quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

FILHOS DAS NUVENS



Nuno Ramos de Almeida – jornal i, opinião

Depois da manifestação privada dos governantes longe dos povos, e rodeada de guarda-costas, devíamos perceber que o fundamentalismo é mais que um bando de loucos

Não parece que estranho que os povos do livro, Torah, Bíblia e Corão, tenham vivido em zonas de deserto. Quando olhamos as estrelas no meio das dunas tudo parece mágico. As constelações têm densidade. A história do universo parece evoluir de uma forma abrupta e real aos nossos olhos.

Fui duas vezes ao Sara ocidental, em reportagem às zonas controladas pelos guerrilheiros da Polisário. Estive com um povo que foi expulso de suas casas, dizimado e torturado, a que não restou mais que fugir sob perseguição e bombardeamentos pelos infernais caminhos do deserto. Vivem há 40 anos em acampamentos de refugiados, numa das zonas mais inóspitas do planeta, à espera de justiça por parte da chamada comunidade internacional. São mais de 100 mil aqui presos e encafuados, numa vida a que retiraram toda a esperança.

São pedras a perder de vista. Lápides irregulares espalhadas sobre a areia ao longo de centenas de metros. O cemitério domina o campo de refugiados de Smara. As tendas e as casas cor de terra estão lá em baixo, ocupam o horizonte, confundem-se com o deserto. Cada pedra assinala alguém que morreu. A maioria dos habitantes fugiram aos bombardeamentos marroquinos em 1976, mas muitos já nasceram, viveram e terminaram aqui para todo o sempre. São a prova de que o conflito do Sara ocidental dura há tempo de mais.

O sarauí que nos acompanha, Deimi, aproveita para se prostrar junto ao lugar onde repousa um familiar. A morte é dura em todo o lado, mas aqui parece mais desesperada.

"Os velhos quando sentem que vão morrer pedem-nos para ser enterrados nos territórios libertados. Ninguém quer morrer aqui", diz-nos Sidahmed Ahmedbaceid (Sidi), o guia.

Nestes 40 anos, os povos livres do deserto mudaram muito nestes campos de refugiados. Bebo chá com o fotógrafo Mohamed Mouloud, que combateu e fotografou ao lado do primeiro líder da Polisário, El-Ouali Mustapha Sayed, que morreu em combate depois de ter atacado a capital da Mauritânia, um dos países, juntamente com o reino de Marrocos, que ocuparam ilegalmente o Sara Ocidental. Mostra-me as fotos do ano de 76, guerrilheiros e guerrilheiras irmanados. Elas de camisa aberta, deixando vislumbrar o corpo, e cabelo ao vento - muito diferentes de grande parte das mulheres tapadas que vejo nos campos de refugiados. Ele explica-me que entre os povos berberes do deserto o papel das mulheres sempre foi mais interventivo que nos árabes. Nos anos 70, os guerrilheiros sarauís eram nacionalistas e revolucionários. As mulheres eram iguais aos homens em tudo: na vida, no combate, na morte.

Nas ruas improvisadas de Smara ouve-se o apelo à oração. A religião está muito mais presente que a última vez que lá tinha estado, há dez anos. Nessa altura dizia-se que no fim desse ano, devido ao acordo com Marrocos e a comunidade internacional e os sarauís, eles iam regressar às suas cidades junto ao mar. E ia haver um referendo. A vitória da independência nas urnas em Timor Leste trocou as voltas. Marrocos deu o dito por não dito e nunca mais aceitou o referendo sobre a autodeterminação do povo sarauí.

Os homens e mulheres que vivem em pleno deserto, em campos de refugiados, sentem-se presos e ignorados por todos. Estão aqui pelo crime de quererem ser livres. Vivem à conta das esmolas da comunidade internacional. A Arábia Saudita semeou aqui madrassas com a sua interpretação fundamentalista do Corão.

Enquanto esperam o nada, numa vida que os poderes terrenos não resolvem, homens e mulheres parecem voltar-se para os deuses. O fundamentalismo, como de costume, é semeado pelas bombas, pelo desespero e pelo ódio. Aqui ainda não fez a sua colheita, como aquela que saiu dos campos bombardeados do Iraque, da Palestina e da Líbia, mas as sementes de uma tremenda injustiça estão lá.

Editor-executivo - Escreve à quarta-feira

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