Chegou
até mim nos últimos dias, provavelmente por ocasião de toda a animosidade
gerada nos EUA pelo novo vídeo clipe da Beyoncé, uma entrevista concedida
décadas atrás por Nina Simone, aparentemente durante o auge de seu estrelato.
Tão logo comecei a vê-lo, percebi que o vídeo me era familiar,
afinal, havia sido colocado no excelente documentário da Netflix sobre a
cantora, “What happened, Miss Simone?”, lançado no ano passado. Ainda assim,
achei por bem vê-lo até o fim uma segunda vez, notando desde o começo
que assisti-lo novamente seria uma experiência tão mesmerizante quanto a
primeira vez que o vi. Tudo naquele vídeo emana poder e altivez. Nina, a cada
sílaba que pronuncia, revela a divindade e absoluta força da natureza que é,
exaltando, sem medo, o orgulho que sente de ser uma mulher negra e da cultura
de seu povo. No vídeo, corrigindo a pergunta vacilante e temerosa do repórter,
Nina retruca sem meias palavras: “Acho que o que você está querendo perguntar é
o porquê de minha insistência em mostrar a eles [jovens negros] essa negritude,
esse poder negro, levando-os a se identificarem com a cultura negra”. Sem
esperar que o repórter confirmasse, Nina responde a pergunta que ela mesma
formulou: “É que, em primeiro lugar, eu não tenho escolha: para mim, nós
[mulheres e homens negros] somos as mais belas criaturas no mundo inteiro, e eu
digo isso em todos os sentidos, por dentro e por fora, e nós temos uma
civilização que não é superada por nenhuma outra civilização da história, por
isso o meu trabalho e fazê-los curiosos e conscientes de quem eles são e de
onde vieram”. Amém.
A
despeito de também ser uma das maiores cantoras do século XX, bem
como, uma prodigiosa pianista, Nina tornou-se célebre por seu ativismo na luta
contra o racismo e pelos direitos civis da comunidade negra americana no auge
das, claramente ainda hoje vivas, tensões raciais por que o país passava nos
meados de 1950 e 1960. Não por coincidência, foi após o despertar de Nina para
a luta militante e o vigoroso impacto de tal luta no trabalho da cantora, que
sua carreira enquanto estrela da música popular americana começou um rápido
declínio, impulsionado pela perda do interesse do grande público branco na
música feita por Nina, na mesma proporção em que seu trabalho passava a
refletir mais e mais sua militância e politização. Soa familiar?
No
Brasil, uma estória que ressona de maneira análoga tem permeado o imaginário
popular por pelo menos um século e meio. Lançado na segunda metade do século
XIX, por Bernardo Guimarães, o romance “A Escrava Isaura” aborda a temática do
racismo ainda na sociedade pré-abolição da escravatura e conta a história da
escrava mestiça Isaura, cuja pele branca, embora fosse filha de escrava, a fez
cair nas graças de sua senhora, que a criou como membra da família, dando-lhe
educação e cultura. Isaura vive como uma mulher branca, bem-educada e
comportada durante toda a sua vida, com promessas de, um dia, receber sua
alforria, até que sua senhora morre antes de poder cumprir a promessa, e os
homens da família deixam claro não terem a menor intenção de conceder-lhe o
mesmo tratamento que a finada senhora. A transição que ocorre, inevitavelmente,
dá ao leitor a sensação de que, pela primeira vez, Isaura está sentindo na pele
branca o total peso de sua negritude interior herdada da mãe escrava. É só a
partir da morte de sua senhora e protetora, e do consequente início de sua
penúria, que Isaura torna-se e sente na pele verdadeiramente o que é ser uma
mulher negra.
Ora,
Nina, apesar de sua tez negra, também logrou êxito em cair nas graças da
sociedade branca, enquanto se absteve de abraçar sua negritude. Enquanto sua
música manteve-se alienada de qualquer conteúdo político, bem como, devidamente
palatável para os homens e mulheres brancos da época, ela cresceu
vertiginosamente em popularidade e alcançou o status de maior entertainer de
sua época. Assim como, hoje em dia, todos estavam muito satisfeitos em dançar
alegremente ao som dos grandes hits divertidos que Beyoncé lançou para as
pistas de dança. Vide Single Ladies, Partition, Crazy in Love,
etc. O que acontece no presente momento com Beyoncé, e que já havia acontecido
antes com inúmeros outros artistas negros, a exemplo de Nina Simone, é uma
estória velha como a da escrava Isaura. É a estória da sociedade eurocêntrica e
racista em que vivemos, na qual um homem ou uma mulher negros não podem abraçar
sua negritude e sentir orgulho de serem quem são sem que a sociedade branca
sinta-se ofendida.
Ao
realizar um vídeo majestoso, cheio de iconografia exaltando a cultura negra e
denunciando o racismo e o extermínio da juventude negra pela polícia americana,
a exemplo do que ocorre também nas favelas brasileiras, Beyoncé não está de
maneira alguma atacando a força policial estadunidense, como sugeriram alguns
políticos e jornalistas conservadores. Beyoncé está, tão somente, abraçando a
sua negritude e toda a beleza e dor que vêm com ela. Beyoncé está saindo do
armário onde, talvez inadvertidamente, esteve colocada até agora, protegida
pelo seu imenso sucesso financeiro e apelo universal de suas músicas. Beyoncé
esteve esbranquiçada até aqui pelo seu privilégio, raro para uma mulher negra.
E o que o racismo não consegue perdoar é o fato de que ela, agora, saiu do
armário. Beyoncé revelou: é negra e ama sê-lo. Isso, o racismo não pode
perdoar.
Em
“Formation”, seu hino de exaltação à negritude, Beyoncé se orgulha de seu nariz
largo, da linda e vasta cabeleira enrolada de sua adorável filha e recusa-se a
suavizar o fato de que é negra, e que carrega orgulhosamente tudo o que vem com
isso. Beyoncé, neste trabalho, divisor de águas em sua carreira, como Nina um
dia fez, está simplesmente falando sobre o que é ser ser jovem, talentosa e
negra. Está falando do sucesso e fortuna que vem com os dois primeiros, e do
sofrimento, da escassez de oportunidades e da violência estrutural que vem com
o último.
O
repúdio de (parte) do público a esta nova fase da cantora é, em minha opinião,
um sinal do sucesso da empreitada. Afinal, se não houver pessoas incomodadas é
porque não se conseguiu meter o dedo na ferida. E, mais, se os incomodados são
os conservadores e a elite branca, melhor ainda: Beyoncé acertou em cheio. Por
isso, não acho que Beyoncé esteja particularmente surpresa com a animosidade
gerada pelo seu novo trabalho. Ao abraçar sua negritude, pela primeira vez,
assim, de maneira tão explícita, a diva sabia que, assim como Nina, e assim
como as Isauras, no Brasil, ou nos EUA, no terceiro ou no primeiro mundo, a
pele negra vem com um preço alto que o racismo impõe. A sorte, neste caso, é
que Beyoncé uma negra deslumbrante, talentosa multimilionária: ela tem
crédito de sobra para pagar a conta dela e, se tudo der certo, das negras e dos
negros que vierem depois.
2 comentários:
Bravo, bravíssimo!
Parabéns pelo texto. Postei no meu face e pretendo levá-lo para meus alunos para discutirmos o tema "racismo".
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