quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O Bunker, o mayor Petro, Kalashnikov e o Samurai: Paz, Armamento e Soberania

 

Rui Peralta, Luanda
 
I - Segundo revelou, nos últimos dias de 2013, o Washington Post, a CIA, na Colômbia, tem um plano secreto para eliminação de altos responsáveis das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército Popular (FARC-EP). Nestas operações a CIA conta com a colaboração da NSA e o programa é subsidiado por um fundo de dezenas de milhares de milhões de USD. Graças a este programa (e ao “orçamento assassino”) já foram eliminados 24 guerrilheiros.
 
Iniciado durante a administração Bush, o programa foi reforçado pela administração Obama. As operações homicidas consistem na eliminação física de comandantes e responsáveis operacionais das FARC-EP, utilizando “bombas inteligentes”, que processam as leituras dos dados de GPS, indicativos das posições dos guerrilheiros, antes de estilhaçarem os corpos dos seus alvos. No programa em curso estão previstas operações fora do território colombiano, tendo já sido efectuada uma acção de eliminação física no Equador, em 2008, que provocou a morte do comandante Raul Reys. Recentemente, o ministro colombiano da Defesa, Juan Carlos Pinzón, negou que existisse algum programa entre as autoridades colombianas e as agências norte-americanas, mas que “no passado foram efectuadas acções conjuntas, para enfraquecer a capacidade operativa dos terroristas”.
 
As palavras do ministro da Defesa encobrem os factos. Em 2000 a Colômbia vivia uma espiral de violência. A guerrilha iniciara uma ofensiva sem precedentes, as milícias paramilitares de extrema-direita (financiadas pelo governo oligárquico) participavam com o Exército colombiano em “operações de limpeza”, nas zonas rurais e nas províncias mais afectadas pela acção da guerrilha, o exército. Nas cidades, a polícia e as milícias fascistas assassinavam e torturavam os que eram considerados simpatizantes da guerrilha, sindicalistas, militantes de partidos de esquerda e activistas dos direitos humanos e o país atingia um recorde mundial de homicídios, quando a estes assassinatos juntava-se a violência entre os bandos de narcotraficantes. Nesse ano foi iniciado, pelos USA, o Plano Colômbia, um programa militar não classificado, orçamentado em largas centenas de milhares de milhões de USD, destinados a ajuda militar, reequipamento e treino do Exército Colombiano e dos Serviços de Inteligência, com o objectivo de combater o “narco-terrorismo” das FARC.
 
Em 2003, três norte-americanos, funcionários de uma companhia privada de segurança, que realizavam ações de suporte á DEA nas plantações de coca, foram aprisionados pelas FARC. O governo norte-americano enviou uma equipa da CIA com a finalidade de os encontrar. Com o desenrolar das buscas foi criado um centro que fundia as agências norte-americanas (a CIA, a NSA e as agencias ligadas á Força Aérea, Exército e Marinha) e os serviços colombianos de Segurança do Estado. Resolvida a situação com a libertação (em troca por prisioneiros das FARC, que estavam nas prisões militares colombianas), a “task force” continuou a trabalhar. Foi enviado um chefe de missão (da US Air Force) que redefiniu o orçamento da força e iniciou as operações de assassinato de responsáveis da guerrilha.
 
As operações iniciaram-se depois de analisados os perímetros de segurança dos comandantes das FARC. Os norte-americanos descobriram que estes perímetros estendiam-se por largas milhas para além das bases de guerrilha, o que dificultava a tarefa de eliminação física e de captura dos responsáveis. Para contornarem este problema, os norte-americanos optaram por colocar em funcionamento um sistema de deteccção aérea, experimentada anteriormente no Iraque (durante a 1º invasão) e mais tarde, no Afeganistão, que servia para detectar bombas e combatentes. Na Colômbia o sistema foi utilizado para guiar as denominadas “smart bombs, às quais foi acoplada uma antena, que seguia as coordenadas do GPS, guiando-as até o seu destino.             
 
