domingo, 18 de agosto de 2019

Angola | Cruzada e encruzilhada


Víctor Silva | Jornal de Angola | opinião

O tempo caminha a passos largos para registar dois anos de governação do Presidente João Lourenço, facto que marca uma mudança política de grande impacto e não apenas uma mera substituição na liderança do país.

O país vivia uma realidade mascarada, fantasmagórica, escondendo os seus reais problemas e potenciando feitos que, na verdade, eram quase nada quando confrontados com a real dimensão das dificuldades estruturais e estruturantes que vivíamos. Dir-se-á que vivíamos uma vida que não era nossa. A vida do imaginário e da ficção de quem julgava que Angola se resumia a uma área geográfica delimitada entre a Ingombota, Talatona e a Vila Alice. Mesmo para os que assumiam que o país era a sua capital, as fronteiras eram curtas, não passavam a Luanda real que está mergulhada numa montanha de problemas, desde o sobrepovoamento a todas as carências que isso arrasta, da falta de água, energia, saneamento, mobilidade, habitação, saúde e educação, para só citar estes, e que depois se reflectem, naturalmente, na vida da sua reduzida dimensão citadina.

As prioridades foram sendo invertidas na velocidade da saciedade dos apetites vorazes de uma elite, que se foi estruturando e consolidando locupletando-se dos dinheiros públicos, à custa do sacrifício da maioria, ignorada e entregue à sua sorte, seguindo o famoso slogan do “débrouillez-vous” copiado do antigo ditador do grande vizinho do Norte e Leste.

Os planos e aparentes boas intenções em buscar soluções para os problemas esbarravam nessa ganância de enriquecer a todo o custo que se enraizou na sociedade e que fez perder princípios e valores idiossincráticos que nos são caros desde as guerras contra a ocupação colonial e que foram apressadamente substituídos pela avareza, na triste política de acumulação primitiva de capital que servia quase que em exclusivo uma minoria depredadora, com os restantes cidadãos a olharem para cima e procurarem imitar hábitos e práticas. Era a institucionalização da corrupção, a grande e a pequena, e da impunidade, onde apenas os pilha-galinhas e ladrões de telemóveis e botijas de gás enchiam as cadeias enquanto os responsáveis pela morte de milhares de cidadãos por desvios de verbas de programas de saúde, de saneamento, de assistência alimentar, ou outros, continuavam a passear-se entre a opulência e o concurso de ostentação sobre quem tem ou apresenta mais.

A verdade é que, mesmo com esse enriquecimento maioritariamente ilícito, são poucos os nossos endinheirados que assumem o seu património, eventualmente por saberem ser de origem questionável e logo passível de ser investigado e eventualmente confiscado.

Todo este estado de situação, levou a que o partido no poder, o MPLA, fizesse uma auto-crítica ou mea culpa, e se posicionasse na linha da frente para corrigir o que está mal, apresentando um novo rosto para a liderança no que resultou em mais um mandato maioritário popular para governar o país.

E se muitos pensaram que o lema da campanha era apenas um engodo para captar eleitores, o rumo ficou claro desde o discurso de investidura do novo Presidente, quando se comprometeu publicamente em liderar a cruzada contra a corrupção e a impunidade.

A partir daí e neste espaço de dois anos não se pode dizer que a corrupção tenha terminado ou diminuído, embora tenham sido quebrados, ou mais controlados, alguns dos veículos por onde se esvaiam os recursos públicos em benefício dessa elite. Mas, acima de tudo, o sentimento de impunidade está a perder terreno, obrigando os que ainda se julgam acima da lei a sofisticar os seus métodos de actuação e, em não poucos casos, a render-se aos novos tempos, antecipando-se à mão da justiça que, como diz o provérbio, pode tardar mas não falha! 

E o que se tem assistido? Um cortejo de réus e arguidos improváveis; uma vasta fila de dirigentes ou ex-responsáveis a vários escalões, desde o central aos provinciais, municipais e até comunais, a contas com processos judiciais por suspeitas de práticas lesivas ao interesse público.

O ser-se arguido não torna automaticamente a pessoa ou entidade visada num culpado até porque há sempre a presunção da inocência a que todos têm direito e que a culpa só é efectiva depois do processo ter transitado em julgado. A iliteracia jurídica e a simplificação da linguagem fazem com que alguns passos, na administração da justiça sejam traduzidos, erradamente, em sentenças, algumas manifestando o nosso sentimento e vontade e outras, em sentido contrário, a nossa repulsa e abjecção.

Em tese, todos, situação e oposição, bateram palmas a favor do combate à corrupção e à impunidade, reconhecendo neles dois dos principais males que nos trouxeram à situação que vivemos. No MPLA havia a consciência que, por ser o partido no poder, os estilhaços dessa campanha poderiam afectar-lhe em maior escala, embora não em exclusivo.

Quando os casos começam a ser investigados, adoptam-se medidas de coacção que, em algumas situações leva ao seu grau mais elevado que é a prisão; os processos remetidos aos tribunais e alguns julgados e decididos; lá vem um coro de protestos de justiça selectiva, de perseguição, porquê estes e outros não?

A nossa justiça não só não possui capacidade humana, material e técnica para atender um dos princípios básicos, que é a celeridade dos processos, como o volume de casos que lhe chegam pelas mais diversas formas. Acusada, durante muito tempo, como faz de conta, tal o grau de impunidade que se instalou, quando está a desempenhar o seu papel vê-se confrontada com todo o tipo de pressões, directas e indirectas, para se manter cega, muda e surda, ignorando-se que a mesma lei que condena, também permite o recurso a quem se julgue mal sentenciado.

O facto é que muitos dos que agora são conhecidos como “marimbondos”, com um poder económico e até político que não se deve menosprezar, insistem em transformar a cruzada contra a corrupção e a impunidade numa encruzilhada e não olham a meios para dividir para melhor reinar, tirando vantagens das novas tecnologias de informação, que abominavam e sempre procuraram controlar.

Na imagem: Palácio presidencial, Luanda

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