sexta-feira, 1 de maio de 2015

RACISMO E REVOLTA NO APARTHEID AMERICANO



António Santos – Diário Liberdade, opinião

A revolta voltou a incendiar a cidade de Baltimore, em Maryland, nos EUA, depois de um jovem afro-americano ter morrido nas mãos da polícia, na sequência de uma detenção arbitrária.

Poderíamos estar falando de Trayvon Scott, que em fevereiro apareceu morto numa cela de Baltimore sem qualquer explicação; ou de Tyrone West, inocente e sem cadastro, que foi espancado até à morte pela polícia desta cidade; ou de George King, de 19 anos, que foi preso à cama do hospital e eletrocutado com tasers pelos agentes; ou de Anthony Anderson, que sucumbiu a horas de espancamento na mesma esquadra, mas estamos falando de Freddie Gray, detido ilegalmente em 12 de abril e que no último dia 19 morreu com 80% da coluna vertebral partida e a laringe esmagada. Na verdade, estamos falando do mesmo assassino: o racismo estadunidense e o seu demiurgo histórico: o capitalismo.

Em abril de 1968, a Baltimore negra explodia numa revolta desencadeada pelo assassinato de Martin Luther King Jr. com acumulados dois séculos de racismo, segregação, escravatura e exploração. Nessa altura, metade da população afro-americana de Baltimore vivia na pobreza, o desemprego rondava os 30% e as forças policiais impunham o terror na vida dos trabalhadores negros. Quase meio século depois, os números são surpreendentemente semelhantes: o desemprego entre os afro-americanos da maior cidade de Maryland situa-se nos 42% (11% à escala nacional) e a mesma percentagem vive abaixo do limiar da pobreza. No entanto, há vários aspectos em que a situação está pior: o processo de transferência da indústria pesada permitiu a redução dos salários na cidade e estimulou a tendência para a segregação racial dos bairros num quebra-cabeças unido pelo terror das forças policiais.

Em Baltimore, a polícia é todos os anos alvo de quase 500 acusações de brutalidade e racismo. Porém, apesar de desde 2011 as forças policiais terem sido condenadas por mais de 100 crimes graves, quase nenhum agente foi preso: a administração da cidade canaliza anualmente mais de US$ 12 milhões para a compensação das vítimas de brutalidade policial, o dobro do orçamento para a educação. O resultado é o previsto: o erário público é drenado para resoluções judiciais que apenas fermentam a atmosfera de impunidade policial.

A linguagem dos oprimidosAs manifestações pacíficas contra o racismo que vinham decorrendo desde a morte de Gray atingiriam um momento de viragem no dia do funeral, no sábado (25). As dezenas de milhares de pessoas que se manifestaram por toda a cidade foram recebidas com provocações de grupos fascistas e agressões da polícia de choque. Os enfrentamentos que se seguiram têm sido sistematicamente utilizados pelos principais meios de comunicação social para demonizar os protestos e cobrir toda a cidade com um manto repressivo de 5 mil policiais armados com equipamentos de guerra. Esta segunda-feira (27), o Governador Larry Logan declarou o estado de emergência, impondo o recolher obrigatório e autorizando a intervenção das forças armadas para reprimir os protestos.

Por outro lado, para responder à espiral repressiva, estão a tecer-se alianças improváveis no seio da sofrida comunidade afro-americana. Juntando-se ao movimento Black Lives Matter (literalmente as Vidas dos Negros Importam), às organizações de classe no terreno e à Nação do Islã, foi agora a vez das principais gangs da cidade (os Crips, os Bloods e a Black Guerrilla Family) declararem uma trégua entre si, juntando forças para deter a violência da polícia.

E, no entanto, as atenções midiáticas dos EUA continuam presas nos confrontos e na destruição, com ameaças de que “a economia de Baltimore nunca mais irá se reerguer”. Numa rara amostra da profundidade do apartheid norte-americano, aqueles que nunca exigiram justiça para Gray são os mesmos que se levantam agora, num coro de incredulidade e protesto, contra a destruição de duas dezenas de vitrines, revelando que para o capitalismo a propriedade vale mais do que a vida.


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