#Escrito e publicado em português do Brasil
Dois
economistas sondam o empobrecimento e depressão dos operários, na antiga
potência industrial do mundo. Em sua tragédia, as ciladas da racionalidade
neoliberal, num sistema em que a grande realização é o consumo
Eleutério F. S. Prado* | Outras
Palavras | Imagem: Lesley Oldaker
Eis
como, os autores – por meio do pensamento positivo – se consolam diante de um
presente que se afigura como bem desconsolado: “mantemos o otimismo;
acreditamos no capitalismo; continuamos a crer que a globalização e a mudança
tecnológica podem ser orientadas em benefício de todos”. A situação social que
descrevem em Mortos pela desesperança e o futuro do capitalismo1 se
apresenta como desastrosa e mesmo indignante, mas ao invés de fazer uma crítica
radical do sistema que, aliás, chamam pelo seu verdadeiro nome, preferem vê-lo
apenas como mal administrado. Anne Case e Angus Deaton, dois economistas
consagrados da Universidade de Princeton (EUA), documentam nesse livro, de
certo modo corajoso, os infortúnios, os abatimentos e os bloqueios sociais que
os trabalhadores brancos menos instruídos (classe operária) vêm enfrentando na
sociedade norte-americana.
O
quadro deprimente que pintam está sintetizado na figura abaixo que apresenta
estatísticas históricas de mortalidade nos EUA e em três outros países
desenvolvidos (para pessoas entre 45 e 54 anos). Mas antes de poder analisá-lo
melhor, ou seja, com maior extensão e profundidade, é preciso apresentar um
contexto, uma rodada de contribuições analíticas em dois campos do conhecimento
científico.
Como
esses dois autores põe o problema da compreensão dos resultados da globalização
neoliberal para a vida material e mental dessa fração da população nos Estados
Unidos, é necessário começar apresentando uma tese clássica sobre o homem
moderno no campo da psicologia social. Para Erich Fromm, este último se sente
como indivíduo, ou seja, com um ser centrado em si mesmo que possui liberdade,
vontade própria e capacidade crítica, que se pauta pelo seu auto-interesse e
que, para tanto, confia sobretudo em si mesmo. Mas, ao mesmo tempo, ele se vê
como um ser solitário, que está constantemente acossado pela concorrência e,
por isso, encontra-se tomado por ansiedade, perturbações de caráter e medo do
futuro. “A sociedade moderna” – diz Fromm – “afeta o homem de duas maneiras
simultaneamente, ele se torna mais independente, autoconfiante e arguto, mas
também mais só, isolado e temeroso”.2
Eis
que esse indivíduo é a contrapartida social de um sistema econômico que
funciona automaticamente, sem um controle social efetivo, e que se afigura por
isso como uma segunda natureza. Como diz o próprio Fromm: por meio dessa
inserção, “o homem se torna uma roda dentada na imensa máquina econômica”. Em
consequência dessa disposição societária, ele está posto como um ser falsamente
para si que sofre de solidão, ansiedade e medo – um “fraco” que recalca a sua
fraqueza, cuja origem é estrutural. Por isso mesmo está sujeito à certas
síndromes psicológicas como as neuroses e as perversões, às mortificações
depressivas.
OUTRAS
PALAVRAS é financiado pelas pessoas que o leem. Faça parte
>>>
Se
esse indivíduo for um capitalista, ele pode se ver como alguém importante,
tornando-se assim capaz de aplacar o seu sentimento de relativa impotência; se,
porém, for um trabalhador, ele pode se sentir até mesmo como um ser
insignificante que não consegue se realizar como indivíduo bem-sucedido no meio
social. É preciso ver reflexivamente que as pessoas em geral se medem no
capitalismo pelo seu sucesso profissional, pela sua capacidade de consumo
conspícuo, enfim, por sua riqueza mercantil. Está última garante certa
segurança para aqueles que se sentem bem-sucedidos nos períodos de boom
econômico, mas costuma também perder parte desse atributo nos períodos de
crise, quando então mesmos os mais ricos passam a temer a desvalorização do
capital.