Demorou algum tempo até que o projecto obtivesse luz verde da Casa Branca. Não por questões relacionadas com os direitos humanos, ou com preocupações relativas ao facto da oligarquia colombiana não respeitar estes direitos e praticar a tortura, o homicídio e o rapto de oposicionistas, sindicalistas e outros activistas. Nada disso. Apenas porque os responsáveis dos USA não “confiavam” nos governantes colombianos e não queriam ceder o código de encriptação do sinal de satélite GPS para as “smart bombs”. Durante três anos, até 2006, os norte-americanos não forneceram os códigos aos colombianos, realizando sozinhos, as operações de execução física. Finalmente a “confiança” foi estabelecida e os códigos foram partilhados com os serviços de inteligência colombianos. 
 
O resultado desta colaboração foi verificado em 2008, com o assassinato do comandante Raul Reys, no Equador. Os serviços secretos colombianos tinham efectuado, desde 2005, um excelente trabalho de infiltração, penetrando com relativa facilidade nas bases da guerrilha, como recrutas. Foi devido a um dos infiltrados que Raul Reys foi detectado no Equador, nas margens do rio Putumayo, na região fronteiriça entre os dois países.
 
O ataque em território equatoriano foi objecto de discussão entre os USA e os colombianos. Ficou decidido usar o argumento da autodefesa (depois dos USA terem debatido com os colombianos as argumentações utilizadas na “guerra contra o terrorismo” postas em práctica após o 11 de Setembro de 2001, cuja base consiste: “se um outro país está dando refugio a terroristas, ou é incapaz de os impedir de utilizar o seu território, deverá ser punido – ou auxiliado – sendo legitima a agressão ou incursão a efectuar”). Os colombianos conseguiram fazer prevalecer o argumento da autodefesa, baseando-se no facto das FARC atacarem a Colômbia, o que daria, hipoteticamente, legitimidade a este Estado de efectuar a acção no estado vizinho. Foi assim que uma chuva de misseis caiu sobre o refúgio de Reys, no Equador, eliminando-o e á sua segurança e comitiva. 
 
Claro que tudo isto causou uma disputa diplomática entre o Equador e a Colômbia. O Equador acusou a Colômbia de violar as leis internacionais, ao bombardear o seu território. A Venezuela acusou a Colômbia de ser um estado terrorista e a Nicarágua cortou relações diplomáticas com os colombianos. O presidente colombiano – Uribe, na época – cedeu às pressões internacionais e pediu desculpas, o que irritou, levemente, os USA que esgrimiram de imediato o argumento da autodefesa (há quem aponte que esta “irritação” dos USA esteve na base da queda de Uribe).
 
A continuidade da cooperação entre as agências norte-americanas e os serviços secretos colombianos levou á criação de uma estrutura norte-americana denominada “Bunker”. Esta estrutura funciona na embaixada dos USA em Bogotá e é exclusiva das agências norte-americanas: CIA, NSA, NGIA (National Geospatial Intelligence Agency) e a DEA. A coordenação com os serviços secretos colombianos é realizada fora do Bunker, embora estes pertencem á estrutura, assim como a MOSSAD israelita (estrutura essencial em termos de formação dos quadros colombianos e na aplicação das tecnologias de vigilância, deteccção e segurança. 
 
Esta estrutura foi transposta para outros países, no âmbito da “guerra contra o terrorismo” e encontra-se estruturas organizacionais similares no Iraque, Afeganistão, Paquistão, Somália, Iémen e México (esta ultima é uma estrutura recente e aparece com um papel reforçado da DEA). Mantém o mesmo perfil: as agências norte-americanas (CIA e NSA) na base e no controlo de toda a estrutura e a coordenação com os serviços locais. Naturalmente que no mundo islâmico não entra operacionalmente o papel da MOSSAD (no México os israelitas surgem na formação e treino dos serviços mexicanos e na implementação das tecnologias de segurança. Também os colombianos marcam presença neste país na colaboração com os serviços mexicanos).  
 
