Washington crê em tarifas
comerciais contra Pequim, mas não tem plano estratégico algum. Chineses apostam
em vasto desenvolvimento tecnológico e na grande rede de infraestrutura da
Eurásia
Pepe Escobar* | Outras Palavras
Foi muito mais que um primeiro
tiro, à meia-noite, em 6 de julho; pode marcar o início de uma terrível guerra
comercial. A queda de braços de tarifas entre EUA e China deve ser vista no
contexto de grande virada no Grande Quadro geopolítico e económico.
O jogo de passar adiante as
culpas, e todos os tipos de cenários de especulação de como pode evoluir a
disputa de tarifas, são questões periféricas. O alvo crucialmente decisivo do
que hoje se inicia não é algum “livre comércio” que seria disfuncional; o alvo
é o projeto “Made in China 2025” – a China autoconfigurada como usina geradora
de alta tecnologia equivalente ou mesmo superior à dos EUA e UE.
É sempre importante destacar que
foi a Alemanha que, na verdade, forneceu o molde para “Made in China 2025”,
mediante sua estratégia Indústria 4.0.
“Made in China 2025” tem por alvo
dez campos tecno-estratégicos: tecnologia de informação, incluindo redes 5G e
cibersegurança; robótica, aeroespaço; engenharia oceânica; ferrovias para
vagões de alta velocidade; veículos movidos a novas energias; equipamento
elétrico; maquinaria para agricultura; novos materiais; e biomedicina.
Para que o projeto “Made in China
2025” dê frutos, Pequim já investiu em cinco centros nacionais de produção de
inovações e em 48 centros provinciais, parte de um projeto para chegar a 40
centros nacionais até 2025. E em 2030, via uma estratégia paralela, a China já
deverá estar estabelecida também como líder no campo da inteligência artificial
(IA).
“O Sonho Chinês”, mantra do
presidente Xi Jinping, também conhecido como “o grande rejuvenescimento da
nação chinesa”, é estritamente ligado não só a “Made in China 2025”,
internamente, mas também, externamente, à Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE),
conceito que dá organicidade à política exterior da China para todo o futuro
planejável. E os dois tópicos – “Made
in China 2025” e ICE – são absolutamente inegociáveis.
Em agudo contraste, não se vê nem
sinal no horizonte de qualquer projeto “Made in USA 2025”. A Casa Branca parece
modular todo o processo como uma batalha contra a “agressão económica dos
chineses”. A Estratégia de Segurança Nacional define a China como principal
força que desafia o poder dos EUA. A Estratégia de Defesa Nacional do Pentágono
vê a China como “concorrente estratégico que usa economia predatória”. E como
chegamos a isso?
Inovação ou morte
E indispensável conhecer um pouco
do contexto-cenário.
David Harvey, em O Novo
Imperialismo, recorre a The Global Gamble: Washington’s Bid for Global
Dominance, de P. Gowan, para chamar atenção para o quanto ambos veem “a
radical reestruturação do capitalismo internacional depois de 1973 como uma
série de jogadas, tentadas pelos EUA, interessados em manter a própria posição
hegemônica nos assuntos econômicos mundiais contra Europa, Japão e, depois,
contra o Leste e o Sudeste da Ásia”.
Antes de o milênio acabar, Harvey
já enfatizava o modo como Wall Street e o Tesouro dos EUA eram operados pelo
Estado como “instrumento formidável de governança econômica para impulsionar os
processos de globalização e as transformações domésticas neoliberais
associadas.”
Agora a China, em velocidade
alucinante, está finalmente pronta a investir na projeção de seu próprio poder
econômico. Como Harvey já observou há mais de uma década, o próximo passo para
o capitalismo da Ásia Oriental seria “afastar-se do muito que depende do
mercado norte-americano”, rumo ao “cultivo de um mercado interno”.
