Viagem
ao mundo do medicamento-mercadoria. A pesquisa submissa aomarketing. O
trabalho infernal, nos laboratórios. A “eficácia das drogas atestada em estudos
fraudados
Quentin
Ravelli, no Le Monde Diplomatique - Outras Palavras - Tradução: Inês Castilho
“Percebi
que estava grampeado, que sabiam exatamente o que eu receitava”, indigna-se um
médico instalado em Paris. “Fui ingênuo, não fazia ideia. [Um dia], uma
representante comercial me disse: “Você não prescreve muito!” Eu me perguntei:
“Como ela pode saber disso?” Essa prática de vigilância, que choca muitos
profissionais, é articulada pelos serviços comerciais dos laboratórios. Para
aumentar ou manter sua fatia do mercado, os grandes grupos farmacêuticos
implementam artifícios de engenhosidade mirabolante. Não hesitam, por exemplo,
em alterar as indicações de seus medicamentos para conquistar novos clientes.
Considerado
por certos médicos como “o Rolls Royce dos antibióticos dermatológicos”, a
Pyostacyne (no Brasil, Pristinamicina), fabricado pela Sanofi – um dos
primeiros grupos farmacêuticos do mundo em volume de negócios (33 bilhões de
euros em 2013) – conheceu tal destino. Durante muito tempo de uso
dermatológico, o antibiótico viveu uma “virada respiratória”: é agora utilizado
maciçamente em casos de infecção broncopulmonar e de ouvido, nariz e garganta.
Este último uso, criticado por numerosos médicos e depois denunciado pelo poder
público, podia conduzir a um superconsumo de antibióticos, sendo assim parte do
problema mais amplo do fortalecimento das resistências bacterianas – um grande
desafio de saúde pública, responsável por setecentas mil mortes por ano em todo
o mundo (ver “O
outro pesadelo de Darwin“).
Para
compreender a natureza versátil da mercadoria da indústria farmacêutica,
acompanhamos a vida desse medicamento ordinário, desde os laboratórios de
pesquisa até os visitantes comerciais, passando pela fábrica de produção do
princípio ativo1. A cada etapa, a mercadoria muda de
nome: os biólogos falam da bactéria Pristinae Spiralis; os químicos,
da pristinamicina fabricada pela bactéria; osrepresentantes alardeiam os
méritos da “Pyol” aos médicos; os trabalhadores denominam-na afetuosamente
“a Pristina”. Ao longo dessa cadeia, o antagonismo entre as necessidades do
doente e os lucros do industrial, entre o valor de uso e o valor de troca2 nunca param de se
manifestar.
Ele expõe a
oposição entre assalariados e executivos, particularmente sensível em uma
empresa em plena reestruturação, onde os trabalhadores estão lutando para
conter os cortes de emprego e impor suas próprias concepções do papel do medicamento.
Vender
“Seu
trabalho é manter o seu desempenho”
Grande
bloco todo de vidro de 37 mil metros quadrados, a sede da Sanofi na França
evoca transparência e respeito aos pacientes, cujas silhuetas estilizadas
dominam o alto do edifício, cercadas por um coração azul. No terceiro andar
desse edifício situado no sul de Paris encontram-se os escritórios de
marketing, onde agitam-se os funcionários que trabalharam, desde a década de
1990, na introdução da Pristinamicina no mercado de infecções respiratórias.
Com êxito evidente, já que, do inverno de 2002 até o inverno de 2010, o número
de vendas para infecções broncopulmonares saltou 112%, enquanto o aumento foi
de apenas 32,6% no campo dermatológico.
Esse
aumento não corresponde a uma explosão do número de doenças ou a uma epidemia
devastadora, mas a uma estratégia comercial: o mercado de infecções
respiratórias envolve um volume de prescrições muito mais importante que o de
infecções dermatológicas. “Acontece que, contra os germes que infectam os
brônquios, pulmões, seios da face, o medicamento vai muito bem”, diz um médico
da empresa. “Por isso, em seguida ele foi desenvolvido com essa indicação.” Da
pele ao pulmão, o valor de troca metamorfoseou o valor de uso.
