quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

EUA: A BATALHA DE FERGUSON



António Santos – Diário Liberdade

A batalha de Ferguson é também uma batalha pelo reconhecimento dos negros como seres humanos com direitos. É uma batalha pelo desmantelamento da secular canga das instituições que existem para manter os negros «no seu lugar». É uma batalha contra a pobreza.

 Quando, em 1950, os EUA decidiram invadir a Coreia, o presidente Truman não lhe chamou uma guerra, que exige a aprovação do Congresso, mas sim uma «acção policial». Cem dias depois do homicídio de Mike Brown, um jovem negro, pobre e desarmado, os EUA continuavam a aguardar, em calma tensa, pela decisão dos tribunais de acusar ou ilibar o assassino confesso, o polícia branco Darren Wilson. Durante cem dias um jurado investigou se um polícia deve ser julgado por matar, com doze tiros, um jovem com as mãos no ar, à frente de dezenas de testemunhas. Na antecipação vesperal do veredicto, o governador declarou o estado de emergência, foram chamados milhares de militares da Guarda Nacional e as ruas foram ocupadas por tanques e polícias armados com material de guerra. Como em 1950, Obama não lhe chama uma guerra. E nem por isso deixa de o ser.

 Finalmente, nesta terça-feira, foi conhecida a decisão de não levar Darren Wilson à barra do tribunal, uma decisão já esperada e que vem reafirmar o velho axioma do sistema judicial americano: nos EUA assassinar um negro não é crime. Não são precisos cem dias para compreender que homicídio é crime, mas são precisos cem dias para arranjar uma forma de nos convencer do contrário.

Crónica de uma injustiça anunciada

 Conhecida a decisão na noite de terça-feira, dezenas de milhares de pessoas saíram às ruas de 38 estados, desafiando corajosamente as provocações da polícia militarizada com mais de 150 manifestações que, de costa a costa, enfrentaram a mais brutal repressão. Em Ferguson, por exemplo, a polícia lançou litros de gás-pimenta sobre zonas residenciais e durante toda a noite carregou sobre os manifestantes. Contudo, o principal ataque contra as comunidades afro-americanas chega agora na forma de uma campanha mediática com proporções de guerra psicológica. Tal como acontece sempre que um jovem afro-americano é assassinado, a comunicação social da classe dominante tem-se dedicado a desumanizar o morto, escarafunchando a sua biografia e procurando justificações racistas para o homicídio. Por outro lado, a abjecta campanha que caracteriza os manifestantes como «animais selvagens» e identifica, no seu todo, a cultura afro-americana como criminosa e preguiçosa, mostrou o alcance da fractura racial nos EUA: à semelhança do teste de Roschach, em que diferentes pessoas vêem imagens distintas num borrão a preto e branco, também a percepção da população estado-unidense sobre Ferguson permanece profundamente dividida. Afectadas por uma miopia política sem paralelo no mundo, segmentos significativos da América branca mostram-se incapazes de compreender o sofrimento dos negros.

 Alicerçada no genocídio e na escravatura, a História dos EUA é indissociável do racismo. Para compreender a formidável indignação com que se levanta agora a luta dos afro-americanos, há que entender as suas feridas profundas, que nunca puderam sarar. Feridas causadas por um sistema económico que depende estruturalmente da opressão institucional dos negros.

 Ainda há menos de cem anos e a poucos quilómetros de Ferguson, St. Louis assistia a um pogrom contra os operários afro-americanos. Num só dia, 150 pessoas foram linchadas, incluindo 39 crianças cujos crânios foram esmagados com pedras. Mais de metade destes crimes teve a assinatura da polícia. Ontem como hoje, as forças policiais estado-unidenses são o mais tenebroso e violento reduto do racismo e da segregação, mantendo em carne viva o legado dos linchamentos, assassinatos e perseguições. E ontem como hoje, os afro-americanos não esquecem nem baixam os braços.

Com as mãos no ar e os punhos cerrados

 A mais conhecida palavra de ordem que em Agosto emergiu de Ferguson foi «Mãos no ar! Não disparem». Porém, à medida que o movimento amadureceu, as manifestações foram ganhando novas palavras de ordem e as mãos abertas no ar foram-se fechando. Nas manifestações de terça-feira, por exemplo, ouviu-se gritos pela subida do salário mínimo e pela liberdade sindical. Numa evidente tomada de consciência de classe, Ferguson soube distanciar-se dos tradicionais líderes afro-americanos do Partido Democrata como Jesse Jackson e Al Sharpton e decidiu construir um movimento independente, cujas principais reivindicações são sociais e económicas.

 A batalha de Ferguson já não é só pela acusação de Darren Wilson. É uma batalha pelo reconhecimento dos negros como seres humanos com direitos. É uma batalha pelo desmantelamento da secular canga das instituições que existem para manter os negros «no seu lugar». É uma batalha contra a pobreza, que empurra milhões de jovens negros para as prisões. É uma batalha pela habitação, pela saúde e pela educação gratuitas, de qualidade e para todos. É uma batalha contra o racismo. É uma batalha de todos.

[Artigo tirado do sitio web portugués ‘Avante’, núm. 2.139, do 27 de novembro de 2014]

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