Nada menos do que a erradicação
absoluta de qualquer tipo de discriminação com base na cor da pele nos deve ou
pode satisfazer
Pedro Norton | Visão | opinião
Como qualquer sociedade, Portugal
tem as suas mitologias. Uma das mais famosas será a do povo de brandos costumes
que a História das guerras liberais, da República, do reviralho, da Guerra
Colonial estão longe de autorizar. Mas o mito salazarento é confortável, e a
História uma maçada. Publique-se, pois, o mito.
O racismo, ou a sua quase
inexistência na sociedade portuguesa, é outro dos nossos grandes lugares
mitológicos. Que esteja por comprovar o nosso caráter plástico, acolhedor,
aberto e tolerante é um empecilho menor. A fantasia lusotropical é tão
simpática como a ilusão dos brandos costumes, e eis quanto tem bastado para
fazer do racismo um quase-interdito na nossa sociedade.
Ora os interditos nunca são
saudáveis – nem psicológica nem socialmente. Tolhem o raciocínio, impedem a
reflexão, reprimem a consciência. Os episódios recentes no bairro da Jamaica
são, portanto – ou deveriam ser –, um excelente pretexto para se fazer uma
reflexão profunda, sem tabus nem ideias feitas, sobre a mitologia racial em Portugal.
Mas aqui chegados, convém olhar
para o caráter mais conjuntural dos episódios recentes para enquadrar, de forma
intelectualmente séria, os termos desse debate urgente. É que não basta gritar
racismo para congelar a razão. Não basta gritar racismo para dispensar os
cuidados mínimos que estamos dispostos a garantir, quando alegamos a existência
de qualquer outro tipo de delito ou de crime. Não basta gritar racismo para que
se justifique uma acusação sem provas, um julgamento precipitado ou uma condenação
sumária. Não basta gritar racismo para outorgar um estatuto de superioridade
moral ao acusador, o qual o dispensa da maçada de argumentar, fundamentar,
expor factos e argumentos no quadro de um debate livre e racional.
Se invoco os particularismos deste
debate recente (sim, é às atitudes irresponsáveis do Bloco e de Mamadou Ba que
me refiro) é porque me parece fundamental que tenhamos claro qual é o resultado
que queremos obter com um debate amplo, sério, profundo, sem interditos, de
qualquer tipo, sobre o racismo em Portugal. E esse desiderato, na minha cabeça,
está claro. Quero viver numa sociedade em que a cor da pele desapareça por
completo das nossas opções políticas, sociais, económicas – sejam essas opções
coletivas ou individuais; sejam elas opções conscientes ou (atenção)
inconscientes; expressas ou tácitas; conjunturais ou estruturais.
Mas esse desaparecimento quer
dizer isso mesmo: desaparecimento. Não quer dizer a manutenção de um conflito,
de uma dialética, de uma oposição em que simplesmente se invertem os termos do
debate numa perpetuação absurda do mesmo conflito que se quer eliminar. Nada
menos do que a erradicação absoluta de qualquer tipo de discriminação com base
na cor da pele nos deve ou pode satisfazer. Nada menos, mas também nada mais. E
isso, lamento, não é compatível com guerras identitárias que são a negação
paradoxal do mal que se quer combater. Vai sendo tempo de deixar cair as
bafientas categorias mentais de génese marxista e de basear a guerra contra o
racismo larvar da sociedade portuguesa num humanismo radical que é a nossa
verdadeira casa comum.
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