Os
ourives desse gênero de giro terapêutico são os “gerentes de produto”, funcionários
especializados na promoção de um só medicamento ou de alguns medicamentos com
indicações aproximadas. Aqui, se é “gerente de produto Pristinamicina”,
“gerente de produto Tavanic”, “gerente de produtos analgésicos” e até mesmo
“gerente de produtos psicóticos”. Célia Davos3, gerente de produto Pristinamicina,
que se diz “muito voltada aos negócios”, descreve o conteúdo do seu ofício:
“Seu trabalho é monitorar o desempenho do medicamento, é seguir seu produto
para ver aonde ele vai, de acordo com os concorrentes, de acordo com o mercado,
de acordo com a patologia, e fazer todos os esforços para maximizar o volume de
negócios.” Esse posto, situado no coração do serviço de marketing, ele próprio
no centro da sede social, funciona como uma mesa giratória onde os funcionários
chegam de várias áreas e podem em seguida ser realocados para outros
horizontes, como gerentes, responsáveis pelas áreas de marketing, comunicações,
relações públicas, vendas.
O
papel do gerente de produto consiste em destacar a utilidade de um medicamento
na preparação do material dos propagandistas de laboratório, esses comerciantes
que se deslocam pelos consultórios para convencer os médicos a prescrever seus
produtos. No arsenal da Pristinomicina, encontram-se a ajuda de
visita, espécie de guia a partir do qual o visitante constrói seu discurso
segundo os argumentos elaborados pelo marketing; oselementos-chave, de
informação médica, que sintetizam os pontos mais importantes; os número
de uma revista científica como Infectologia, cujo patrono é a
Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa
(Spilf) eque apresentam apenas os últimos resultados de ensaios
clínicos bem sucedidos relativos à Pristinomicina. Mas também
uma multidão de gadgets paramédicos – pequenas lâmpadas plásticas com uma
espátula parapensar sobre o Pristinomicina, ao olhar o fundo da
garganta do paciente;caixas de tecido para decorar o escritório do doutor;
canetasPristinomicina; pen-drive Pristinomicina. Esses textos e
objetos, que se repetem por todo lugar no consultório do profissional, serão
encontrados no porta-malas dos propagandistas.
Nem
todos os médicos interessam aos laboratórios todos na mesma medida. Aqueles que
têm um importante “potencial de prescrição” tornam-se objeto de atenção
particular. Para identificá-los, os laboratórios utilizam os serviços do Grupo
de Elaboração e Realização de Estatísticas (GERS), que dispõe das cifras das vendas
aos distribuidores e das vendas diretas em farmácias; ou do Centro de gestão,
de documentação de informática e de marketing (Cegedim), que fornece dados do
software das prescrições dos médicas. A essas fontes oficiais, somam-se as
redes de inteligência informais, como as enquetes dos visitantes médicos com
farmacêuticos e seus colegas. Para os serviços de marketing, toda informação
relativa às práticas dos médicos interessa, pois permite estabelecer uma
“segmentação de clientes” em potencial. Assim, há os ”baixos ATB, baixos
Pristinomacina” (os que prescrevem pouco antibiótico em geral, ou pouca
Pristinomacina) e os “baixos ATB, altos Pristinomacina” (que já prescrevem
abundantemente o produto promovido). Estes, serão menos visados que os “altos
ATB, pequenos Pristinomacina” — pois podem substituir uma parte importante de
suas receitas de outros antibióticos em receitas de Pristinomacina.