Harvey descreveu o programa de
modernização maciça da China como “uma versão interna de reorientação
espaço-temporal equivalente ao que os EUA fizeram internamente nos anos 1950s e
1960s mediante a suburbanização e o desenvolvimento do chamado Cinturão do
Sol”. Na sequência, a China estaria “gradualmente drenando o capital excedente
do Japão, de Taiwan e da Coreia do Sul e, assim, reduzindo os fluxos para os
EUA”. Já está acontecendo.
O presidente Trump não é
exatamente o que se diria um estrategista geopolítico. A razão para as novas
tarifas pode ser forçar as cadeias de suprimento das empresas norte-americanas
a reduzir o muito que dependem, hoje, da China. Mas o modo como a economia
global foi montada não aguenta o desmanche dessas cadeias de suprimento – com a
produção sendo des-deslocalizada de volta aos EUA, como diz Trump. O local,
local, local também rege a lógica do capitalismo turbinado: as empresas sempre
privilegiarão a mão de obra mais barata e os menores custos de produção, não
importa onde estejam.
Agora, comparem isso à China que
investe em deslocalização da alta tecnologia integrada com centros de
excelência norte-americanos. No que se trate da cabeça do combate na linha da
inovação entre China e EUA, a estratégica do Zhongguancun Development Group
(ZDG) é caso fascinante.
O grupo ZDG estabeleceu vários
centros de inovação fora da China. O principal Centro ZGC de Inovação está
instalado em Santa Clara, Califórnia, bem perto de Stanford e dos campus de
Google e Apple. Há agora um novo centro em Boston à distância de um grito de
Harvard e do MIT.
Esses centros fornecem o pacote
completo – desde laboratórios que são o estado da arte até – fator crucialmente
importante – o capital, mediante um fundo de investimento. A matrix vem
do governo de Pequim, pelo tecnodistrito da cidade. E nem é preciso dizer que o
grupo ZDG está integralmente alinhado com a ICE e a ênfase que jamais é
esquecida na expansão, para “aprender a experiência de outros países, de um
ecossistema de inovação”
Isso, num microcosmo, é do que
trata o projeto “Made in China 2025”.
Meio século de guerra comercial?
Assim sendo, o que acontecerá?
Assim sendo, o que acontecerá?
Sob o atual tsunami de histeria, a análise sóbria que nos vem de Li Xiao, decano da Escola
de Economia da Universidade Jilin, é mais que bem-vinda.
Li vai logo à jugular. Destaca o
quanto “a ascensão da China é, essencialmente, um ganho de status dentro do
sistema do dólar.” Do ponto de vista de Pequim, é imperativo mudar, mas a
mudança será gradual. “O objetivo da internacionalização do yuan não é
substituir o dólar. No curto prazo, o sistema do dólar é insubstituível. Nosso
objetivo para o yuan é reduzir o risco e o custo, sob o sistema do dólar.”
Com muito realismo, Li também
admite que “o conflito entre as duas maiores potências prosseguirá por, no
mínimo, 50 anos, talvez mais. Tudo o que está acontecendo hoje é apenas
um show preliminar, antes do espetáculo principal da história.”
Implícita na metáfora do show preliminar,
antes do espetáculo principal, é a ideia de que a liderança chinesa parece
interpretar o primeiro tiro do tarifaço, à meia-noite de hoje, como um modo de
reaquecer o que se lê na Estratégia de Segurança Nacional dos EUA. A conclusão,
para Pequim é uma só e inescapável: agora, os EUA começaram a ameaçar o Sonho
Chinês.
Dado que o Sonho Chinês, o
“rejuvenescimento da nação chinesa”, “Made in China 2025”, a ICE, o
multipolarismo e a China como motor da integração da Eurásia são itens
absolutamente não negociáveis, não surpreende que o cenário esteja montado para
forte, inevitável turbulência.
*Pepe Escobar - Jornalista
brasileiro, correspondente internacional desde 1985, morou em Paris, Los
Angeles, Milão, Singapura, Bangkok e Hong Kong. Escreve sobre Asia central e
Oriente Médio para as revistas Asia Times Online, Al Jazeera, The Nation e The
Huffington Post.