sábado, 19 de julho de 2014

Malaysia Airlines: O que estava a fazer um avião comercial numa zona de conflito?




Desastre do MH17 está a acender debate sobre segurança na aviação. Algumas companhias evitavam a região há algum tempo. Outras só agora estão a dar meia volta.

Uma das perguntas que se impõe perante o desastre do MH17 continua por responder: o que estava a fazer um avião comercial numa zona de conflito? Para uma parte da indústria, sobrevoar o Leste da Ucrânia era, até aqui, uma prática diária, até porque a região não estava oficialmente interdita. Para a outra parte, já há algum tempo que aquela área tinha sido riscada do mapa.

Hoje, porém, a primeira parte da indústria da aviação teve de se render às evidências, enquanto continua o jogo de atribuição de culpas que opõe o Governo de Kiev e os rebeldes separatistas pró-russos pelo abate do avião onde seguiam 298 pessoas e que voava a uma altitude de 10.000 metros na região de Donetsk.

Voos de companhias de aviação de todo o mundo foram e continuarão a ser reprogramados para evitar o espaço aéreo do Leste da Ucrânia. Só após o desastre, ocorrido nesta quinta-feira, esta tal parte da indústria riscou a região do mapa, que era até aqui uma zona “normal” de sobrevoo de muitas ligações entre a Europa e a Ásia.

A Lufthansa anunciou nesta sexta-feira que iria desviar os quatro voos que atravessariam os céus do Leste da Ucrânia. “Estamos a acompanhar a situação para planear a operação dos próximos dias”, referiu um porta-voz da companhia alemã, citado pela CNN.

Já a Emirates anunciou no seu site que um voo que deveria ter aterrado em Kiev ainda na quinta-feira regressou ao aeroporto de origem, no Dubai, por “preocupações de segurança”. A companhia decidiu suspender todos os voos para a capital da Ucrânia “com efeitos imediatos”.

A Ukraine International acaba de emitir um comunicado em que informa que “decidiu desviar todos os seus voos daquela região para assegurar a segurança dos passageiros, tripulação e aeronave”, a partir das 18h locais de quinta-feira. Os aviões da companhia estão, desde então, a voar a 200 quilómetros daquela área.

Também a norte-americana Delta Airlines tomou a mesma medida. Por razões de segurança, a transportadora anunciou que “não está a sobrevoar o espaço aéreo da Ucrânia e está a acompanhar a situação relativa ao voo 17 da Malaysia Airlines. A portuguesa TAP não utiliza o espaço aéreo ucraniano.

Normal, para alguns

A “normalidade” com que, até quinta-feira, sobrevoavam aquela região tem sido justificada pelo facto de não ter sido interditada pelas autoridades internacionais. O único aviso de segurança emitido, no início de Abril, pelo Eurocontrol, Agência Europeia para a Segurança na Aviação e Organização da Aviação Civil Internacional circunscrevia-se à área de Simferopol, na sequência da anexação da península da Crimeia pela Rússia.

O MH17 caiu no Leste da Ucrânia. Além disso, e mesmo que o alerta cobrisse essa área, tratava-se apenas de uma recomendação às companhias de aviação, sem carácter obrigatório.

Foi por isso que, quando questionado sobre os riscos de sobrevoar uma zona de conflito, o ministro dos Transportes da Malásia respondeu, nesta sexta-feira, que “é uma rota sobrevoada há muitos anos”, acrescentando que “é segura e é por essa razão que foi usada”.

Mas, para outra parte da indústria, os riscos falaram mais alto. Já há algum tempos que companhias como a Qantas, Cathay Pacific, Air Berlin, China Airlines e Asiana tinham decidido suspender os sobrevoos por todo o espaço aéreo ucraniano, noticiou a Reuters.

Um porta-voz desta última transportadora sul-coreana explicou à agência que, “apesar de o desvio aumentar o tempo e os custos do voo”, a decisão foi tomada “por motivos de segurança”. O mesmo responsável acrescentou que os aviões da companhia têm de percorrer mais 150 quilómetros para evitar sobrevoar o país desde 3 de Março.

Várias questões ficam por responder: a decisão de sobrevoar uma zona de conflito deve ser das companhias de aviação? As autoridades deveriam ter ido mais longe, na região sobre a qual emitiram o alerta e na obrigatoriedade associada ao aviso? E qual o papel dos governos nisto?

O jogo de culpas – agora da segurança

Perante o cerco à segurança da aviação que se montou com o desastre do MH17, a Associação Internacional do Transporte Aéreo emitiu nesta sexta-feira um comunicado em que assegura que “é a principal prioridade”. “Nenhuma companhia vai colocar em risco a segurança dos seus passageiros, tripulantes e aviões por questões de poupança de combustível”, lê-se na mensagem deixada pelo presidente, Tony Tyler.