Evidentemente,
essas estratégias não se traduzem mecanicamente em vendas. É necessário que
elas sejam postas em prática pelos visitantes médicos. Na França, em 2014
havia dezesseis mil empregados de empresas farmacêuticas, que passavam o tempo
todo em reuniões com os médicos. À taxa de duzentos e treze dias de trabalho
por ano e seis visitas por dia, são mais de vinte milhões de conversas que
travadas, anualmente com os médicos. Essas entrevistas são minuciosamente
preparadas. Para aumentar a eficácia, os serviços de marketing redigem por
exemplo brochuras apresentando diversos “tipos de perfil” de médicos: a “mulher
médica sindicalista”, o “médico amigo”, o “médico cientista”, o “médico
estressado”… Essas brochuras são utilizadas no decorrer de seminários de
formação para ajudar os visitantes médicos a colocar em prática a “rota de
fidelização”, com vistas a conhecer melhor suas metas. Aprendemos , nesses
“workshops de produto”, que o médico da família – 55 anos, grande clientela,
presidente de um programa de educação médica continuada – é mais “sensível à
abordagem humanística do paciente” do que o médico cientista “instalado no
campo”, de “contacto muito frio”, ao contrário do namorado companheiro,
“alegre, mas um pouco mole.” Uma vez formados neste jogo, os representantes
comerciais devem sair a campo para melhorar a “elasticidade” de médicos. Quanto
mais um médico é considerado “elástico”, mais receptivo ele é ao discurso
indústria farmacêutica.
Ou então, os
médicos se tornam cada vez mais críticos, a ponto de fechar suas
portas para os visitantes médicos, cujo número caiu depois de
dez anos. Esta resistência crescente empurra a empresa a encontrar outras
formas de lobbying, mais científicas e menos perceptíveis, particularmente ao
dirigir-se a formadores de opinião (chamados KOL, key opinion leaders/líderes-chave
de opinião) – ouvidos e respeitados por milhares de prescritores. Assim, a
Sanofi procura influenciar docentes de universidades, por vezes percebidos
como responsáveis pelo espírito crítico de jovens médicos.
Quando
fui estagiário na Sanofi, tive por exemplo de construir “argumentos para
decanos”, buscando convencer os mais reticentes em acolher a empresa em suas
classes. Os maus resultados de algumas faculdades foram usados – especialmente
em Paris-V, onde houve uma queda dramática na proporção de alunos classificados
no primeiro trimestre da competição nacional. Esse resultado era explicado, de
acordo com a Sanofi, pela personalidade do decano, considerado um dos mais
indóceis, por não permitir a livre circulação de panfletos, cartazes e outros
produtos de publicidade disfarçada.
Toda
essa máquina de influência não funciona sem choque ou oposição. Há, em todos os
níveis, dúvidas, dissonâncias, contradições. Certos representantes,
particularmente conscientes dos problemas de resistência bacteriana,
procuravam, por exemplo, falar com os médicos sobre todos os antibióticos
disponíveis e não apenas daqueles que geram mais dinheiro. Eles esforçam-se por
tecer laços não comerciais com os profissionais, não hesitam a partilhar suas
dúvidas e suas críticas. Mas são encontram frequentemente confrontadas com
mudanças arbitrárias, transferências de zona, a chamadas da direção, que são
difíceis de contrariar quando pairam ameaças de demissão.
Produzir
“Há
dois anos que perdi o sono”
A
fábrica em que é fabricado o princípio ativo da Pristinomicina, a partir de
bactérias colocadas para fermentar, encontra-se perto de uma volta do Rio Sena,
ao sul de Rouen (França), onde são espalhadas diversas indústrias, como as
da Total ou da ASK Químicos. Na fábrica da Sanofi, afetada por cortes de pessoal,
alguns espaços foram substituídos por retângulos de grama que são alternados
com oficinas de atividades, interligados por feixes de tubos de oxigênio, água
purificada, solventes, ácidos. Quando se entra pela primeira vez, um odor
contrai as narinas: é dos dejeitos agrícolas que as bactérias em fermentação
consomem, em quantidade antes, de secretar os princípios ativos. O perfume
inebriante de melaço de açúcar de beterraba, que chega na fábrica pelos
carros-pipa, domina a atmosfera.
