sábado, 10 de agosto de 2019

S. Tomé e Príncipe | A Fogueira das Vaidades


Adelino Cardoso Cassandra | Téla Nón | opinião

Vivemos tempos difíceis, muitos difíceis, como tenho frequentemente alertado, neste jornal, em vários artigos de opinião, perante a indiferença, e, até, manifestações de escárnio e ataques pessoais, por parte das celebridades do costume, que, em nome da defesa dos seus superiores interesses e das suas clientelas, fizeram com que o país perdesse, definitivamente, o medo do ridículo e da chacota.

Na primeira república e após a abertura do referido regime (basta ler o famoso livro do Gerhard Seibert – Camaradas, Clientes e Compadres) muitos dos problemas que enfrentávamos, relacionados com a manifestação da crença na autoridade e confiança no progresso, não eram diferentes dos atuais, mas, todavia, naquela altura, existia algum pudor, por parte dos representantes e instituições do Estado, na exposição pública e impiedosa da mediocridade, da vulgaridade ou, até, da vaidade inconsequente e pueril, voluntária ou involuntariamente, como elementos de manifestação da luta pelo poder na nossa terra.

Para além disso, em aparente contradição com esta constatação, o país, naquela altura, tinha muitos menos quadros qualificados, na maior parte dos sectores de atividade e mesmo na estrutura do Estado.

Ou seja, ao mesmo tempo que, aparentemente, o esforço para a qualificação dos quadros nacionais foi sendo feito e o seu enquadramento, como garantia da normalização da vida e dinâmica das instituições do país, ao longo dos tempos, foi decorrendo, o país começou a viver numa espécie de “Fogueira das Vaidades”, com reflexos desastrosos na regularização da nossa vida em comunidade, cuja manifestação está relacionada com o desejo e luta pelo exercício do poder, nas suas mais variadas formas, no interior dos partidos políticos, nas instituições do Estado e, até, nas relações sociais mais básicas, caracterizador do estádio embrionário de um autêntico Estado falhado.


Esta “Fogueira das Vaidades” reflete, a montante, a expressão dos nossos maiores problemas relacionados com: a incapacidade do Estado providenciar a nossa segurança coletiva, a ordem e bem-estar das nossas populações; a inexistência de estruturas sólidas e eficazes para sustentar a nossa soberania jurídica e o nosso ciclo crónico de pobreza e miséria que nos transformou num Estado pedinte e incapaz de existir sem o apoio da ajuda internacional.

Para se salvar nesta autêntica selva em que se transformou o país foi preciso, por isso, a adoção de mecanismos de sobrevivência onde predominam a arrogância, a ganância, a soberba e, nalguns casos, o ódio e a ignorância, mascarados de um sentimento individual de grande valorização pessoal, que sirva para impressionar ou intimidar os pares, os adversários políticos ou a própria comunidade.

É esta a essência da nossa “Fogueira das Vaidades” que, cresce, todos os dias, como incêndios descontrolados, no interior do país quando, por exemplo:

assistimos, impávidos e serenos, às guerras resultantes da luta pelo poder, no contexto intra ou interpartidário, que obstaculiza a ação governativa e fragiliza o papel e funções do chefe do governo, transformando-o numa espécie de figura descartável no domínio da ação governativa;

diariamente, constatamos a existência da insubordinação nos quartéis militares e desrespeito institucional pelas hierarquias;

assistimos, com tom de crueldade inusual, à manifestação de fenómenos de justiça pelas próprias mãos, posteriormente exibido nas redes sociais, perante a passividade e indiferença das entidades estatais e júbilo popular, tendo, como pretexto, para tal, o facto do hipotético prevaricador ter roubado uma grade de cerveja;

constatamos que os partidos políticos se transformaram em palcos preferenciais de lutas constantes, com cenas de agressões físicas e intimidações, tendo como objetivo a defesa dos interesses privados, contaminando-se, posteriormente, o próprio Estado com todos os vícios e consequências deste propósito;

assistimos, com vergonha e temor, o Poder Judicial, cuja função é administrar a justiça, ou seja, aplicar o Direito e apreciar os casos com equidade, transformar-se, nalguns casos, em palcos de confrontos declarados de ódios, de iniquidades, de despotismo militante inter e intrajudicial e, até, em entidades que estão acima da própria lei;

vemos alguns jovens e, até adultos, nalguns casos sem quaisquer qualificações compatíveis, técnicas e/ou políticas, a reivindicarem cargos de Diretores de empresas, ministros ou similares, num registo de chantagem e ameaças, só pelo facto de terem participado na colagem de cartazes e/ou na mobilização popular em contextos específicos de campanhas eleitorais.

O problema, contudo, é que algumas pessoas, para não dizer a maioria das pessoas, começam a interiorizar a ideia de que esta cultura de “Fogueira das Vaidades”, predominante momentaneamente no exercício do poder político e nas relações sociais mais básicas na nossa terra, é necessária, senão imprescindível, para a transformação do país.

Temo, todavia, que tal facto, possa significar, ao contrário daquilo que estas pessoas pensam, os primeiros sinais ou marcas da entrada em declínio ou degenerescência do poder político na nossa terra, tipificador da falta de autenticidade deste mesmo poder, resultante da exposição lenta, a que todos estamos sujeitos, às labaredas de ódios, mediocridade e vaidades inócuas, que nos vai consumindo sem qualquer piedade.

Nunca, como agora, diariamente, em conversas informais entre santomenses, nas ruas ou nas redes sociais, são postas em causa, as invocações de razões históricas, que comprometeram milhares de nacionais, no período anterior ou posterior ao 12 de julho de 1975, para a causa da independência nacional, em detrimento de qualquer outra alternativa política, menos radical, em associação com a administração colonial das ilhas.
Ou, ainda, nunca como agora, aqui e acolá, se constata, por parte de algumas pessoas, a defesa e proposta de eventual implementação de um regime político autoritário no país, como medida para a solução dos nossos atuais problemas.

Provavelmente, estaremos a viver, neste momento político específico da nossa história, uma grande aventura cega. Há muita gente inconfortável com aquilo que existe ou, mesmo, desassombradamente contra aquilo que existe, e que não encontra respostas ou possibilidades de intervenção pessoal e/ou coletiva, no interior dos instrumentos de ação política e interventiva que existem, designadamente partidos políticos, por inadequações destes, para dar a sua colaboração em prol da produção de uma ordem, minimamente racional, que nos afaste desta “Fogueira das Vaidades”.

Continuando neste caminho, nos próximos tempos, não me admiraria nada, que, qualquer ato, mais ou menos pensado, com consequências nefastas, fará mover a “nação” libertando forças sobre as quais nenhum protagonista desta “Fogueira de Vaidades” terá qualquer domínio ou controlo. Não tenho a certeza ou presunção que tal será, necessariamente, mau!

Adelino Cardoso Cassandra

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