segunda-feira, 15 de junho de 2015

Angola. AS ACÁCIAS CONTINUAM RUBRAS



Luísa Rogério – Rede Angola, opinião

Fazer uma caminhada nocturna. Andar na rua sem tremer ao cruzar com uma motorizada. Encontrar bancos comerciais com sistema, tratar normalmente um cartão multicaixa e ser atendido com gentileza. Dispensar cunhas para isto e aquilo, ceder passagem ao peão nas passadeiras e obedecer ao Código de Estrada. É extensa a lista de coisas “estranhas” que aqui se fazem. O país onde é banal inverter os termos e a anormalidade assume naturalmente o comando de situações, conserva alguns dos seus encantos. Sair da capital significa beneficiar do contacto com outras Angolas e descobrir quão injustos temos sido ao confundirmos o país com uma cidade. De facto, Benguela não é Luanda. É o palco das Acácias Rubras.

Benguela é a cidade de onde não se quer regressar, como canta o artista. Pioneira da rádio em Angola, é a terra de poetas eternos. Berço de Alda Lara, a menina que cresceu, tornou-se médica, mas nunca se esqueceu da sua terra; Benguela é a “mãe” do célebre Meu amor da Rua 11 de Aires de Almeida Santos. A musa inspiradora ainda cá vive. Ruas, travessas e becos vêm inspirando mentes criativas como a de Papetela, património cultural vivo deste país.

Ao chegar a Benguela para mais uma jornada de trabalho, deparei-me, ao sair do autocarro, com crianças pequenas sozinhas na rua. O instinto materno levou-me a perscrutar pelos acompanhantes. Alguém captou a inquietação no meu olhar e deu a resposta semelhante aquela que ouvira no Huambo há algum tempo. “Tia, não se preocupe, aqui não roubam crianças…” Meio envergonhada por ter deixado exteriorizar a condição de residente numa selva de pedra, fiquei aliviada enquanto esperava pelo Lilas Orlov, o hospitaleiro anfitrião de sempre, que já tinha passado pelo ponto de encontro antes da minha chegada.

A minha paz foi reforçada pela visão de estudantes com bata branca, acompanhados ou sozinhos, a estudar em jardins públicos. Sim, aqui eles não põem a bata apenas à entrada da escola, removendo-a apressadamente à saída. As adolescentes não se importam de cobrir os corpos de afirmação sob o branco simbólico e uniformizador das batas.

No intervalo de uma e outra actividade, entre caminhadas e olhares, distraí-me a apreciar as crianças em diversos parques da cidade. Dão-se ao luxo de brincar ao lar livre. De andar de bicicleta em largos e em passeios. Estou pouco habituada a ver tantos miúdos sozinhos em direcção à praia. Não consigo confirmar se nadaram ou não porque só durante a noite pude visitar a Praia Morena.

Em Benguela, os Sábados são semelhantes aos de quase toda Angola. Almoçaradas em família, que inclui vizinhos e amigos, prolongam-se pela noite adentro. À volta da mesa ou do fogareiro com o peixe fresquinho, vivem-se momentos de descontracção, troca de impressões e consolidação de laços. À noite, por detrás da acalmia aparente, o ambiente esquenta. Há opções diversas para comer, bater um bom papo ou para aquele abraço aconchegante. Abundam pistas de danças para todos os gostos e bolsos. Há condições para viver um pouco a vida, à margem de preocupações existenciais e angústias.

De repente, um tropeção na noite. Nada grave, apenas um desequilíbrio. Está tudo bem. Mas, evidentemente, nem tudo são rosas. Num país que ficou adiado durante tantos anos e agora parece enfrentar uma escura e ameaçadora nuvem, qualquer pessoa comum é compelida a adoptar o mais puro existencialismo como filosofia de vida. Objectivando: a vida é feita exclusivamente no presente do indicativo. O problema é que quando a falta de esperança e de confiança no futuro leva as pessoas a esse mecanismo de sobrevivência, impede que elas façam projectos, investimentos, e até mesmo que se inspirem nos grandes feitos do passado para acreditar que possam superar desafios vindouros. É prático e funcional, do ponto de vista individual, mas potencialmente danoso para a nação, refugiar-se no presente, fugindo dos fantasmas e ignorando as inquietações em relação às consequências desconhecidas do que esteja a ser feito hoje aqui, no Oriente Médio ou no menos médio.

Valerá a pena enfrentar as crises e aprender com elas, ou fugir para a frente? Em todo o caso, o presente é tudo o que temos. Benguela mantém-se uma cidade de quintais, labirintos e assimetrias. Mas a praia ainda é morena e as acácias continuam rubras!

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