Na
oficina de fermentação, o barulho atinge, como hélices de avião em marcha
lenta, as longas lâminas de dezenas de fermentadores de duzentos e vinte metros
cúbicos, movimentadas continuamente. É aqui que nasce a molécula
pristinamicina, que se encontrará nas milhões de caixas acondicionadas na
Espanha, depois vendidas em farmácias. Segundo os trabalhadores, o trabalho em
si mesmo é interessante e frequentemente imprevisível, pois envolve organismos
vivos. Mas as condições são particularmente duras. Os operários trabalham em regime
5 × 8. Significa que são divididos em cinco equipes, que trabalham dois dias
das 5h às 12h, em seguida, dois dias das 12h às 20h, e finalmente dois dias das
20h às 5h.
Oficialmente,
em seguida eles se beneficiam de quatro dias de descanso. Mas, onze vezes no
ano, um desses quatro dias é suprimido, segundo o sistema de “remontagem” sem o
qual o tempo de trabalho seria inferior a trinta e cinco horas semanais, a
jornada legal na França. Frequentemente, portanto, Não restam mais que três
dias de repouso, fortemente encurtados pela noite do último ciclo ou pela manhã
do próximo. Quem segue esse ritmo não dorme, jamais, três vezes seguidas no
mesmo horário. “O cérebro não é mais capaz de retomar os ritmos de vigília e
sono”, diz o Sr. Etienne Warheit, que está no 34º ano de 5 × 8. “Dois anos
atrás, perdi o sono e não conseguia mais fazer seis horas por noite. Ficava
cansado às 22 horas, mas estava acordado à meia-noite e não havia maneira para
dormir antes de 2:00. E vice-versa… chegava ao trabalho, estava cansado, e por
isso tomava café. Você torna-se incapaz de fazer o trabalho. Precisa repeti-lo
novamente três vezes, porque tem medo de esquecer as coisas, ter cometido um
erro, você perde a confiança em si mesmo.”
Quando
os trabalhadores acham esse ritmo muito desgastante e querem mudar de horário o
gestor se recusa, principalmente porque não tem outros postos para lhes
oferecer. O objetivo é primeiro rentabilizar as máquinas, que funcionam
permanentemente. Para justificar esse ritmo infernal, a direção esconde-se
atrás de uma espécie de determinismo tecnológico: os ritmos da fermentação
bioquímica e extração de bactérias tornariam inevitável o sistema 5 × 8. “É
óbvio que, numa fábrica como esta, a partir do momento em que a produção é
contínua e só pode ser contínua, não é possível fazer de outra forma”, diz o
médico da fábrica. Esta explicação científica desestimula a pesquisa de
organização coletiva do trabalho. É parte de um discurso mais geral, que pode
ser chamado de “biotecnologia”: a fábrica, voltada para produtos do futuro,
seria mais semelhante a um laboratório, onde o protesto trabalhista não teria
mais razão de ser.
Há,
portanto, um abismo entre as práticas concretas do grupo industrial e seu
discurso – “O essencial é a saúde”, proclama o slogan inscrito na entrada da
fábrica. Mas os protestos, que dão a um dos responsáveis da área de recursos
humanos a impressão de “um barril de pólvora”, e que inclusive provocam medo no
gerente de “descer” nas oficinas, são integrados à estratégia de negócios da empresa.
