domingo, 19 de setembro de 2021

México: ultradireita inicia cruzada contra López Obrador

# Publicado em português do Brasil

Reunião entre ultraconservadores mexicanos e do Vox espanhol aponta para uma articulação internacional contra o governo do país. Sob o espantalho de “conter comunismo”, investem para arregimentar empresariado, judiciário e mídia

Francesco Manetto, no El País Brasil | em Outras Palavras

Uma reunião, uma foto, e abriu-se a caixa de Pandora. O líder do partido ultradireitista espanhol Vox, Santiago Abascal, aterrissou há 10 dias na Cidade do México, onde se reuniu com senadores do conservador Partido Ação Nacional (PAN) e inclusive com dois políticos do centrista Partido Revolucionário Institucional (PRI). O encontro desatou um vendaval nas duas agremiações, que fazem oposição ao Governo centro-esquerdista de Andrés Manuel López Obrador. O PAN afastou o operador político que organizou o ato, e o PRI se desvinculou completamente de qualquer acordo com o Vox. Abascal chegou procurando adesões à chamada Carta de Madri, uma espécie de manifesto “em defesa da liberdade na esfera ibérica”. Ou seja, o germe de uma guerra cultural, uma cruzada que ele pretende travar na região agitando o espantalho de uma suposta ameaça comunista.

O PAN é uma organização conservadora que abriga algumas vozes e setores radicais, mas em seu conjunto os especialistas não o consideram comparável ao Vox, fundado em 2013 justamente como cisão de uma força neoliberal com ideário mais amplo, o Partido Popular, com o qual depois, entretanto, viria a pactuar. A pergunta é se há no México de López Obrador espaço eleitoral para a extrema direita e para um discurso autoritário que vá além de manifestações pontuais. E quem pode encarnar essa retórica, que quase sempre anda de mãos dadas com o fanatismo religioso e o ultracatolicismo. Francisco Abundis, diretor da consultoria de análise de opinião Parametría, vê o país resistente a essa tendência. “Política e religião não costumam se misturar. De saída, o mexicano não gosta de juntar as duas coisas”, afirma. Além disso, os dados indicam que, mesmo no caso de cidadãos crentes e praticantes, o percentual de eleitores disposto a seguir as instruções de um sacerdote é reduzido. Essa predisposição é menor, ao menos entre os católicos, aponta Abundis.

Uma frente para frear AMLO

Isso não significa que a extrema direita não exista na sociedade mexicana. “Claro que existe, e não é apenas uma expressão de viés político, mas está exposta nos aspecto político, econômico e social. Também há um quarto item que é o intelectual”, argumenta Luis Ángel Hurtado, consultor e acadêmico na faculdade de Ciências Políticas da Universidade Nacional Autônoma do México. “O movimento mais visível na atualidade, embora não seja o único, é o FRENA”. Essa é a sigla (que também significa “freia”, em espanhol) adotada pela Frente Nacional Anti-AMLO, que ganhou protagonismo há um ano ao improvisar um acampamento no Zócalo, a principal praça da Cidade do México, para protestar contra o Governo.

Os líderes do FRENA se definem como um “movimento popular e pacífico que deseja agir já para tirar” López Obrador do cargo. Para isso, dizem contar com “ferramentas jurídicas, de pressão social e da mídia”, e seu líder, Gilberto Lozano, empresário e ex-presidente do clube Rayados, do Monterrey, está envolvido numa campanha pela revogação do mandato do presidente. Adotando o mesmo discurso do Vox, afirma estar em andamento um plano patrocinado pelo Foro de São Paulo para implantar o comunismo no México, passando pelo controle da população e a redistribuição das riquezas.

Hurtado recorda que essa organização também se enquadra na tradição da ultradireita mexicana, de vínculo religioso em geral e especificamente católico. Ao mesmo tempo, se diferencia por ser um movimento público, ao contrário de sociedades reservadas como Los Tecos (inicialmente vinculados aos jesuítas, até que a ordem se desvinculou devido a um ataque armado), Los Conejos (que tiveram ligação com os salesianos) e El Yunque. “Eram agrupamentos juramentados, e no juramento prometiam guardar segredo. Este elemento na FRENA não é característico. Seu objetivo é que López Obrador renuncie, e se diferencia de outros agrupamentos de ultradireita como a FUA [Frente Universitária Anticomunista] e El Muro, que se expressavam de forma violenta e mais radical. No caso da FRENA não é assim”, prossegue.

