Angola ganha protagonismo na
pacificação da região mais crucial e perigosa de África. Os presidentes do
Uganda e do Rwanda assinam compromisso de diálogo na capital angolana.
Ontem, no salão nobre do palácio
da Cidade Alta, em Luanda, sob três lustres enormes, um jovem de laço preto
tocava piano às dez da manhã. Todas as segundas-feiras, à noite, no espaço
cultural Chá de Caxinde, Miqueias Ramiro e a sua Banda Maravilha tocam velhos
sons luandenses, de rebita e de semba. Ontem, Miqueias, sozinho, quis ir ainda
mais longe e mais fundo, tocou uma e duas vezes, repetiu ainda, Mon"ami
(Meu Filho), o êxito eterno dos Ngola Ritmos, pais da música angolana - em
quimbundo, uma mãe chora o filho que morreu. Tudo a ver com a entrada no salão
de cinco presidentes africanos.
À frente vinha Félix Tshisekedi,
o presidente da RDC (República Democrática do Congo, antigo Zaire), a conversar
com o presidente do Rwanda Paul Kagame. Eleito no princípio deste ano,
Tshisekedi foi o primeiro chefe de Estado zairense a chegar ao poder
pacificamente nos quase 60 anos de independência. Mas ainda não conseguiu
formar um executivo e as suas províncias orientais são dominadas por grupos
armados. Quanto a Kagame é o líder de um Rwanda onde ainda se vivem as
consequências do genocídio perpetrado entre as etnias hutu e tutsi e foi
acusado várias vezes pela vizinha RDC de instigar grupos armados no território
dela.
Entretanto, o anfitrião João
Lourenço encaminhou-se para a cadeira central. E a fechar o cortejo, um dos
mais antigos líderes mundiais, o presidente do Congo-Brazzaville Denis
Sassou-Nguesso, fato de fino corte - ele vem da Meca do vestir africano -
falava com a exuberância de quem se habituou ao poder há quatro décadas,
dirigindo-se ao ugandês Yoweri Museveni, de casaco modesto, próprio do antigo
guerrilheiro que foi.
A reunião não era social,
fazia-se pela tragédia que um grande pedaço de África vive há décadas, a região
dos Grandes Lagos. A ela pertencem três dos países representados naquele salão:
o Uganda, o Rwanda e a RDC. Genocídios, guerras de milhões de mortos, as mais
longas intervenções da ONU como forças impotentes de paz, bandos armados de
crianças, conflitos locais que logo saltam fronteiras e impedem o funcionamento
de países com das maiores riquezas do mundo, com os minérios mais raros e
bacias hidrográficas mais poderosas... Uma tristeza pegada, que só pode ser
contada pela voz dorida de Lourdes Van Dúnem a cantar Mon'Amiou pelo discurso
poderoso do congolês Denis Mukwege, médico ginecologista e Nobel da Paz 2019,
denunciando um dos efeitos das guerras, as violações dos mais fracos.
Ontem, a guerra que se tentava
suster era, depois de tantas na região dos Grandes Lagos, a que poderia vir a
acontecer entre o Rwanda e o Uganda. Paul Kagame acusou recentemente Yoweri
Museveni de tentar desestabilizar o seu regime, armando a oposição rwandesa e
os rebeldes hutus. E Museveni acusa Kagame de espionagem... E, no entanto, eles
já foram amigos. Paulo Kagame fugiu jovem do seu país nas vésperas do genocídio
contra os tutsis e, no Uganda, aderiu à guerrilha que o ugandês Museveni
travava contra o ditador Idi Amine. Ei-los, agora, chefes de governo, e
prováveis iniciadores de um conflito entre eles. O que ali, sabe-se, logo que
começa, transborda.
No mês passado, também em Luanda,
realizara-se já uma cimeira presidencial quadripartida - Angola, RDC, Uganda e
Rwanda -, e João Lourenço fez de "facilitador", como assim mesmo se
chamou. Agora, o angolano convidara Sassou-Nguesso para partilhar essa
influência - mais um sinal de adepto da negociação... Lourenço reuniu ambos os
prováveis contendores, o ugandês e o ruandês, e mais a RDC, gigante pelo
tamanho, população e posição estratégica - é o coração africano com mais
fronteiras à volta - mas também o mais adiado e fraco dos países. E ontem
assinou-se o Memorando de Entendimento de Luanda, em que Paul Kagame e Yoweri
Museveni se comprometiam a abrir as fronteiras e a boa vontade. Assistiam
representantes da ONU e da Organização da Unidade Africana.
"O ato de assinar não é o
fim do problema, o que mais importa é honrar o que assinaram", disse João
Lourenço, com o seu estilo de voz pausada e olhos semi-cerrados. No ano
passado, na sua visita a França, ele ouvira do presidente Macron a afirmação de
como o líder da francofonia veria com agrado a lusófona Angola liderar a
pacificação da região dos Grandes Lagos, onde se fala maioritariamente francês.
Não se tratou de diplomacia gratuita mas de um reconhecimento natural: afinal,
Angola que travou também uma guerra civil longa e medonha, acabou-a em 2002. E
tendo-a acabado, acabou-a mesmo: o partido rebelde, a Unita, concorreu ao
Parlamento e participa na democracia angolana, e os rebeldes armados integraram
os exércitos nacional até aos mais altos postos. De vez em quando Angola é um
autêntico exemplo, começa-se agora dar conta...
Ontem, no salão onde se dedilhou
em teclas um choro à paz, o ministro da Defesa estava à civil, apesar de
Salviano de Jesus Sequeira, o general Kianda, ter sido um velho guerrilheiro da
libertação nacional. E, chegado no dia anterior dos Estados Unidos, onde ouvira
do secretário de Estado Mike Pompeo rasgados elogios às "reformas em curso
em Angola", o ministro das Relações Exteriores Manuel Augusto aconselhava
os jornalistas a serem diplomatas: "Porque é que vocês vão falar ao
Presidente da RDC de problemas internos que não têm nada a ver com esta
cimeira?" Mas um jornalista da Rádio Tocoísta, emissora luandense de uma corrente
religiosa pacifista, perguntou mesmo a Félix Tshisekedi por que não tinha ele
ainda conseguido fazer governo. Tshisekedi respondeu: "Peço indulgência,
estou a negociar, a tentar o primeiro governo de compromisso da história do meu
país..."
O tapete por onde saíram os cinco
presidentes, no velho palácio, era vermelho, uma das cores do poder. Mas quem
olhasse com mais atenção veria que esse tapete era debruado pela imagem da
estatueta do pensador, da arte tchokwe - é só um velho que pensa. Às vezes, esse
só é a distância que vai do negociar à guerra.
Ferreira Fernandes em Luanda |
Jornal de Notícias
Na imagem: Da esquerda para a
direita: o presidente do Uganda, Yoweri Museveni, o presidente da República do
Congo, Denis Sassou Nguesso, o presidente de Angola, João Lourenço, o
presidente da República Democrática do Congo, Felix Tshissekedi, e o presidente
do Rwanda, Paul Kagame | Foto: EPA/Ampe Rogério
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