Ao oferecer a vários trabalhadores a possibilidade de se tornarem técnicos,
usando o discurso da biotecnologia como forma de mascarar a realidade da
fábrica, a empresa tem conseguido transformar a reivindicação coletiva de
unificar todas as forças sindicais em promoção de desejos profissionais
individuais. Essa recuperação repousa, notadamente, sobe o medo: durante vários
anos, do final dos anos 1990 até 2005, a direção do grupo fez pairar a ameaça
de venda da fábrica. Esse cenário, que jamais se concretizou, permitiu
sobretudo que os trabalhadores aceitassem uma reestruturação e o corte de 15
dos 77 postos de trabalho no sistema 5 x 8. De ameaçada, a fábrica foi
promovida a “unidade piloto” do grupo Sanofi.
Tal
virada – que não mudou as condições de trabalho nem os salários – reflete a
forte utilidade industrial das bactérias. O “bom da biotecnologia” marca uma
orientação geral do capitalismo industrial deste início do século XXI, que
desenvolve biotecnologias ditas verdes (agricultura), brancas (indústria),
amarelas (tratamento de poluição), azuis (a partir de organismos marinhos) ou
vermelhas (medicina). Por causa de todas essas aplicações, os mercados
desenvolvem-se, e frequentemente as taxas de lucro são excepcionais, o que
explica a razão pela qual a indústria farmacêutica tem comprado, no últimos
anos, as empresas de biotecnologia. Em abril de 2011, a Sanofi comprou por 20
bilhões de dólares a Genzyme, uma empresa norte-americana especializada em
produtos biofarmacêuticos para esclerose múltipla e doenças cardiovasculares.
Esta atração pode ser explicada pelo fato de que as novas moléculas utilizadas
no tratamento de muitas doenças não vêm da química de síntese clássica, mas do
uso de materiais vivos, muitas vezes geneticamente modificados, que permitem
fazer importante economia na produção.
Pesquisar
“O conflito de interesses é permanente”
Nas
Jornadas Nacionais de Infectologia da França, dois “espaços” se defrontam. De
um lado, o “espaço das marcas”, onde os comerciantes falam da Pristinamicina:
56 estandes de laboratórios farmacêuticos, dispostos em sete fileiras, segundo
uma lógica de blocos desalinhados que impõe um deslocamento em zigue-zague aos
1,5 mil médicos inscritos. Do outro, o “espaço das moléculas”: dois auditórios,
batizados de Einstein e Pasteur, onde acontecem simpósios científicos. Assim,
paralelamente a um desinvestimento na pesquisa privada – a Sanofi fechou, em
2004, seu centro de pesquisa anti-infecciosa de Romainville –, os laboratórios
exercem certo controle sobre a pesquisa pública: eles financiam os congressos
médicos e influenciam, em contrapartida, a organização científica, material e
espacial deles.
Para
chegar ao espaço científico das Jornadas de Infectologia, que se encontra do
lado oposto da entrada do congresso, os médicos devem passar, no mínimo, diante
de treze estandes, cujo aspecto reflete o peso e a influência do expositor. Aos
deliciosos petits fours da transnacional Boehringer-Ingelheim,
degustados em meio a assentos com design e sob a luz azul de grandes lâmpadas
halógenas verticais, responde o suco de maçã, servido sobre uma grande mesa de
fórmica coberta de objetos em desordem, oferecido pelo StudioSanté, uma rede
francesa de coordenação de cuidados médicos especializada na perfusão em
domicílio…
Apesar
da aparente separação dos espaços, as ligações entre o universo comercial e o
mundo científico são sólidas. Durante o congresso, o principal objetivo das
empresas é mostrar a superioridade científica de seus produtos. Os simpósios
exibem, portanto, o nome de seus patrocinadores – “Simpósio Bayer”, “Simpósio
GSK”, “Simpósio Sanofi” – nos quais se enfrentam os KOLs de cada laboratório.
