domingo, 23 de fevereiro de 2014

Portugal: O QUE DIRIA NO CONGRESSO – Pacheco Pereira




Até que ponto o programa da troika, que o PSD ajudou a delinear, não é o governo do PSD?

José Pachecio Pereira – Público, opinião

Na altura em que este artigo vai ser publicado está a decorrer um congresso do PSD. Terá peripécias, como é habitual, e é natural que algumas me digam respeito. Encontrar inimigos pode ser útil nestes tempos e não há nada com uma boa vaia para animar as televisões.

Alguns dos que arrastaram a imagem do PSD pelas ruas de amargura e lhe tiraram a honra perdida da governação, ou seja, de ser um partido com prestígio de Governo, coisa que se perdeu quando se publicaram comunicados a explicar se tinha havido ou não uma sesta do primeiro-ministro, ou a fazer conferências de imprensa anunciando travessias do Tejo, em vésperas de eleições, sem se saber se eram túneis ou pontes, são especialistas destes números como o da "lei da rolha". Outros acham que a política é como as touradas e que é "corajoso" é bramir, "então venham cá mostrar-se, de peito feito, como forcados" para a gente lhes mostrar o que pensa. Eu sei o que pensam e mais ainda, sei porque o pensam, e sei muito bem o efeito devastador que tem num partido político este tipo de apelo clubístico. É de política que se trata, não é de touradas, nem de futebol.

A comunicação social continua a falar de coisas que não existem há muito tempo, como sejam "barões" e "senadores", uma boa manifestação de ignorância sobre o que é  o PSD nos nossos dias. Uns sabem muito bem que para se falar num congresso tem que se ser delegado ou fazer parte dos órgãos do partido, outros, como os jornalistas, deviam saber. Acresce que mesmo assim há coisas que não se podem dizer em cinco minutos, nem provavelmente têm ali o local ideal para serem ditas. "Medo" de falar num Congresso? Batam por favor a outra porta, porque eu digo sempre as mesmas coisas, espantem-se, seja na Aula Magna seja numa reunião ou debate partidário, institucional ou público, como muitos militantes do PSD sabem muito bem, porque me ouviram. Depois há o anátema de se falar nessa coisa maldita que é a comunicação social. Muitos que se especializaram em fazer quotidianamente fugas para a comunicação social, e são especialistas na intriga, também costumam queixar-se de quem tem acesso à comunicação social, como se fosse um crime fazê-lo às claras e sem usar as "fontes anónimas" para dar opinião.

Deixemos isto que é pouco importante. O que é importante, é outra coisa, é a descaracterização do PSD como partido social-democrata. Eu sei que me repito, mas às vezes é preciso. O PSD é o fruto de uma síntese única na vida política portuguesa entre o liberalismo político dos nossos "liberais" oitocentistas, com sequência nalgum republicanismo moderado, na oposição à ditadura não comunista, na "ala liberal", com o personalismo cristão, compreendendo a doutrina social da Igreja, e por fim, last but not least, a tradição da social-democracia alemã e nórdica, ou seja do princípio de que o estado deve ter uma função essencial de garantir a justiça social, seja criando oportunidades iguais a todos, por exemplo, por via da educação universal e obrigatória, mas acima de tudo pela garantia de que os frutos da riqueza de um país, são distribuídos em primeiro lugar pelos que mais precisam. O PSD considerava-se um partido da "classe média", dos self made man, do mundo do trabalho intelectual e fabril, a que atribua o valor de elemento fundador da dignidade humana. Agora parece um blogue radical de direita, de gente que acha que a culpa de tudo é sempre dos mais fracos, trabalhadores dos estaleiros, funcionários dos escalões inferiores, velhos, pensionista e reformados.

Muitas vezes se diz que o PSD nunca foi social-democrata, mas sim um partido populista, muito mais à direita na sua militância do que a sua elite dirigente. Sim e não, muitas vezes flutuou ao sabor dos tempos e das circunstâncias, sendo que a sua história, o "programa não escrito", não é unívoca. Porém nunca abandonou a matriz da sua génese e, nas lideranças mais consistentes, seja de Sá Carneiro, ou Mota Pinto, ou mais tarde de Cavaco Silva e Manuela Ferreira Leite, nunca pôs em causa o seu programa identitário. É alias esse programa que define o papel sui generis do PSD na vida política portuguesa e que foi capaz de lhe dar o papel de partido reformista que teve em momentos essenciais.

É isto que está em risco, porque não se trata apenas de fazer uma interpretação mais "liberal" do programa social-democrata, o que seria justificado pela actual conjuntura, mas de substituir o programa genético por uma outra coisa espúria e alheia, mais própria de algum conservadorismo mais agressivo e daquilo que se considera ser o "neo-liberalismo", meio Tea Partymais escola de Chicago, à portuguesa, claro. Tal está a ser feito a partir do governo, mas está a impregnar o partido, não por convicção ideológica, mas porque o papel crescente da partidocracia no interior dos grandes partidos portugueses torna os quadros partidários profissionalizados dependentes dos lugares com origem no poder. Podia-se considerar que se trata apenas de uma situação de emergência em que os governantes do PSD estão apenas a tentar fazer sair o país da crise tornando-se executantes aplicados de programa datroika com que não concordavam. Mas quantas declarações políticas já foram feitas, desde a que dizia que "o programa do PSD era o programa da troika", mostrando que não se trata de uma comunhão por necessidade, mas sim numa concordância de fundo, que vai muito para além das circunstâncias actuais? Até que ponto o programa da troika, que o PSD ajudou a delinear, que o PSD completou nas negociações com Passos e Gaspar e a troika, não é o governo do PSD?

Se virmos bem, a fonte dos discursos de aceitação pacífica de redução da soberania, de diminuição dos poderes do parlamento português, de um futuro de vinte ou trinta anos em que a possível recuperação económica não implicará a recuperação social, em que não há uma palavra para o trabalho, para o seu valor social, em detrimento de uma repetição monocórdica da palavra "empresas", o discurso de divisão entre jovens e velhos, o efectivo abandono de qualquer preocupação ou medida contra o empobrecimento dos desempregados de longa duração ou os "desencorajados", é o governo do PSD e Primeiro-ministro.

Não, não é patriotismo. Não, não salvará o país, bem pelo contrário. Não, não é aceitável num partido social-democrata. Não, a continuar assim acabará com o papel histórico do PSD na sociedade portuguesa. Tenho a certeza que muitos militantes do PSD presentes no Congresso lerão este artigo. Mais: muitos sabem que eu tenho razão e partilham das mesmas preocupações. Aliás seria isto que eu diria se lá estivesse. Nem mais nem menos.

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