelos aparelhos dos partidos comunistas, que exploraram muito bem a questão, de forma estratégica).
 
A esquerda radical burguesa ficou “chocada” com a “hipocrisia” do capitalismo ocidental, sentiu-se “roubada” e brada aos céus (sempre chorando, como os seus comparsas direitistas) que tem de fazer-se como a direita, assumindo a palavra de ordem: “eles roubam os nossos e nós roubamos os deles” (quando caem na idiotia absoluta os burgueses ultrapassam todas as escalas utilizadas para medir a debilidade mental e a burrice). Com uma lágrima no canto do olho (será alergia?) a esquerda radical burguesa ameaça - de dedo em riste - a direita de que roubará a esta algumas figuras do seu património, desde católicos a liberais e outros mais.
 
Nem o Locke, o Kant, ou o Chesterton, escapam e nas vozes mais “desesperadas” até o Roosevelt é preciso “resgatar” (á medida que os processos de decadência se intensificam e tornam-se cada vez mais vertiginosos, as elites e as forças da situação aplicam com cada vez mais amplitude este termo. O “resgate” é hoje usado como pau para toda a obra e colher de sopa para todo o prato: de valores, de culturas, de figuras históricas, de pensamento, etc.).
 
Atendendo a um recente exemplo português, esta esquerda não só resgatou Mário Soares – que recordou-se da gaveta onde escondera o socialismo democrático – como figuras da direita portuguesa, que assumiram atitudes “patrióticas” contra a troika. Só resta saber se esta “esquerda do resgate” transformar-se-á numa “esquerda resgatada” ou em mais um dos múltiplos “resgates da esquerda”.
 
III - Cuba, Angola, a Linha da Frente, jogaram um papel histórico fundamental no fim do apartheid e na independência da Namíbia. Nas palavras de Mandela a Revolução Cubana “destruiu o mito da invencibilidade do opressor branco (…) inspirou a luta de massas na África do Sul” e em Angola, “Kuito Canavale foi um ponto de viragem para o nosso continente e para o meu povo (…).” 
 
Em Fevereiro de 1976, num período em que as tropas sul-africanas ocupavam parte do território do sul de Angola (Republica Popular de Angola, na época) mas em que as Forças Armadas Populares de Libertação de Angola (FAPLA) e as forças internacionalistas cubanas empurravam os invasores e os seus agentes para fora do território, tendo-os já expulso da região centro do país, um editorial do jornal sul-africano The World, próximo ao ANC, referia: "Black Africa is riding the crest of a wave generated by the victory in Angola. Black Africa is tasting the heady wine of the possibility of achieving total liberation".
 
A primeira grande contribuição de Cuba na libertação da África do Sul foi, como referiu Mandela na prisão, em 1975, quando teve conhecimento da presença das forças internacionalistas cubanas em Angola). Pela primeira vez na História do continente africano existiu uma efectiva e solidária ajuda externa. Por sua vez as vitorias militares obtidas em Angola representaram a primeira grande derrota militar do apartheid. Em Angola, Moçambique (outro grande contributo para a luta do povo sul-africano, a solidariedade prestada pela Republica Popular de Moçambique, pela FRELIMO e pelo Presidente Samora Machel) e nos países da Linha da Frente o ANC encontrou a solidariedade dos respectivos povos.
 
Este contexto solidário não saiu do nada. Foi construido através de décadas, na luta de libertação nacional. Iniciou-se quando Che Guevara, como representante do governo revolucionário cubano, visitou a África subsariana e estabeleceu relações com diversos movimentos de libertação nacional africanos, entre deles o MPLA, que tinha uma delegação em Brazzaville. Depois foi a grande epopeia do Congo, onde as forças internacionalistas cubanas participaram directamente nos combates, ao lado das forças patrióticas congolesas, lideradas por Patrice Lumumba, contra os mercenários europeus, norte-americanos, sul-africanos e rodesianos. Egipto, Argélia e Tanzânia, Cuba e os patriotas congoleses, travaram um combate conjunto no Congo. Estes são momentos históricos da grande epopeia que é a luta de libertação nacional dos povos africanos, sempre apoiadas pela solidariedade internacionalista dos povos do mundo.  
 