Para assegurar os serviços de médicos influentes, os lobistas dos grandes
grupos conduzem um trabalho de fôlego que passa principalmente pela organização
de viagens com vocação pseudocientífica. Uma “médica de produto” da Sanofi
conta como constituiu o grupo de especialistas de um medicamento apoiando-se
sobre os médicos cuidadores que influenciavam os outros “receitadores”. “Eu
disse: tenho dez lugares, só quero aqueles que ganham 1 milhão de euros ou mais
[em volume de negócios]. No primeiro ano, eu os levei para Cingapura. No
segundo, aconteceu de serem no geral os mesmos. Aonde fomos? A Durban [África
do Sul]! Um ano depois, estávamos em Cancún [México] e, no seguinte, na
Birmânia. É desnecessário dizer – isso não se diz porque não se tem o direito
–, mas é assim que você cria parceiros de verdade.”
Reencontramos,
na organização dos testes clínicos, uma imbricação similar do valor de troca e
do valor de uso. Um dos KOLs da Pristinamicina, o doutor Jean-Jacques Sernine,
responsável por alguns testes clínicos, é um dos infectologistas mais renomados
da França. Sua carreira foi construída em torno de duas práticas profissionais:
a coordenação de testes clínicos para a indústria farmacêutica (sobretudo para
Pristinamicina, na Sanofi) e a expertise junto às agências públicas do
medicamento. Ainda que não avaliasse os mesmos medicamentos nos dois casos – ou
haveria um flagrante conflito de interesses –, ele fazia parte de um pequeno
grupo de especialistas que, tomados coletivamente, passava de uma margem para a
outra, da indústria farmacêutica à medicina pública. “O conflito de interesses
é permanente. O principal deles, quando se está lá dentro, é se interessar
pelos antibióticos!”, justifica. “As coisas só são possíveis se há uma troca
entre os avaliadores que somos no nível administrativo e a indústria
farmacêutica.” Juiz e, em parte, condenado ao conflito de interesses, o grupo
social dos especialistas fica dessa forma prisioneiro de sua própria
competência.
Tal
situação repercute na Agencia Nacional de Segurança do Medicamento e dos
Produtos de Saúde francesa (ANSM), cujo trabalho baseia-se inteiramente na expertise.
Situada na periferia norte de Paris, ela fica em um imponente prédio com vidros
que não têm a graça e a leveza da sede comercial da Sanofi: quando chegamos
ali, a porta giratória, temporariamente travada pelas intempéries, estava
cercada por uma fita de construção vermelha e branca. Foi por uma porta
clássica que tivemos de passar, para chegar a uma sala de espera à qual várias
plantas de plástico, com folhas cheias de poeira, davam um ar de gabinete de
taxidermista.
Essa
desigualdade estética reflete uma profunda ausência de simetria social e
econômica, que torna difícil acreditar que a ANSM exerça um contrapoder eficaz.
Com efeito, ela muitas vezes não tem o tempo nem os meios de ler e
analisar o conjunto dos dossiês de pedidos de autorização de colocação no
mercado (AMM) que as empresas fazem chegar a ela. Sernine ironiza sobre um
pedido de AMM para o qual ele contribuiu: “Eram 57 volumes de seiscentas ou
setecentas páginas cada um, que pesavam 110 quilos e atingiam 2 metros de
altura. E era apenas uma parte do dossiê”. Essa situação está longe de ser
nova. A crônica jurídica de Bertrand Poirot-Delpech no Le Monde, durante o
escândalo sanitário do Stalinon em 1957, já a mencionava como um problema
fundamental: “Mestre Floriot, por exemplo, dedicou-se a um cálculo indiscreto.