Foi a partir do orçamento do Plano Colômbia que se criou sustentabilidade para programas complementares (como este do Bunker). Seja como for, tanto o orçamento do Plano Colômbia, como dos planos complementares, foram escondidos da opinião pública norte-americana. Para que não acontecessem os escândalos da década de 80 (as guerras secretas dos USA na Nicarágua, Honduras e El Salvador), o Congresso norte-americano não atribui qualquer verba para participação em operações no estrangeiro, às forças armadas dos USA. Como o Pentágono não está a financiar estas operações (uma vez que o Congresso não atribuiu quaisquer verbas), os financiamentos só poderão surgir através da NSA e da CIA, ou seja, do Departamento de Estado.
 
Moraliza-se o financiamento para justificar o crime.
 
II - Mas a vida politica colombiana não é só feita de casos de espionagem, ingerências, agressões e teorias da conspiração (tudo factores que se desenrolam nos cenários e nos bastidores da guerra de classes). Tem também as tricas, as intrigas e as armadilhas inerentes a uma sociedade dominada por uma oligarquia, que sofre a pressão de uma nova elite emergente, que para afirmar as suas pretensões e o seu domínio, necessita da democratização da vida politica colombiana.  
 
Vejamos o caso que envolve o mayor de Bogotá, Gustavo Petro. No início deste mês de Janeiro, Alexandro Ordõnez, Inspetor-geral do Estado Colombiano, nomeado pelo Senado, anunciou que o mayor Petro teria de abandonar o cargo, por alegada má gestão no assunto do lixo. Os apoiantes de Petro (um ex-guerrilheiro do M-19) argumentam que Petro está a ser vítima de um “golpe da extrema-direita” e dezenas de milhares deles ocuparam as ruas de Bogotá.
 
O M-19 foi uma força de guerrilha, que durante mais de duas décadas participou na luta armada, através de acções de guerrilha urbana e nas frentes das áreas rurais. Assinou os acordos que conduziram às eleições para a Assembleia Nacional Constitucional, em 1991. O quadro constitucional iniciado em 1991 revelou-se uma farsa e desembocou numa das fases mais corruptas da História da governação na Colômbia. As milícias paramilitares de extrema-direita tomaram conta das operações e através do assassínio, do rapto e da tortura silenciaram activistas, sindicalistas e militantes de forças de esquerda, enquanto camuflaram as exportações de cocaína para os USA.
 
Petro foi um dos legisladores que denunciou estas e outras situações. Apontou o dedo aos seus colegas parlamentares que ordenaram massacres e apontou as relações existentes entre os traficantes de droga, as milícias, o presidente e o governo e os funcionários públicos corruptos. O presidente Uribe (o chefe das milícias paramilitares da extrema-direita) acusou-o, em 2007, de ser “um terrorista á civil, disfarçado de deputado!”. O ódio de Uribe foi continuado pelo inspector-geral Ordõnez, um antigo apoiante de Uribe e um actual opositor ao processo de paz e às negociações com as FARC. Petro não é acusado de corrupção, nem de conduta criminal, mas de “má gestão”.
 
Vejamos o objectivo desta acusação. Bogotá é a maior cidade do país, Petro tem um passado de resistente e é um dos líderes da esquerda colombiana. Ou seja Bogotá, a maior cidade do país, é governada pela esquerda. Começam aqui as preocupações de Ordõnez, o santo inquisidor do não menos santo ofício da “caça às bruxas”. Por outro lado Petro foi um dos principais negociadores do M-19, quando das negociações com o governo colombiano (já lá vão 24 anos). Estando o governo actualmente em negociações com as FARC (o que permitirá ás FARC participarem na politica colombiana, eleger deputados, responsáveis autárquicos, etc.), Ordõnez (ou melhor os seus donos, os oligarcas que vivem das comissões do narcotráfico, dos latifúndios e da corrupção generalizada) transmite, desta forma, um aviso às FARC: mesmo que vocês elejam representantes, mesmo que vençam eleições, nós (a oligarquia) temos a faca e o queijo na mão (o Senado) e podemos impedi-los de exercerem os cargos.”
 