IV - Os USA, em 1975, estavam preocupados com a “Questão Angolana” e a presença das forças cubanas em Angola. Na época o Secretário-de-Estado norte-americano, Henry Kissinger, explicava: “We thought, with respect to Angola, that if the Soviet Union could intervene at such distances, from areas that were far from the traditional Russian security concerns, and when Cuban forces could be introduced into distant trouble spots, and if the West could not find a counter to that, that then the whole international system could be destabilized.”
 
Em resposta a estas afirmações de Kissinger, Fidel Castro explicou que a presença cubana em Angola era uma questão de “globalização da nossa luta, em resposta às pressões e agressões mundiais dos USA e neste caso a nossa opinião não coincide com a da União Soviética. Actuamos sem a sua cooperação, embora a URSS esteja presente e activa na ajuda ao povo angolano.”
 
Na sua intervenção Kissinger esqueceu-se de referir que Cuba interveio a pedido do Governo da Republica Popular de Angola, em resposta á invasão Sul-Africana, respaldada pelos USA. Mas alguns anos depois nas suas memórias, Kissinger reconhece a omissão desse facto, não apenas na sua intervenção, mas na política externa dos USA e vai mais longe: “Why did Castro take this decision? Fidel Castro was probably the most genuine revolutionary leader then in power." Esta observação fica-lhe bem e não é gratuita, vinda de quem vem (Kissinger é um homem conhecido pela sua arrogância). Claro que “the old Henry” não conhece o valor intrínseco da solidariedade. Da sua boca não poderão sair afirmações plenas de humanismo como as de Fidel em 1998, na África do Sul, efusivamente aplaudidas por Mandela: “Deixem África do Sul ser um modelo de justiça e de um futuro mais humano”.   
 
O respeito com que Cuba sempre tratou Angola, a decisiva solidariedade cubana no combate deste país pela sua soberania nacional, a assistência técnica e humana prestada por Cuba, são factores históricos, solidários, que no continente africano jamais serão esquecidos. E essa foi outra das questões que “a velha raposa” Henry Kissinger nunca compreendeu. Aliás que os USA não entendem, se observarmos a forma como os norte-americanos tratam os seus aliados: “Boys”         
 
V - Mandela foi comandante em chefe do Umkhonto we Sizwe (MK, Lança da Nação), quando o ANC optou pela luta armada. Até lá a luta de massas desenvolvia-se através de demonstrações mais ou menos pacíficas. Mandela era conhecido por “Black Pimpernel”, por ter conduzido uma grande greve nacional, em Maio de 1961, brutalmente reprimida pela polícia. Os acontecimentos de Sharpeville e a repressão cada vez mais brutal a que as forças do apartheid submetiam as acções de protesto, levaram ao abandono da luta não-violenta, substituída por novos métodos de combate e por uma nova organização.  
 
As primeiras operações de sabotagem foram realizadas com meia tonelada de dinamite desviada de uma construtora e grande parte dos explosivos utilizados eram baseados numa leitura obrigatória para os guerrilheiros: “The Anarchist Cookbook”. A preparação teórica era também retirada de livros como “Farewell to Arms” de Hemingway (sobre a Guerra Civil de Espanha), relatos da resistência francesa á invasão nazi, obras do Che, relatos escritos pelos combatentes soviéticos e pelos “partisans” jugoslavos, nos registos dos combatentes quenianos do Kenyan Land Freedom Army (conhecidos por Mau-Mau) e da Argélia, para além das leituras de Mao, ou da luta vietnamita.  
 
As operações de guerrilha desta fase, usualmente acções de sabotagem, preencheram o vazio deixado pela legislação que baniu, primeiro, o Partido Comunista (SACP) e depois o ANC e o PAC (Congresso Pan-Africano). Nesse ano (1961), Mandela apelava aos militantes para “estudar a resistência africana. Conhecer a luta em África em particular a luta armada contra o colonialismo e nela inspirarmo-nos e motivarmo-nos. Conhecer os seus sucessos, os seus problemas e os seus erros”.
 