Sabendo que 2.276 vistos tinham sido concedidos em 1953 e que os comissários
reuniram-se oito vezes por ano à razão de algumas horas a cada vez, ele chegou
ao tempo recorde de 40 segundos por exame de dossiê”4
Hoje,
os testes clínicos sobre os antibióticos desenvolvem-se em condições opacas,
sobre um fundo de divisão seletivo e mesmo com manipulações de dados. Um teste
sobre a utilização da Pristinamicina nos casos de pneumonia ilustra o problema:
havia, segundo Sernine, sete fracassos do tratamento para o grupo de pacientes
tratados com a droga e somente quatro no grupo de controle. Segundo o
especialista, que partilha a opinião da diretora médica do laboratório, teriam
sido incluídos doentes em situações a tal ponto severas que requereriam outro
tratamento diferente. “Portanto, a conclusão a que cheguei sobre isso é que se
trata do fracasso não do antibiótico, e sim da estratégia”. Um argumento
surpreendente do ponto de vista lógico: como julgar a eficácia de um
medicamento se os pacientes que ele não cura não são imediatamente
desqualificados, se se parte do princípio de que ele só é eficaz quando é
eficaz?
É
difícil para a ANSM desviar-se desse tipo de raciocínio circular no seio de
dossiês estatísticos complexos, que hoje substituíram a argumentação baseada no
olhar médico que percorre os casos clínicos individuais. Com frequência, essa
manipulação dos números conduz a falsificações. Em 2007, o caso do Ketek
suscitou várias mortes de pacientes por causa de problemas hepáticos e levou um
dos responsáveis pelos testes a purgar uma pena de prisão de dois anos nos
Estados Unidos, por ter “inventado” pacientes para inflar artificialmente a
eficácia do medicamento. Longe de ignorar o problema, certos dirigentes científicos
lembram, vários anos após o escândalo, que para esse medicamento “havia
cadáveres nos armários”.
Essa
expressão, utilizada por uma das diretoras médicas do grupo, testemunha certo
cinismo no interior da empresa, cujos altos executivos interiorizaram profundamente
os códigos. Para eles, os interesses do grupo vêm antes da saúde dos pacientes,
sempre que surge, entre estes dois sistemas de valores, um conflito. De maneira
geral, nos escritórios do serviço médico e nos do marketing reina uma forma de
amnésia seletiva do medicamento. A história dos efeitos colaterais imprevistos,
dos testes clínicos deturpados e dos escândalos sanitários não é memorizada, e
o fracasso clínico não tem o mesmo status do sucesso.
Toca-se
aqui num dos problemas de fundo da indústria farmacêutica: o fato de os testes
clínicos, ou seja, a prova da eficácia dos medicamentos, serem estabelecidos
por aqueles que produzem esses mesmos medicamentos. Alguns chamaram esse
fenômeno de dependência de “captura regulamentar” do Estado pelas empresas.
Essa engrenagem ressurge a cada novo escândalo: Stalinon (1957), talidomida
(1962), Distilbène (1977), Prozac (1994), cerivastatina (2001), Vioxx (2004)… A
cada onda daquilo que os tribunais chamam de “homicídios involuntários”, a
questão da independência dos testes clínicos volta à tona, mas nunca as
reformas que se seguem questionam o regime de propriedade comercial do
medicamento.
O
problema está profundamente enraizado no sistema econômico, que não é mais
moral para o medicamento que para o petróleo ou os cosméticos. Não somente
porque são os mesmos acionistas que se encontram nos comandos – a L’Oréal
continua sendo a principal acionista da Sanofi, desde a recente saída da Total
–, mas também porque a possibilidade de lucrar com os medicamentos aguça os
velhos antagonismos entre o valor de uso e o valor de troca.
Notas
1 Conduzida no âmbito de um doutorado em
Sociologia, esta pesquisa durou quatro anos, durante os quais o autor foi
contratado para vários cargos, por exemplo, o de estagiário nos serviços
comerciais da Sanofi, operário nas fábricas do grupo etc.
2A economia clássica distingue o valor de uso
e o valor de troca de uma mercadoria. Adam Smith distingue, por exemplo, o
diamante, com alto valor de troca e fraco valor de uso, da água, com fraco
valor de troca e alto valor de uso.
3Os nomes dos funcionários foram modificados
para preservar seu anonimato.
4 Bertrand Poirot-Delpech, Le Monde,
1o nov. 1957.
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