A 9 de Dezembro dezenas de milhares de apoiantes do mayor Petro manifestaram-se na Plaza Bolivar, no centro da cidade, ocupando esse espaço durante cinco dias. A Guardia Indigena, uma milícia das comunidades indígenas do sul da Colômbia fez-se presente no apoio a Petro, manifestando-se com os seus bastões de madeira. Os sindicatos, as associações de Direitos Humanos e as forças políticas de esquerda foram para a Plaza apoiar Petro. Mesmo os sectores que se opõem a Petro mostram-se preocupados com a arbitrariedade dos inspectores-gerais (se a indiciação for avante, Petro ficará afastado de qualquer cargo público durante 15 anos), iniciando um debate que percorre todos os sectores da sociedade colombiana (inclusive o Congresso) sobre a legitimidade do Senado em nomear inspectores-gerais que depõem eleitos pelo povo. Alguns argumentam que se a Colômbia ratificou a Convenção Americana Para os Direitos do Homem tem de cumprir com os dos procedimentos indicados na Convenção que impede que qualquer responsável público eleito apenas pode ser removido pelo tribunal competente.
 
Com este argumento na bagagem, o mayor de Bogotá viajou a Washington e aí reuniu-se com membros do Congresso dos USA, do Departamento de Estado e da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos, órgão responsável pela implementação da Convenção Americana Para os Direitos Humanos, onde obteve diversos apoios e conseguiu, provisoriamente, a suspensão da decisão do inspector-geral. Enquanto a Comissão Interamericana decide os próximos passos legais a dar, o Comité Colombiano para os Direitos Humanos, uma comissão do US Office na Colômbia, reúne com ministros, congressistas e senadores colombianos, no sentido de discutir a legalidade dos inspectores-gerais, depois do país ter ratificado a Convenção.
 
Estranhos desígnios, os dos USA. Nos palcos internacionais utilizam os Direitos Humanos para combater eventuais ilegitimidades enquanto no terreno utilizam carniceiros para eliminarem os representantes desses mesmos direitos.  
 
III - Enquanto as negociações entre as FARC e o governo colombiano prosseguem e a saga de Petro ameaça fazer correr muita tinta, Mikhail Kalashnikov, o criador da mais popular arma de fogo do mundo, morreu, aos 94 anos de idade. A Kalashnikov (AK-47) tornou-se uma das armas mais usadas (estima-se que sejam cerca de 100 milhões, espalhadas pelo mundo). A simplicidade desta arma, a sua fácil manutenção e os seus baixos custos de produção foram factores que levaram ao seu sucesso. Mas foram estes os factores que a transformaram na arma mais utilizada pelos movimentos de libertação nacional e pelas guerrilhas populares (caso da Colômbia).
 
Em 1942, durante a II Guerra Mundial, Mikhail Kalashnikov (que cresceu no Sul da Sibéria) era comandante de uma unidade de tanques do Exército Vermelho da URSS, quando foi gravemente ferido. Enquanto recuperava dos ferimentos, tomou conhecimento de que Estaline estava a analisar projectos de armas portáteis (espingardas, metralhadoras e revolveres) para equiparem o Exército Vermelho Soviético. Apresentou o seu projecto (delineado no hospital onde recuperava dos ferimentos) e Estaline gostou da proposta. Cinco anos depois, em 1947, a AK-47 foi introduzida no Exército Vermelho e em 1950 tornou-se a arma padrão dos Exércitos da URSS e dos países do Pacto de Varsóvia. Numa entrevista concedida á BBC, Mikhail Kalashnikov referiu que criou a AK-47 para defender as fronteiras da URSS e não para ganhar popularidade ou ser rico (e de facto sempre fugiu da popularidade e nunca foi rico).
 