Este foi um período em que as relações entre o ANC e o SACP (históricas e sempre próximas) estreitaram-se ainda mais, no seio do MK. Formado na década de vinte do século passado, o SACP, era formado por ingleses, vindos do movimento sindical britânico, judeus, trabalhadores imigrantes russos e do Leste da Europa. Durante a década de trinta muitos trabalhadores africanos aderiram ao SACP. Lideres sindicais negros como Moses Kotane, J.B.Marks, Duma Nokwe, eram também militantes do ANC, de Mandela e de Oliver Tambo.
 
Este relacionamento não foi isento de tensões, particularmente nas décadas de 40 e 50. Mandela reflectiu essas tensões, nesse período, preocupado com o papel dos comunistas, maioritariamente brancos, mas já com muitas ramificações nos mineiros negros. Para grande parte dos nacionalistas africanos dessa época o marxismo era visto como um factor alienígena. Por sua vez a oposição ao apartheid por parte dos brancos era ainda dominada pelo Partido Liberal, liderado por Alan Paton, profundamente anticomunista e que nunca aceitou sentar-se às mesas das negociações com o ANC, para estabelecer um movimento oposicionista que englobasse a comunidade branca. Os laços históricos com o SACP acabaram por prevalecer e os comunistas levaram para o interior do ANC grande número de trabalhadores mineiros e de sindicalistas, alterando a composição inicial do ANC e o seu carácter organizativo. O ANC tornou-se popular entre as camadas urbanas, saiu da ruralidade e cresceu entre as classes trabalhadoras das principais cidades do país. A repressão e as prisões fizeram o resto e em finais dos anos 50 os líderes do ANC entenderam o importante papel do SACP e dos comunistas brancos e a dupla clivagem da Africa do Sul do apartheid: a raça (a divisão branco/negro) e a de classe (da divisão trabalho/capital). Durante este período Mandela e Sisulu ficaram impressionados com líderes brancos comunistas, como Joe Slovo (mais tarde, secretário-geral do SACP), Mick Harmel e Ruth First. A aproximação entre os dois sectores tornou-se desde então, efectiva e esta influência marxista está reflectida em vários documentos do ANC, inclusive na orientação socialista da Carta das Liberdades, documento que refere o controlo das minas, dos bancos e da indústria.  
 
Esta orientação é completamente abandonada em Julho de 1992, durante a conferência de Davos, onde Mandela rejeita, publicamente, a nacionalização dos sectores estratégicos da economia e declara-se adepto de uma política macroeconómica que privilegia o sector privado. É bom no entanto não esquecer que Mandela não seguiu sozinho nesta opção, tendo a ala esquerda do ANC (Ronnie Kasrils, por exemplo) e o SACP (naquele momento ainda liderado por Joe Slovo), apostado na mesma via.
 
Estes sectores apontam como principal razão para esta cedência, o ambiente de guerra civil que se vivia naqueles tempos. A instabilidade que o Inkata (partido zulu da extrema-direita) e a extrema-direita bóer introduziram, ameaçavam profundamente o processo democrático e as reformas em curso. Da tentativa em obter consensos alargados, para fugir ao confronto directo com as forças fascizantes bantus e bóeres, os líderes do ANC (e os do SACP) atiraram o país para os braços da continuidade capitalista, desta vez possibilitando às elites capitalistas os mecanismos de reprodução proporcionados pela Democracia politica. As elites negras sul-africanas aplaudiram, as elites brancas (as anglófonas e as bóeres) agradeceram e as restantes elites (indianas, judaicas, islâmicas) tiraram os chapéus e curvaram a cabeça, colando-se ao ANC.
 
Hoje predomina a corrupção, a pobreza, o desemprego e uma economia que recusa em arrancar. Talvez porque falte ao mecanismo de ignição da economia sul-africana o combustível da Justiça Social.     
 
VI - Mandela reflecte as contradições inerentes ao nacionalismo africano. Só que, ao contrário de alguns dos seus congéneres no continente, estas contradições são ampliadas pelo facto de a Africa do Sul ser a única economia capitalista assumida durante o período colonial e ter-se assumido como Estado – exactamente porque as relações capitalistas eram muito mais desenvolvidas e necessitavam do Estado-nação para se expandirem - muito mais cedo do que a maioria dos países africanos (exceptuando a Libéria e os diversos protectorados espalhados pelo continente, que nunca perderam o seu papel de Estado, pelo menos em termos de administração interna, quase sempre no âmbito da “administração dos assuntos indígenas”).          
 