Para o responsável, têm de ser “os governos e as autoridades de controlo aéreo a prestar aconselhamento sobre o espaço aéreo disponível para operar” e as transportadoras “fazem o planeamento de acordo com essas limitações”. “É muito semelhante à condução de um carro: se a estrada está livre, assume-se que é seguro. Se está fechada, encontra-se uma rota alternativa”, exemplificou.

No entanto, há quem aponte o dedo às próprias companhias. Geoff Dell, perito em segurança na aviação da Universidade de Queensland, disse à Sky News estar “estupefacto”. “Não deveriam colocar em risco, e sem necessidade, os seus activos mais preciosos: os passageiros, os funcionários e os aviões”, declarou.

Bruxelas anunciou, ao final da manhã desta sexta-feira, que activou a Célula de Coordenação de Crise da Aviação Europeia, na sequência do desastre. "Activei a célula de crise de modo a haver uma coordenação apropriada dos efeitos no espaço aéreo para garantir a segurança dos voos", anunciou Siim Kallas, comissário europeu para os Transportes e também vice-presidente da Comissão Europeia.

Dois acidentes em quatro meses e a sobrevivência da Malaysia Airlines parece estar em risco


A já instável companhia de aviação malaia dificilmente conseguirá reerguer-se do desaparecimento do MH370 e do acidente do MH17.

Longe de se recompor do embate causado pelo desaparecimento do voo MH370, a 8 de Março, a Malaysia Airlines parece ter definitivamente entrado em rota de crise. A companhia, detida maioritariamente pelo Estado, está a ser castigada a todos os níveis pelos dois acidentes que protagonizou no curto espaço de quatro meses. Os cenários de auxílio financeiro e de venda a privados estão em cima da mesa.

Na sexta-feira, assim que a bolsa da Malásia abriu, as acções da transportadora aérea caíram a pique, atingindo uma queda máxima de 17% e encerrando com uma perda de 11%. Uma tendência que, apesar de mais vincada, segue o movimento das acções da empresa desde o desaparecimento do voo que ligava Kuala Lumpur a Pequim, com 239 pessoas a bordo.

A maior perda, do ponto de vista financeiro, é sentida directamente nos bolsos dos contribuintes do país, visto que o Estado detém 69% do capital da companhia de aviação. Mas o impacte para os cofres públicos da Malásia pode não ficar por aqui: especula-se sobre um eventual auxílio financeiro, como já aconteceu no passado, aliás. O cenário de desmantelamento da transportadora, com a posterior venda a privados dos activos rentáveis, também é referido por alguns especialistas na imprensa internacional.

Um acidente, especialmente um que seja fatal, é o que de pior pode acontecer a uma companhia de aviação. Dois acidentes mortais, num espaço tão curto de tempo, levam a crer que a empresa terá muitas dificuldades reerguer-se. Até porque, tanto o desaparecimento do MH370, como o presumível abate do MH17 no Leste da Ucrância, estão envoltos num enredo muito particular e estão entre os piores da história da aviação comercial.

A tudo isto soma-se o facto de, mesmo antes dos desastres, a Malaysia Airlines já se apresentar como uma transportadora aérea em dificuldades, com anos consecutivos de prejuízos e uma aparente apatia face às investidas da concorrência. Desde 2012 que tinha em marcha um plano de reestruturação, que levou a profundos ajustes na oferta.

Os últimos resultados conhecidos, já depois do desaparecimento do voo MH370, mostraram um agravamento das perdas da companhia, que no primeiro trimestre deste ano registou um resultado líquido negativo de 137,4 milhões de dólares (cerca de 101,6 milhões de euros) – um agravamento de quase 60% face ao mesmo período de 2013.

Apesar de a empresa ter apostado numa estratégia agressiva de preços para manter o tráfego, os dados da procura comprovam os inevitáveis impactos do acidente de Março. Dois meses depois, e num momento em que a indústria está a crescer (especialmente em regiões como a Ásia), o número de passageiros caiu 4%, o que correspondeu à perda de quase 55 mil clientes.

Outro factor vai pesar no futuro da Malaysia Airlines: as eventuais indemnizações que poderá ter de pagar aos familiares dos passageiros do voo que se despenhou na Ucrânia na quinta-feira. Confirmando-se que o MH17 foi abatido, a aeronave estará protegida pelo seguro, mas não parece claro que assim seja no que diz respeito às pessoas que seguiam a bordo. E, neste momento, a companhia está a pagar a factura do desaparecimento de Março, já que, depois de ter oferecido compensações de cinco mil dólares, foi obrigada a subir a fasquia para 50 mil.

Foto: AFP

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