Vietname, Cuba, Iraque, Egipto, Argélia, Síria, foram governos que adoptaram esta arma, nos anos 60, assim como os movimentos de libertação nacional no continente africano ou as guerrilhas sul-americanas, asiáticas e do Medio Oriente (e as guerrilhas urbanas na Europa, USA e no Japão. A AK- 47 foi utilizada pelas Brigadas Vermelhas, Itália, Facção do Exército Vermelho da Alemanha – vulgo Baader Meinhof – e do Japão, pela ETA, IRA e pelos Panteras Negras nos USA). A AK-47 está presente na bandeira de Moçambique, por exemplo, em honra do movimento de libertação nacional e das guerrilhas conduzidas pela FRELIMO e é, em vários países, um símbolo das longas lutas travada pelos povos contra opressão colonial. No Vietname, durante a guerra, os soldados norte-americanos preferiam-nas às M16, que encravavam constantemente. Na década de 90 a ONU efectuou um relatório onde era referido que dos 49 conflitos observados pela ONU (na época) a AK-47 estava presente em 46.
 
Quando Mikhail Kalashnikov fez 85 anos, Putin homenageou-o com um jantar, em Moscovo. Nesse jantar estava presente uma delegação norte-americana em representação da National Rifle Association, NRA, que tornou o general Kalashnikov membro honorário da Associação. Morreu nove anos depois. Assistiu á importância que a sua arma teve na construção de Estados e na transformação do mundo em curso. Nunca abandonou a ideia de que a AK-47 foi concebida para a defesa de soberanias e nunca quis sair da Rússia.
 
Que descanse em Paz, pois foi em Paz que se esforçou por viver.
 
IV - O mundo é composto por contradições (motor da mudança). Se a Colômbia procura um acordo de paz, o Japão procura readquirir a soberania perdida após a sua derrota na II Guerra Mundial e busca construir um exército. E avança neste sentido no mesmo dia em que Mikhail Kalashnikov morreu. O primeiro-ministro japonês Abe Shinzo, responsável do Partido Democrático-Liberal, é um conhecido “falcão”, conservador, adepto da política nuclear e um nacionalista convicto (de liberal o homem tem muito pouco e de democrata é daqueles que fica-se pelas eleições). Em Dezembro passado prestou homenagem aos soldados japoneses caídos durante a II Guerra Mundial - inclusive aos criminosos de guerra julgados pelo Tribunal Militar Internacional, estabelecido no pós-guerra – e recusa-se comentar as atrocidades cometidas pelo exército japonês na China e na Coreia.
 
Eleito em Dezembro de 2012, Abe Shinzo iniciou um programa de reformas económicas e politicas (estas ultimas ao nível da política externa nipónica e da política de segurança) para além de lançar uma campanha pela revisão constitucional, em particular do artigo 9, que impede o país de assumir a soberania nacional, ao restringir o sistema de defesa do Japão, impossibilitando a organização do exército japonês, reduzido a uma força de autodefesa. O discurso de Abe na homenagem aos soldados japoneses foi comedido e não ultrapassou os limites do razoável, é certo. Mas não foi o suficiente para evitar os comentários da Coreia do Sul e da China. Aliás o comentário do porta-voz chinês, um tal Qin Gang, foram - ao contrário do discurso de Shinzo, que evitou os chavões nacionalistas - demagógicos e fizeram sorrir os mais atentos quando referiu que “alguns políticos japoneses, por um lado, falam de democracia, liberdade e paz e por outro lado, promovem o militarismo e embelezam a agressão japonesa e a história da colonização. Isto é uma blasfémia contra a democracia, a liberdade e a paz (…) O Japão sofrerá as consequências.
 