Ora,
esse quadro foi fortemente agravado pela vinda do neoliberalismo a partir dos
anos 1980 do século XX. Com ele, a proteção social aos trabalhadores em geral,
garantida pela socialdemocracia prevalecente até então nos países do Ocidente,
passou a ser pouco a pouco desmantelada. E essa proteção é crucial porque, com
a ascensão da sociedade urbana, os laços familiares se tornaram cada vez mais
tênues. Em consequência, as pessoas se encontram, também cada vez mais,
socializadas como unidades individuais. Como se sabe, o neoliberalismo se
constitui sobretudo como uma nova forma de subsunção real do trabalho ao
capital, uma forma que se tornou dominante após 1980 e que pode ser
caracterizada como intelectual e societária. A subsunção material da fábrica
perde força, mas cresce a captura da subjetividade dos trabalhadores aos
propósitos associados à acumulação de capital.
Assim,
mais do que uma mera ideologia, o neoliberalismo se põe como uma racionalidade
que procura moldar os indivíduos como seres mais bem adequados à concorrência
capitalista, aos mercados, à produção mercantil. E essa lógica, como bem se
sabe, espraia-se agora para todos os domínios da sociedade. O neoliberalismo
aspira por todos os bens – sejam eles privados, comuns ou públicos – sob a
forma de mercadoria, predicando que as pessoas devem se encarar como seres
competitivos que buscam aumentar e valorizar constantemente o seu próprio
“capital humano”.
As
consequências sociais da difusão da racionalidade neoliberal na sociedade
norte-americana foram devastadoras. E o livro de Case e Deaton, com base em
estatísticas de doenças, vícios e mortes, traça um quadro dantesco desse
impacto, especialmente nas condições de vida da classe operária branca dos
Estados Unidos – uma fração que até o final dos anos 1970 se encarava como
classe média privilegiada, possuidora de um padrão de vida consumerista, o qual
fazia inveja aos pobres de espírito do resto do mundo e era motivo de orgulho e
propaganda imperialista.
Os
autores contam, na introdução, que foram levados a essa pesquisa empírica
quando descobriram que as taxas de suicídio entre as pessoas de meia-idade
estavam aumentando rapidamente nos Estados Unidos. O consumo de opioides, o
alcoolismo e as mortes por overdose também cresciam desmedidamente. Na
investigação, descobriram então que tais aumentos se deviam a uma pandemia de
desesperança que tinha causas econômicas, sociais e psicológicas. Tratou-se
para eles, então, de estudar o que os dados poderiam dizer sob a hipótese de
que se tratava de um efeito da globalização na situação da força de trabalho
nos Estados Unidos.
Ao
consultarem as estatísticas, eles notaram rapidamente que as mortes causadas
pela desesperança se concentravam especialmente naquela fração da população que
não tinha um título de curso superior. Constataram que a evolução do mercado de
força de trabalho nos Estados Unidos, nas décadas mais recentes, passara a
privilegiar aqueles que tinham algum título de curso superior (quatro ou mais
anos) e a discriminar aqueles que tinham uma formação que chegava apenas aos
graus médios, geral ou profissional. Numa leitura clássica, a classe operária
desse país ganhava assim uma nova/ruim experiência no capitalismo – e ela
contrariou a que tiveram no passado, especialmente no chamado “período de ouro”
(1945 – 1975).
O
sistema meritocrático que governa esse mercado passara a contemplar melhor
aqueles que tinham capacidade adquirida para trabalhar num mundo agora
crescentemente informatizado, em que as mudanças tecnológicas ocorriam
celeremente. Em consequência, enquanto esses trabalhadores tomavam a si mesmos como
“vencedores”, todos aqueles com menos educação formal se viram como
“perdedores” na corrida pelo sucesso. Como se sabe, na sociedade
norte-americana impera como em nenhuma outra um individualismo competitivo que
ajuda a ganhar títulos olímpicos, mas produz também muita ansiedade, frustração
e obesidade mórbida, tal como observara já no passado Erich Fromm. Como se
sabe, foi essa sociedade que lhe forneceu o material para o desenvolvimento de
suas teses críticas no campo da psicologia social.
