sábado, 19 de julho de 2014

A ESTEPE (1)



Rui Peralta, Luanda

I - Entre os anos 1000 e 1500, três grandes blocos integravam o sistema  mundo: a China, a India e o Medio Oriente (que compreendia o Egipto, a Grécia e os territórios que constituem hoje a Síria, o Líbano, Israel, Jordânia, Iraque, Irão e Turquia). As "rotas da seda" (como são conhecidos estes intercâmbios) atravessavam a região meridional da Eurásia, a Ásia Central (do mar Cáspio à China) e pelo Sul a estepe cazaque (actual Cazaquistão e parte da China) e a Mongólia. A esta intensidade de intercâmbios juntar-se-ia a Europa, um pouco mais  tarde, afirmando-se como um quarto bloco em muito rápido crescimento contrastando com a estagnação relativa do Médio Oriente, factor que levou á decadência destes intercâmbios, o que teve duas consequências: a) o Medio-Oriente passou a ser considerado, pelos Europeus, como região de passagem e não como um objectivo; b) A China e a India deixaram de considerar o Ocidente como mercado de interesse, privilegiando o Oriente e constituindo periferias na Península Coreana, Japão, Indochina e Sudeste asiático.

Os dois polos Orientais (China e India) não reatam os intercâmbios com o Médio Oriente e alheiam-se da Europa e esta, por sua vez (com a França à cabeça), busca a sua penetração no Medio Oriente através das cruzadas (1100-1500), defrontando-se com Bizâncio e com o Califado árabe-persa. Derrotados, os europeus são expulsos da região e obrigados a contorná-la, mas as cruzadas são um factor importante e de peso na decadência do Medio Oriente, acabando por facilitar a transferência de poderes para as tribos turcomanas, que destroem Bizâncio e o Califado, substituindo-os (1400-1450) pelo Império Otomano. Tiveram, as cruzadas, ainda um efeito positivo para as cidades italianas que com o enriquecimento obtido pela sua função de intermediários, acabam por dominar o comércio marítimo mediterrânico.

II - A Eurásia toma um papel determinante entre 1250 e 1500 (preenchendo o vazio deixado pelo Médio Oriente) e a sua crescente importância marginaliza as rotas da seda - que ligavam o  Médio Oriente à China e à India - em benefício de uma rota directa à China através da Eurásia dominada pelo Império Mongol (rota de Marco Polo). A nova dinâmica euroasiática conduz à intensificação dos conflitos entre os russos  (habitantes dos bosques) e os turco-mongóis (vindos das estepes) para controlo da região. Destes conflitos advém a formação do Estado russo, liberto do jugo mongol.

Os russos expandiram-se rapidamente através da Sibéria, conquistam as estepes do sul até aos mares Negro, Cáspio e Aral, chegando ao Cáucaso, dai enveredando para a Transcaucásia e Ásia Meridional. Nessa fase a Eurásia é a ponte entre a Europa e a China, função que termina em 1500, quando a Europa inicia a rota do Atlântico. Os russos respondem á marginalização da Eurásia de uma forma original: o monge Philopheus proclamou a Terceira Roma em Moscovo, no ano de 1517, ou seja, pouco depois da abertura da via marítima europeia para a Ásia, desempenhar um papel exclusivo na História da região, substituindo Bizâncio ao proclamar-se como "centro espiritual" da Igreja Ortodoxa (este papel messiânico alternativo foi, séculos depois, reivindicado pelo Estado Soviético, considerado "farol da humanidade"). 

A Rússia foi, assim, construída numa síntese eficaz que alternava entre o encerramento em si própria e a abertura ao Ocidente. Este processo construtivo auto centrado evitou que a Rússia se tornasse periférica (tanto em relação à China como da Europa) mantendo, simultaneamente as suas periferias intactas e "russificadas". Neste sentido a construção do Estado russo é comparável á dos USA, dois espaços que se organizam como continentes e que obedeciam a um poder político único (opção trilhada pela China de Mao). Esta comparação dos processos de criação do Estado (a solução auto centrada) não deve, no entanto, conduzir á especulação ideológica acerca dos resultados obtidos por ambos os Estados (Rússia e USA), devido a três factores principais: a) os USA não tinham uma herança feudal; b) os USA, "isolados" a norte do Novo Mundo, estavam afastados das querelas europeias; c) os USA, no continente americano, apenas tiveram um adversário, o México, débil, rapidamente tornado em presa fácil e perdendo para o seu vizinho do norte metade do território. 

A Rússia, por sua vez, tinha uma forte herança feudal (que a acompanhou até ao século XX), não escapou - nem evitou - aos conflitos europeus e teve que defrontar fortes adversários, sendo evadida pela França napoleónica, sofreu a afronta da Crimeia e as invasões de 1914 e 1941. Desde a sua fundação como Estado, a Rússia, opta por cruzar a sua História com a da Europa, nunca se encerrando na Eurásia (o que seria fatal para o seu desenvolvimento) e pretendendo ser tão moderna (europeia) quanto possível. Aliás não foi por acaso que a águia bicéfala - símbolo do império russo czarista - tinha uma das suas cabeças viradas para o Ocidente e que a URSS optasse pelo marxismo como ideologia...

