sábado, 29 de março de 2014

RACIALISMOS COMO RACISMO (i)



Inocência Mata* - AfroPress

Começo por lembrar um livro do britânico Paul Gilroy, Against Race: Imagining Political Culture beyond the Color Line [ii] (2000), um livro provocativo em que ele, para mostrar a perversidade da identidade com base na cor da pele, renuncia, irônicamente, à raça. A questão que se põe é: renunciando à raça, liquida-se o racismo?

Lembro esse livro por causa de uma interessante matéria num diário português [iii] – Portugal onde era (e ainda é em muitos espaços, mesmo na academia) “tradição” combater o racismo não falando dele, tradição, aliás, durante muito tempo “seguida” por Brasil (quem não se lembra do discurso oficial de que no Brasil não há racismo?).

Ora, a matéria parece ter chamado, há poucos dias, a atenção de muita gente, entre ela uns tantos ex-alunos meus – e este facto deixa-me contente (porque revela que, de certo modo, despertaram para a problemática e já não se portam como um “colour blind”, isto é, começaram a ver a realidade para além do idealismo das palavras): pois como dizia, para além de um e-mail que um amigo, que vive em Londres mas sempre atento ao que se passa em Portugal, me enviou, recebi a mesma matéria de três ex-alunos de um seminário de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa denominado Multiculturalismo e Dinâmicas Interculturais, em que passamos em revista sociedades em que a multiculturalidade, nem sempre vista de forma positiva, tem sido gerida de modos muitos diferentes.

Sendo o Brasil um caso impositivo (pela sua proximidade e pela sua forte presença no nosso horizonte histórico), obviamente que o caso brasileiro é muitas vezes citado nas nossas sessões.

O título da matéria jornalística é “Quem quer ser negro no Brasil” e faz-se de histórias de vida, cada uma mais interessante do que a outra. Mas para mim a mais sensível é a primeira, uma história de vida de uma jovem cuja vida, ainda curta (ela tem 32 anos), dinamiza uma história de uma intensa densidade paradigmática da condição do negro no Brasil.

A história está bem contada pelas jornalistas, a matéria é de uma inteligência tão sensível que comove: é a história de Ariana, de Salvador, a “caçula” de 12 irmãos, negra e favelada, que foi a primeira a ir para a universidade. E se tornou médica. Foi esta primeira história que me obrigou a ler de uma “assentada” o artigo…

Antes de prosseguir quero contar uma experiência: quando comecei a visitar o Brasil, o que faço hoje com muita frequência para meu gáudio (porque gosto muito de ir ao Brasil, de trabalhar no Brasil e de interagir com colegas brasileiros, alguns grandes amigos, dos melhores que tenho), incomodava-me a forma como os meus colegas e amigos me apresentavam, quer para familiares quer para amigos seus que não fossem nossos colegas: “Olhe, esta é a Inocência, ela é africana, professora na Universidade de Lisboa, professora de literatura, ela tem doutoramento em isto e aquilo, escreveu isto e aquilo”. Como aquilo me incomodava!

É que eu, quando apresento alguém, um amigo a outro amigo ou não, não me lembro de desfiar as habilitações literárias desse amigo: digo de onde é e, dependendo do contexto, o que faz. De resto, é um amigo. Até que um dia lhes disse que me sentia incomodada com a forma como eles me apresentavam. E um deles me respondeu: “Vou ser honesto com você, Inocência. A gente está protegendo você. É que dizendo que você é africana [o que sou] valoriza logo você e ainda mais se você é professora universitária. É que aqui a gente diz que não, mas as pessoas são muito preconceituosas (diga-se de passagem que este colega foi, ainda nos anos 90 do século XX, dos poucos que já pensavam assim pois o normal, entre a maior parte dos meus colegas, mesmo os não brancos, era o discurso de que no Brasil a discriminação é social – e não racial).

Bem, ser confundida com empregada doméstica não é coisa estranha para mim no Brasil (nem para a médica cubana de quem uma jornalista, Micheline Borges , disse ter “cara de empregada doméstica” e não de médica [iv]! -, pois como dizia, basta(va) entrar sozinha num prédio, normalmente de um colega meu que felizmente tem um nível de vida acima da maioria…

Fecho parênteses sobre a minha aprendizagem como professora universitária negra no Brasil para voltar ao artigo cuja introdução (lead, na linguagem jornalística) é este:

Uma médica que nos hospitais é confundida com empregada de limpeza e cresceu a ouvir “negro não presta”. Um magistrado que foi o primeiro negro num tribunal superior do país em Brasília. Um doutorado a quem pedem para arrumar o carro. Uma festa popular, Iemanjá, onde o Brasil misturado parece o país da democracia racial. Breve geografia do racismo à brasileira e a pergunta: pode o Brasil eleger um Presidente negro em breve?

Lembram-se da polémica do Obama se ele fosse africano? Lembram-se por que a polémica incomodou tanta gente, eu incluída? Uma das razões foi precisamente não se ter comparado um continente, a África – em que existem vários Obamas, deve lembrar-se – com um outro, a Europa, em que não há Obama nenhum e que deveria haver, senão Obamas, pelos menos mais políticos com visibilidade, mais deputados, mais  ministros… Para já não falar de juízes, como Joaquim Barbosa, o primeiro negro a presidir ao Supremo Tribunal Federal.

Quando é que numa sociedade em que as relações são racializadas não há racismo?

Na foto: Inocência Mata

*É Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa na área de LAC - Literatura Artes e Culturas

[i] Crónica lida aos microfones da RDP-África no dia 27 de Março de 2014, Adaptada.
[ii] Cambridge, Massachusetts: Harvard University Press, 2000.
[iii] Jornal Público, (Lisboa), 23 de Março de 2014.
[iv] Um colega e amigo meu brasileiro, negro, disse-me que realmente o Brasil estava mudar. Por dois motivos: primeiro, “Minha amiga, primeiro você deve ver que ela disse o que geralmente aquela elite preconceituosa (e não apenas) diz – portanto, o pecado dela foi ter dito o que muita gente pensa; mas o Brasil está a mudar porque há 10 anos não haveria essa indignação toda. Seria: Ah, ela não devia ter dito, mas não é preciso esse sururu todo, ela não disse por mal”. E não é que eu própria já ouvi condescendências dessas a propósito de afirmações semelhantes?! Mas eu só gostava de saber como é cara de médico…

- Gentileza: Alberto Castro

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