O
processo da globalização eliminou grande parte do emprego industrial baseado em
trabalho manualmente intensivo, incrementando ao mesmo tempo a ocupação no
setor serviços, o qual se tornou o grande absorvedor de força de trabalho pouco
qualificada nos Estados Unidos. A revolução tecnológica da informática e da
comunicação, por sua vez, promoveu um crescimento da demanda de trabalhadores
com estudos superiores nas diversas áreas do conhecimento, deixando para trás
aqueles com menores graus de estudo e que estavam melhor adaptados às rotinas
fabris, agora em
decadência. Assim , tal como constatam Case e Deaton, “os
menos instruídos foram desvalorizados e mesmo desrespeitados, pois passaram a
ser encorajados a se verem como perdedores, como seres manipulados por um
sistema que ficara contra eles”.
Os
autores não investigaram apenas as estatísticas de mortalidade e, em
particular, as de suicídios, mas também as que refletiam as ocorrências de
doenças auto-infringidas, vícios com drogas psicotrópicas e desestruturação
familiar. O número de crianças “sem” pais – só com mães – elevara-se
enormemente na população, em particular, na coorte de pele branca, quando já
era bem grande na população negra e hispânica. O uso de drogas contra a
depressão, contra as dores do corpo e da alma crescera também de modo
assustador nas últimas décadas.
A
situação encontrada mostrou-se grave nesses múltiplos aspectos. Entretanto, uma
imagem dramática sintética do que ocorreu e vem ocorrendo nos Estados Unidos
encontra-se no gráfico antes apresentado que agora precisa ser interpretado. Aí
se mostra a taxa de mortalidade por 100 mil habitantes, entre os anos de 1990 e
2019, da população branca norte-americana não hispânica (cerca de 60% da
população norte-americana). Ora, o evolver dessa taxa apresenta um
comportamento claramente anômalo: ela sobe ou se mantém quando deveria cair
conforme a tendência histórica e conforme o que ocorrera nos outros países
desenvolvidos.
A
comparação com o que vem ocorrendo na França, na Grã-Bretanha e na Suécia,
presente nessa figura, mostra um resultado surpreendente: enquanto nesses três
países a taxa mortalidade nas idades entre 45 e 54 continuou a cair, tal como
vem o ocorrendo desde o começo do século XIX, ela cresceu um pouco nos Estados
Unidos a partir de meados da década dos anos 1990 e, grosso modo,
estabilizou-se desde então num nível bem acima dos outros três países. Ora, mas
essa percepção imediata não diz tudo o que é preciso para compreender o que
aconteceu e está acontecendo nesse país, um campeão na imposição da lógica da
concorrência para toda a sociedade.
A
taxa de mortalidade da fração com educação superior caiu continuamente, quase
do mesmo modo que naqueles três países citados. Portanto, o dado gráfico
relativo aos EUA mostra, de modo implícito, que essa taxa aumentou
extraordinariamente na fração que não possui curso superior (cerca de 38% da
população norte-americana). Assim, uma parte significativa da população
trabalhadora, dependente da “máquina de progresso” da potência imperialista
hegemônica, regrediu econômica e socialmente. E essa degradação se somou à
tradicional degradação das condições de vida de grande parte da população
negra, que é mais pobre, tem menos empregos e recebe menos benefícios sociais.
Em consequência, a visão idílica mantida por muitos ainda sobre as condições de
vida nos Estados Unidos precisa começar a se desfazer.
Por
que a taxa de mortalidade teve aí uma evolução pior do que nos outros países
desenvolvidos? Há várias razões. A principal delas, sem dúvida, tem por nome
genérico “neoliberalismo”: “na América, mais do que em outros lugares” – dizem
–, “o poder político e de mercado moveu-se do trabalho para o capital” nesse
período. A globalização enfraqueceu os sindicatos e fortaleceu os empregadores em geral. As novas formas
de subsunção do trabalho ao capital propiciadas pelas tecnologias da
informática minaram o poder de barganha dos trabalhadores. Em consequência, a
produtividade do trabalho continuou crescendo, mas os salários reais médios
estagnaram. Já os salários médios dos trabalhadores com menores níveis de
estudo formal tenderam a cair nesse mesmo período. Eis que a potência
hegemônica tinha que continuar sendo hegemônica, inclusive por meio de um gasto
militar extremamente alto e por meio do sacrifício de sua população
trabalhadora.