Um dos episódios que é merecedor de ser referido na biografia combatente de Mandela é a sua captura em 1962 (um período em que a sua radicalização ideológica e a aproximação ao marxismo estava efectuada e em que as relações com o SACP assumiram um laço permanente) pelos serviços secretos do apartheid, numa operação em que a CIA colaborou. Este envolvimento foi admitido pela própria agência norte-americana, poucas horas depois da captura de Mandela, através de um operativo sénior desta agência, Paul Eckel, que afirmou num relatório efectuado após a operação: "We have turned Mandela over to the South African security branch. We gave them every detail, what he would be wearing, the time of day, just where he would be. They have picked him up. It is one of our greatest coups." Os operacionais da CIA nesta operação foram comandados por Donald Rickard, um oficial superior da agência, destacado em 1960 para a Africa do Sul e o tema só surgiu na imprensa norte-americana em 1986, no New York Times, pela mão de Andrew Cockburn, actualmente editor do “Harper´s magazine”, de Washington. Actualmente um grupo activista, o “Roots Action” lançou uma campanha que exige á CIA que liberte os ficheiros de Mandela e da África do Sul.  
 
As relações com o apartheid não foram apenas feitas através da CIA. A NSA, durante os finais dos anos 70 e a década de 80, mantinha rotineiramente contactos com os serviços secretos do apartheid e interceptava informação e movimentos de militantes do ANC. Mas as coisas não se ficavam apenas por aí. Um ex-operacional dos serviços secretos sul-africanos, Mike Leach, trabalhou com a CIA em algumas operações conjuntas, que envolveram a produção e utilização de um gás, que depois de inalado provocava morte por problemas nas coronárias e que foi utilizado em vários militantes sul-africanos, principalmente líderes mineiros, activistas sindicais, activistas universitários ou militantes de estruturas organizativas da guerrilha urbana. O mesmo operacional colaborou na produção e distribuição de T-shirts com estampas anti-apartheid, feitas de uma de uma solução de fibra de vidro, que produzia irritações na pele e convulsões nos seus utilizadores, na maioria jovens estudantes. 
 
As relações entre a CIA, a NSA e outras agências norte-americanas e o apartheid estreitaram-se durante o bloqueio imposto á Africa do Sul, recorrendo inúmeras vezes aos corredores israelitas. Para além dos projectos acima descritos, durante este período foi iniciado um projecto de criação de uma “bomba étnica”, baseada no estudo da pigmentação da pele e que produziria efeitos nocivos nas pigmentações pré-definidas nos laboratórios.
 
O relacionamento foi extremamente activo durante a guerra de agressão a Angola e mesmo após a retirada das forças sul-africanas no terreno, em acções de apoio e suporte logístico á UNITA. O mesmo factor foi valido para Moçambique e a RENAMO e encontram-se elementos de cooperação na operação lançada contra as Seychelles e nas diversas campanhas de instabilidade lançadas nos países da Linha da Frente e outros países africanos.  
 
Que deste relacionamento nasceram pontes que possibilitarem as negociações também é um factor a levar em conta, uma vez que a manutenção do apartheid ficou fora de questão e que era necessário conduzir um processo de reformas, que proporcionasse uma transição pacífica (pretendida, por diferentes motivos, por ambas as partes) e garantisse que, após a transição, o controlo dos aparelhos económico e político seriam assegurados. Com estas premissas ficou traçado o perfil da África do Sul pós-apartheid.
 
Da Revolução Democrática (preconizada no programa do ANC e na Carta das Liberdades) restou a Democracia Politica e a separação de poderes (o que apesar de limitativo é um espaço importante de actuação da soberania popular). Da Democracia Económica, Social e Cultural é que nem sombras, apenas o reflexo multicolorido (como um arco-íris) do imenso casino que a “liberalização” ergueu, não sob as ruinas do apartheid (que não ruiu) mas sim sob a pele tratada com os cosméticos aplicados.      
 
Fontes
Gleijeses,Piero Visions of Freedom: Havana, Washington, Pretoria, and the Struggle for Southern Africa, 1976-1991, University of North Carolina Press, 2013.
The Guardian, June, 24, 2013
 

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