Francisco Louçã - Público*, opinião
Ao
longo dos últimos anos, a direita reconfigurou-se em Portugal. Os partidos são
os mesmos, mas num dos casos com uma geração nova: os Passos Coelho (ou os
Miguel Relvas) são o símbolo desses promissores políticos que fizerem tirocínio
nas juventudes partidárias ou, quando para isso tinham dotes ou amigos, em
empresas financeiras ou outras, e que chegaram entretanto ao poder (alguns com
insucesso na política, que se pode transformar em sucesso nos negócios). Note o
caso do Bruno Maçães, o tuitista frenético do governo: é ignorante? é
ideológico? É tudo e nada, por isso é um triunfo acarinhado nos meios do
governo porque representa esse quê de inocência e de atrevimento que faz dele
uma alma penada das ideias feitas. São as que fazem sucesso.
O
que mudou para aqui chegarem merece ser visto.
Mudou
a ideologia. Esqueçam a “social-democracia” e a redistribuição, agora é
“competitividade” e “empreendedorismo”. Esqueçam Sá Carneiro, que pedia a
adesão à Internacional Socialista (e onde ela já vai), agora é o caldo fundidor
do Partido Popular Europeu que junta PSD e CDS. Esqueçam tudo o que está para
trás, denigram Manuela Ferreira Leite porque ela diz que ainda quer ser
social-democrata. No entanto, para os novos líderes da direita falta de
ideologia não significa ausência de ideias: pelo contrário, o vazio do
pragmatismo é mesmo uma engenharia social, preenchida pela doutrina das
chamadas “reformas estruturais”. Na medida em que esta língua de pau se tornou
hegemónica na Europa, o caminho estava facilitado: vários governos falam a
mesma ideologia e a transumância política entre o centro e a direita é assim
facilitada.
Como
se chegou a esta mudança ideológica e a esta obediência política, é o que me
interessa assinalar aqui.
Para
fazer este caminho, os mais preclaros construíram a seu tempo uma rede de
aparelhos ideológicos. Foi uma acção deliberada e estratégica e não ocasional.
O seu sucesso foi construído meticulosamente. Durou anos e é o seguro de vida
destes ideólogos sem ideologia.
Vasos
comunicantes de ideias
Na
produção de ideias comunicantes, os aparelhos são dois.
O
primeiro é o mapa do discurso oficial, reproduzido em conferências e colóquios,
revistas e dizeres dos “especialistas” convidados normalmente por televisões:
para eles é tudo fácil, vinga a tese da “austeridade inteligente” ou
“expansionista”, segundo a qual o ajustamento de uma economia se faz por via da
flexibilização do mercado de trabalho, a redução de salários resolve o problema
do desemprego, o corte no Estado resolve o problema do défice. São os preclaros
anunciadores do tudo fácil. O discurso oficial tem virtudes convidativas, pois
apresenta um dicionário simples, as suas palavras são chavões banais que
resistem a qualquer prova de factos. A “Europa”, essa massa de ordens e de
obediências, é o santo e a senha deste cimento ideológico. A neo-germanofilia é
a fábrica dos quadros da direita, seguir o chefe é a sua bússola.
O
segundo aparelho é o sistema de reprodução de ideias. É, creio, o mais forte.
Se as ideias nem são originais nem são sensatas, são pelo menos banais e criam
um senso comum. A galinha do vizinho é maior do que a minha, o remediado
queixa-se do rendimento mínimo que o pobre recebe — o CDS fez disso uma
indústria eleitoral, no tempo em que ia a eleições. O senso comum ampliou-se
entretanto com a mais católica das virtudes, o discurso da culpa e da punição.
Bem merecíamos o que nos aconteceu, ainda bem que tiraram uns mesitos de pensão
aos nossos avós, ainda bem que o salário dos novos empregos é 580 euros em
média, ainda bem que cumprimos o nosso sacrifício, enquanto o pau vai e vem
folgam as costas. Pedro Adão e Silva enunciou esplendidamente este discurso
ganhador que se tornou a atmosfera que respiramos (Expresso, 29 agosto).
Este
discurso tem um aparelho e ele foi preparado meticulosamente. Nos jornais, tem
oSol, mesmo que este tenha minguado para se reduzir a ministro do dinheiro
angolano e da sua elite. Mas o centro é o universo do Correio da Manhã, o
jornal e o canal cabo, com a estratégia brilhante de banalização do incidente
(para o povo), e da Sábado (para os leitores de “classe A e B”, o
retrato cor-de-rosa do seu país). Mais recentemente, este aparelho foi reforçado
peloObservador, que constitui estrategicamente um fraldário de repetidores de
ideias neoconservadoras, chefiado por um dos seus precursores, José Manuel
Fernandes, seguido por um séquito de analistas e jovens prometedores que fazem
estágio no texto fácil, ou de graduados como Helena Matos e Rui Ramos.
Abdicando orgulhosamente de qualquer pretensão de pluralismo e ciente da dívida
ao naipe de empresários cavaquistas que o financia, o Observador é
uma trincheira ideológica assanhada.
Nas
ideias, funciona a concentração que cria a autoridade. Todos juntos, fazem o
coro da banalidade e do senso comum da culpa e do sacrifício.
Redes
sociais, empregos e influências
Em
contrapartida, estes aparelhos diversificam-se na organização social.
O Compromisso
Portugal foi um dos primeiros clubes, mesmo que efémero, que juntou a nata
dos jovens empresários, elaborou um discurso liberal, influenciou os partidos
de direita e mesmo o PS e preparou o apoio a Cavaco Silva. Depois, foi a vez da
Fundação Francisco Manuel dos Santos. O seu Pordata serviu de sua
carta de apresentação, marcadamente ideológica (o contador sobre os gastos
sociais é um exemplo grotesco) mas útil pela compilação de dados e, portanto,
convidativo para franjas amplas da sociedade. A Fundação, com a selecção de
conferencistas e gestores, esteve sempre atenta ao que interessa: agrupar os
liberais e criar uma carteira de serviços.