III - Aos olhos da Europa a Rússia foi a sua antítese ideológica. A ideologia europeia fundamentava-se no binómio "liberdade europeia / despotismo oriental" e as suas origens remontam a Aristóteles, que caracterizava o despotismo (o poder dos senhores) como uma forma de governo assente nas relações de servidão e própria do Oriente. Aristóteles considera que o despotismo é legítimo, uma vez que predomina nos povos "naturalmente servis" do Oriente, súbditos que aceitam o poder das suas senhorias sem se lamentarem.

Este pressuposto de Aristóteles atravessou toda a teoria politica ocidental até aos nossos dias, passando por Tomás de Aquino, Maquiavel, Bodin, Montesquieu e Hegel. Nos séculos XVI e XVII Moscovo foi considerado o exemplo da monarquia despótica, oposta ao modelo de monarquia régia que afirmou os Estados europeus.  Com Pedro o Grande e depois com Catarina, a Rússia aproxima-se da Europa, mas não ao ponto desta a tirar da "lista" dos estados despóticos. Durante as guerras napoleónicas a Rússia participa de pleno direito no concerto das nações europeias (ao ponto do seu exército entrar em Paris) mas nem mesmo assim a Europa colocou reservas, considerando a Rússia um parceiro passivo que entrou tarde no convívio das nações europeias. Na época os escritores políticos europeus que apoiavam a Rússia eram da escola da contrarrevolução, para quem o binómio liberdade / despotismo era já despropositado, propondo no seu lugar o binómio "legitimidade / revolução", criticando a Revolução francesa, gente para quem Napoleão era o anticristo e o czar Alexandre  um "salvador místico".

No século XX a revolução russa reformulou o binómio liberdade / despotismo. A teoria da natureza servil dos povos do Oriente   é abandonada e o seu lugar ocupado por pressupostos mais elaborados e análises mais coerentes. Factores como a necessidade de regulamentar a irrigação das grandes planícies asiáticas, ou como Bizâncio influenciou a formação do Estado russo trouxeram á ideologia ocidental outra compreensão da Rússia e do Oriente. O termo despotismo é abandonado e em seu lugar foram considerados conceitos como os de autocracia, totalitarismo ou regime burocrático. No entanto o modelo bipolar Ocidente / Oriente permanece nos binómios reformulados: mundo livre / comunismo ou liberdade Ocidental / autocracia Oriental.

IV - Em Agosto de 1991 Boris Ieltsin subiu a um tanque para proclamar o fim da URSS que tombava por efeito das suas contradições internas e das intensas dinâmicas externas da época. As reformas de Gorbatchev desencadearam uma série de mecanismos que acentuaram a decadência  do socialismo real, desnecessário para os novos processos de reprodução de capital, que dispensavam os modelos de competitividade implementados na II Guerra. A economia da URSS foi transformada num monte de escombros, sujeita a um controlo estatal destroçado, em avançado estado de desintegração.

O vazio deixado pelo colapso do controlo estatal foi ocupado pelo mercado informal, por ladrões e contrabandistas. Três anos depois a economia russa encontrava-se num caos absoluto. As fábricas fechavam por falta de matérias-primas ou de produtos intermediários, de componentes, de mercado, de capital ou de todos estes factores e elementos em conjunto. A extracção petrolífera diminuiu por falhas no fornecimento de produtos essenciais na actividade e a agricultura foi negligenciada, votada ao abandono. O sector mineiro estava paralisado devido às constantes greves dos mineiros que revindicavam melhores condições de trabalho e de segurança das minas (factor completamente negligenciado pelas novas autoridades, o que transformava as minas em enormes túmulos), pelo fim dos atrasos constantes nos pagamentos de salários e prémios e melhores salários.

A produção e os rendimentos eram inferiores aos de 1991 e a inflação consumia pensões e salários. O desemprego aumentava de forma incontrolável, a precariedade do trabalho era norma e os russos tinham menos que comer, vestir e um nível de consumo muito inferior ao de 1987 - ano em que Gorbatchev iniciou as reformas - e a 1985, ano em que Gorbatchev chegou ao poder. As empresas privadas foram vendidas por valores irrisórios, o exército estava em desintegração e o material bélico e equipamento militar era inserido no mercado informal. A corrupção contaminou todo o tecido social e foi responsável por cerca de 100 milhões  de USD transferidos para contas bancárias no exterior do país, entre 1990 e 1995, privando a economia russa de moeda corrente.

Traficantes, proxenetas e prostitutas louras passeavam-se em carros desportivos, marcavam presença em restaurantes luxuosos, trajando fatos Armani, com contas bancárias em Viena de Áustria, apartamentos em Manhattan e bons amigos no Kremlin (muitos deles - e delas - íntimos amigos de Ieltsin. Por todo o país "homens de negócios" fazem tráfico de matérias-primas roubadas, desviados para exportações privadas e os gestores roubavam as empresas onde trabalhavam, transferindo a propriedade das mesmas para o seu nome. Outros colaboravam com estrangeiros, importando bens de consumo, contrabandeando e exportado armas. Milhares compram e vendem sem pagar impostos. As jovens empresas privadas sofrem a concorrência desleal de empresas ineficientes, suportadas por funcionários públicos corruptos e pelas mafias locais.

Esta foi a Rússia que o Ocidente considerou - pela segunda vez na História (a primeira vez foi a Revolução liberal de Fevereiro de 1917) - como "amiga", sendo Ieltsin visto pelo Ocidente como um "bêbado simpático"…E o Ocidente regozijou-se ao ver Ieltsin, ridículo, a dançar "rock n'roll" nos comícios eleitorais... 

Continua

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