Pedro Marques Lopes
– Diário de Notícias, opinião
Primeiro o mais
importante: na sexta-feira, em pleno Parlamento, assistiu-se a mais uma vitória
de quem acha que se deve negar uma família a muitas crianças. Uma vitória dos
que estavam revoltados pelo facto de haver crianças que finalmente viam a
possibilidade de ter como pai ou mãe, de pleno direito, aqueles que o são de
facto. Foi a vitória de quem defende que quem ama, quem cuida, quem trata, por
ser homossexual, não pode ver esse seu papel reconhecido, mesmo que partilhe a
sua vida com o progenitor e a própria criança. A vitória de quem pensa que um
homossexual tem menos capacidades paternais ou maternais. A vitória de quem não
percebe que ser pai ou mãe vai muito para lá do ato de procriar. Foi, em
resumo, mais uma estrondosa vitória do preconceito e da selvajaria. Continua a
não haver lei que autorize a coadoção, nem tão cedo existirá essa
possibilidade.
Tudo isto aconteceu
sob o alto patrocínio do primeiro-ministro e com a fundamental e imprescindível
colaboração de uns senhores e de umas senhoras que não só partilham dos
"valores" acima referidos, como quiseram fazer parte de um
acontecimento que envergonha a história do PSD, achincalha o mandato que lhes
foi conferido pelo povo e insulta a Assembleia da República e a democracia
representativa.
Os deputados do
PSD, que viabilizaram a lei da coadoção, passados alguns meses de a terem
aprovado vêm apoiar um referendo sobre o tema. Não estavam no seu estado
normal? Pensaram durante seis meses, debateram o projeto no grupo de trabalho e
só agora se lembraram de um referendo? E mesmo os que votaram contra, será que
gostaram de ver as deliberações da Assembleia desrespeitadas? E que dizer de um
partido que dá liberdade de voto para a lei e impõe a disciplina de voto para o
referendo dessa mesma lei?
Sou contra todos os
referendos - com exceção de temas de soberania - precisamente por acreditar na
democracia representativa e ter consciência do mal que este instituto tem feito
às democracias. Mas não é isso que está em causa neste assunto. Estamos perante
uma lei debatida no Parlamento, na comissão, na comunidade, que nunca se
levantou sequer a hipótese de referendar.
Perguntarão os
portugueses: para que é que elegemos representantes se eles se demitem de
decidir, e quando decidem o primeiro-ministro desrespeita o Parlamento e trata
os deputados como moços de recados? Sim, está em causa o primeiro-ministro.
Ninguém acredita que um indivíduo que esteve numa comissão durante seis meses
se tenha lembrado de um referendo meia dúzia de dias antes da votação final.
Nem que um projeto da JSD tenha tido um rigor tão apertado a forçar a
disciplina de voto.
E está reaberto
(Guterres já tinha feito uma brincadeira semelhante) um brilhante precedente:
sempre que uma deliberação não agradar a alguém com poder no partido,
bloqueia-se tudo com um referendo. Hugos Soares dispostos a fretes por um prato
de lentilhas nunca faltarão.
Respeito - embora
com muita dificuldade, admito - quem acha que os homossexuais e os seus filhos
devem ter os seus direitos restringidos. Mas tenho ainda mais dificuldade em
aceitar quem acaba de colaborar com essas pessoas e passados cinco segundos faz
uma cara muito indignada e afirma que vai fazer uma declaração de voto. É a
chamada coragem "vai lá tu" - é de justiça destacar Teresa Leal
Coelho, com quem tanto tenho discordado, mas que neste caso mostrou ter mais
dignidade sozinha que a bancada do PSD e CDS juntas. E nem vale a pena falar da
posição do CDS, que lavou as mãos como Pilatos acabando, de facto, por colaborar
na pantomina.
Devem ser em
primeiro lugar os deputados a respeitar e a fazer respeitar a sua condição de
representantes do povo. Em causa esteve um atentado à dignidade da própria
função de deputado. Um homem ou uma mulher que não está disposto a arriscar um
futuro mandato ou acha mais importante seguir as ordens do partido do que
respeitar os cidadãos e a casa da democracia não merece ser deputado.
Mal está um país
quando é o próprio primeiro-ministro a não promover a proteção e direitos das
crianças e a ser patrocinador de preconceitos. Desgraçado o país em que os representantes
do povo desrespeitam o povo que os elegeu, se desrespeitam a si próprios,
insultam a Assembleia da República e se deixam transformar em meros fantoches.
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