Na
gestão de expectativas e empregos, a organização de conexões é ainda mais
diversificada: desde os empregos de assessores na Presidência da República ou
na Santa Casa da Misericórdia, até aos cargos de administradores em empresas
públicas ou privadas, a direita baseia-se numa rede entre os negócios e o
poder. Como aliás acontece no PS, como demonstrei no estudo detalhado que escrevi com
alguns colegas sobre as carreiras de todos os governantes constitucionais
portugueses, mas com centros de colocação e cumplicidades específicas. Estas
redes de emprego garantem a fabricação da seita e asseguram a inclusão e a
mobilidade social dos quadros. Em poucas palavras, criam um campo político.
Esse era o objectivo e foi bem conseguido.
Neste
mister, destacam-se os escritórios de advogados (vimos recentemente como
Marques Mendes e António Vitorino se enfrentavam na privatização da TAP, ambos
fazendo parte de escritórios bem ancorados em figuras PS e PSD), mas também
algumas lojas maçónicas específicas (a Mozart tornou-se a mais conhecida por
episódios recentes das nossas telenovelas políticas e dos serviços secretos) ou
outras associações sigilosas, que constituem locais de encontro e de
recrutamento.
A
vida social e a consagração da elite
Finalmente,
na representação social, temos a acção deliberada e temos o movimento gerado
pelas formas de poder e de reprodução do poder.
A
acção deliberada é a das associações patronais que têm uma função mais política
nas negociações de leis e influências do que na formação de empresários ou na
configuração de interesses industriais ou financeiros.
A
acção em movimento social é no entanto a mais profunda, porque é a que se
reproduz por si só. Veja por exemplo como a direita destruiu o movimento
estudantil, que era um dos centros da constestação social, pela sua agilidade e
pela sua radicalidade. A operação de aniquilação do movimento estudantil foi
tão eficaz quanto não planeada por um conspirador: simplesmente, bastou fazer
reproduzir a autoridade social, domesticando a universidade, onde os jovens
ainda se sentiam jovens e livres. Primeiro, reduziu-se os cursos universitários
para 3 anos, diminuindo a sociabilidade continuada pela presença na escola e
marcando desde a primeira hora que chegará logo o tempo de pagar a propina do
mestrado e de por a gravata para ir procurar emprego. Segundo, degradou-se o
ensino público no secundário, promovendo conflitos com os professores,
reduzindo o seu espaço, desinteressando-os, atacando a imagem da escola pública
e, ao mesmo tempo, multiplicando o financiamento para colégios privados, tidos
como os padrões de uma excelência sobrevivente. Terceiro, e mais importante
porque mais reticular, promoveu-se a praxe como padrão de comportamento e de
reconhecimento social do estudante, sujeito assim à degradação da obediência
animal, ao reconhecimento da hierarquia tutelar e omnipotente e à submissão
emocional. O sucesso social da praxe é o sinal maior da vitória da direita
entre os jovens, a que a esquerda reagiu em pânico, optando envergonhadamente
pelo silêncio, incapaz de se opor a esta deriva autoritária e à imagética da
animalização do estudante, escolhendo não fazer nada como se se tratasse de uma
moda que pudesse ser passageira.
Aprender
com a direita antes que seja tarde
Sim,
a esquerda tem que aprender com o que a direita vem fazendo com sucesso. Não
estranhem os leitores este argumento: a minha opinião, suficientemente notória,
é que a esquerda tem objectivos contraditórios com os da direita, que os deve
mobilizar para enfrentar o situacionismo e que para tanto requer instrumentos
de participação e não de passividade, de criação e não de obediência, de
radicalidade e não de conformação. No entanto, deve mesmo aprender com o que a
direita faz com sucesso.
Tem
que aprender a fazer à sua maneira, mas tem que fazer estrategicamente, com
tempo, tempo para colocar peças, montar os seus edifícios, fazer as suas
conexões e redes, estruturar ideias fortes e ater-se a elas, ampliando-as.
Pouco vale o fogacho comunicativo; não será um sound byte que
responderá a uma tensão social. Para tanto, tem que ter instrumentos que respondam
aos que fizeram a vitória social da direita: meios de comunicação de ideias, de
treino de quadros, de recrutamento de capacidades, de reprodução alargada. Ou
seja, precisa de associações transversais, de movimentos sociais com raízes (e
o movimento sindical tem perdido campo de legitimação, ao mesmo tempo que o
movimento estudantil se desvaneceu), de novas formas de representação e de
mobilização dos mais capazes, de think tanks com revistas abertas
(creio que um exemplo é a revista Crítica Económica e Social), de
colóquios que treinem ideias, de disputas agressivas na internet usando o
humor, a crítica e a invenção, de centros de investigação em profundidade e que
criem pensamento rigoroso e crítico, ou de iniciativas concretas (alguns livros
que aqui referi recentemente serão bons exemplos, outro é “Não
Acredite em Tudo o que Pensa”, mas falta muito mais combate de ideias).
Uma
boa agenda para a esquerda, se quer ganhar a médio ou longo prazo, é
multiplicar todos e cada um desses alicerces. Para tanto, tem que deixar de ser
condescendente: está a perder a batalha da criação das ideias e precisa de
voltar à luta. Sem isso, a curto prazo pouco fará de jeito.
*Em
31 de Agosto 2015, blogues Público, opinião
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