É, no mínimo, curioso que, quando o assunto é o Japão, a China - que sempre usa um discurso externo carregado de boas intenções - apenas consegue manter uma relação baseada na realidade imposta pelo imperialismo norte-americano. A China só aceita um Japão desmilitarizado, de soberania nacional amputada, um Japão obrigado a ouvir a toda a hora e a todo o instante os crimes perpetrados pelos fascistas japoneses que conduziram o país á catástrofe. A China pretende apenas um Japão que sirva para os mandarins vermelhos de Pequim descarregarem bonitas frases nacionalistas e recordarem o tempo em que o PC Chinês conduzia a luta de libertação contra o Japão, ou exercerem pressão sobre as ilhotas nipónicas, quando lhes dá ataques de histeria ultranacionalista (que caracteriza o discurso dos leaders chineses desde a década de 60, a fase do Mao “maoista”) e xenófoba.
 
É evidente que as intenções de Abe não são as de readquirir soberania nacional. Abe necessita de tocar nesse assunto porque a economia japonesa precisa de um exército como de pão para a boca. E a elite chinesa sabe disto. E sabe, também, que se as restrições á criação de uma força militar japonesa caírem, a economia japonesa beneficiará de um fôlego imprescindível, que colocará o país numa linha directa de competição nos mercados mundiais, principalmente nos sectores da industria de segurança e na industria militar, o que entra em choque com os planos da elite chinesa, que está a lucrar em grande escala com estes sectores e não se apresenta disposta á concorrência japonesa (uma concorrência séria, que poderá comprometer os planos chineses, ao nível da concepção de produto).
 
O Pacifico é hoje o “mare mostram” do Capital e por isso torna-se uma zona sensível onde se desenrolam processos extremamente dinâmicos. Mas estes processos não são, primordialmente, de origem apenas geoestratégica ou apenas geopolítica. São de um novo tipo: geoeconómicos. É esta a realidade do Pacifico e é nesta esfera que as movimentações no (e em torno do) Pacifico se irão desenvolver. Por isso as declarações de Caroline Kennedy, a embaixadora dos USA em Tóquio: "We support the evolution of Japan’s security policies, as they create a new national security strategy(…)”. Neste sentido o discurso chinês e as demonstrações de força dos chineses valem tanto como as declarações insalubres da embaixadora dos USA no Japão: são conversas de accionistas. A sua exuberância é apenas para consumo interno (assim como aquela máxima do marketing: “o que é nacional é bom”. Palavras de mercador, levadas pelo vento).
 
Mas esta realidade geoeconómica não esconde a “shock doctrine” que se desenvolve, silenciosamente, em Tóquio. No passado mês de Dezembro (um ano depois da eleição de Shinzo), dois anos depois do grande terramoto, do tsunami e do acidente nuclear, o parlamento nipónico aprovou a lei de segredo de estado. Este é, efectivamente, um passo preocupante. O país, apos a sequência de tragedias em 2011, vive num clima de insegurança e de ansiedade. Estes acontecimentos fazem lembrar um passado recente na História do país. Em 1923 Tóquio foi destruída por um sismo de grande intensidade. Em 1925 é promulgada uma “lei de preservação da paz”, que proibia as manifestações e instalava a censura sobre assuntos considerados de “interesse nacional”. Alguns meses depois de promulgar a lei, o país viu-se perante a brutalidade da ditadura militar e do estado policial e os povos vizinhos passaram a conhecer a agressividade do fascismo nipónico.
 
Estes fantasmas percorrem o imaginário dos japoneses e dos povos vizinhos. Para uns e para outros é um exercício de memória. Que se espera não ser curta…                        
 
Fontes
Murillo. Mario Colombia and the United States: War, Unrest, and Destabilization. Hofstra University Press, Long Island, New York, 2012 
Hartung, William Prophets of War: Lockheed Martin and the Making of the Military-Industrial Complex. CIP.2013
 

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