Case
e Deaton põem grande parte da responsabilidade por essa piora no índice de
mortalidade aludido no sistema de saúde aí existente. E essa constatação é
interessante porque mostra a ineficiência e a ineficácia do setor privado
quando se trata de produzir um bem público importante ao bem-estar das pessoas
e das famílias. Se ele fracassa, quem fracassa junto são aqueles que dele
dependem.
Como
se sabe, os serviços de proteção à Saúde são fortemente mercantilizados nos
Estados Unidos. Mesmo estando entre os mais caros do mundo, são produzidos de
modo insuficiente – porque mal orientados, mal distribuídos e mal
administrados, apesar dos níveis de excelência técnica e tecnológica.
Contribuíram, por exemplo, para uma epidemia no uso de opioides. Há cerca de 30
milhões de norte-americanos que não têm qualquer seguro de saúde, num país em
que esse bem é fornecido quase que inteiramente de modo privado. “Sob proteção
política” – afirmam esses dois autores –, “o sistema norte-americano de
cuidados da saúde redistribui renda para cima, isto é, para os hospitais, os
médicos, os produtores de equipamentos, as companhias farmacêuticas, ao mesmo
tempo em que entrega à população os piores resultados em comparação com o que
acontece entre os países ricos”.
Os
autores têm várias sugestões para redirecionar o capitalismo nos Estados
Unidos. E é com base nessas propostas – mesmo diante do triste quadro que foram
capazes de apresentar – que afirmam e reafirmam o seu otimismo mágico. Partem
da ideia de que o sistema econômico está produzindo uma repartição da renda
muito desigual e, assim, gerando injustiças sobre injustiças. Propõem que se
regule melhor o setor produtor de medicamentos para estancar a crise no uso de
opioides. Sugerem que se deve fazer uma reforma radical do sistema de saúde
para refrear o seu grau de mercantilização. Aconselham que se legisle no
sentido de aumentar a progressividade da tributação, para criar um sistema de
benéficos sociais mais amplos. Recomendam que as oportunidades de ter curso superior
precisam ser elevadas etc. Nada de muito original, frente às políticas
socialdemocratas que foram abandonadas no passado.
Para
os autores, em resumo, deveria existir mais “futuro e não fracasso” para os
trabalhadores norte-americanos. Ocorre que os economistas do “mainstream” – e
mesmo aqueles que ganharam prêmios Nobel, como Angus Deaton – sofrem de um
limite. Por se esmerarem na competência para analisar a realidade fenomênica,
para construírem modelos abstratos cada vez mais sofisticados matematicamente,
tornam-se incapazes de tomar ciência das condições estruturais do capitalismo
realmente existente. É mérito desses dois autores terem sido capazes de tirar
conclusões importantes meramente a partir de estatísticas descritivas – e não
por meio de tortura (e picaretagem) econométrica.
A
verdade é que o sistema econômico desse país está estagnado desde 1997, quando
acaba o período da recuperação neoliberal iniciado no começo dos anos 1980. A taxa de lucro média
tem caído desde então; com ela, os investimentos em inovações, assim como na
ampliação e modernização da capacidade de produção. Ora, o neoliberalismo e,
com ele, a desindustrialização e a globalização nunca foram mais do que
respostas do capitalismo norte-americano na tentativa de enfrentar tendência à
queda da taxa de lucro que tem se manifestado na economia dos países
desenvolvidos a partir do final dos anos 1960. Eis que ele não pode reduzir
agora o grau de exploração da força de trabalho e, por isso, vai continuar a
produzir mais “fracasso e não futuro” para os trabalhadores norte-americanos –
a não ser que reajam contrariando a dominação do capital de que falam até mesmo
Case e Deaton.
Notas:
1 Case,
Anne; Deaton, Angus – Deaths of despair and the future of capitalism.
Princeton University Press, 2020.
2 Fromm,
Erich – Medo à liberdade. Editora Zahar, 1983.
Gostou
do texto? Contribua para manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
*Eleutério S. Prado -- Professor
titular e sênior do departamento de economia da FEA/USP. Mantém o blog Economia
e Complexidade (http://eleuterioprado.wordpress.com). Correio
eletrônico: eleuter@usp.br
Sem comentários:
Enviar um comentário