Yunque, sinarquistas e conspirações

Há um mesmo fio que une o passado e o presente na história da ultradireita mexicana. Começou há quase um século, na época do presidente esquerdista Lázaro Cárdenas, e depois com Adolfo López Mateos. “É muito interessante ver como sempre aparece a ameaça do comunismo, e tem gente que acredita, embora não seja verdade”, comenta Fernando González, acadêmico da UNAM que há décadas estuda este fenômeno e as consequências do que chama de “catolicismo conspirativo”.

No mapa da extrema direita são importantes duas universidades e duas cidades, Guadalajara e Puebla. Sob o mandato de Cárdenas, funda-se em Jalisco, capital de Guadalajara, a Universidade do Ocidente, que depois passará a se chamar Universidade Autônoma de Guadalajara, o primeiro centro privado do país. Esse, afirma González, foi “um ninho de tecos”, e daí também saem alguns dos fundadores do PAN nesse Estado. Quase 20 anos depois, prossegue, entre 1953 e 1955, funda-se El Yunque (“a bigorna”) em Puebla, pelas mãos de Manuel Díaz Cid, histórico ideólogo da ultradireita, e Ramón Plata Moreno, assassinado em 1979 ao sair da Missa de Natal. Em 1965, recorda o pesquisador para entender o alcance das delirantes aspirações deste movimento, a cúpula da organização realizou uma reunião em que “alegam que o papa Paulo VI é um judeu askenazita e vão declarar a sé vacante”. González observa que “a partir dos anos sessenta, El Yunque já estava na entidade patronal Coparmex, e entre 1977 e 78 decidem se infiltrar no PAN”.

Mas antes de El Yunque, surgiu no Estado de Guanajuato, outra organização nacionalista com posições de extrema direita, a União Nacional Sinarquista (“sinarquia” é o governo de uma elite capacitada). Vinculado a ela havia um sobrenome que —por puro acaso— coincide com o do líder do Vox. Adalberto Abascal, pai de Salvador Abascal, um dos fundadores do sinarquismo, quem por sua vez foi pai de Carlos Abascal, hoje falecido, secretário (ministro) de Trabalho e Governo de Vicente Fox (PAN). Fernando González o situa como dirigente do El Yuque em certo momento.

A estratégia do Vox

As conexões pessoais ou inclusive setoriais não fazem do PAN um partido organicamente de extrema direita. Hurtado considera que se trata de uma “questão midiática, porque o PAN não é de ultradireita, mas há membros que estão jogando para as eleições de 2024 e querem fazer barulho”. “Nos últimos anos temos visto um PAN muito diferente dos partidos de ultradireita que existiram no México, que eram uma ala do movimento sinarquista”. É uma formação ampla, e inclusive López Obrador, nos antípodas ideológicos do PAN, convidou neste domingo o governador de Nayarit, desse partido, a participar da administração federal quando seu mandato acabar.

O EL PAÍS conversou na semana passada com a jornalista e ensaísta norte-americana Anne Applebaum, especialista em organizações ultradireitistas e no declínio das democracias liberais, sobre a estratégia do Vox, que além disso registrou sua marca no México. Para ela, trata-se de um plano de internacionalização. “Estão muito interessados em manter alianças internacionais que ajudem partidos desse tipo a nascerem em outros lugares”, afirma. E isso é especialmente válido numa região que trilhou nos últimos anos o caminho de projetos autodenominados esquerdistas. Mas resta ver, como salienta Francisco Abundis, se alguma figura política terá capacidade de assumir o papel de Santiago Abascal no México com aspirações eleitorais realistas, indo além de uma possível projeção da direita em Estados como Guanajuato, Querétaro ou mesmo Jalisco.

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Duas figuras que ganharam importância dentro da extrema direita que idolatra o presidente Jair Bolsonaro no Brasil passaram pelo México nas últimas semanas. O blogueiro Oswaldo Eustáquio e o líder dos caminhoneiros Zé Trovão chegaram a gravar vídeos juntos na capital mexicana. O segundo foi peça central da paralisação feita por motoristas de caminhão na última semana, que desmobilizou após pedido do Governo e prisão do próprio representante. Ambos tiveram pedidos de prisão preventiva expedidos pelo ministro do STF Alexandre de Moraes no âmbito do inquérito das fake news.

Imagem: Acampamento da Frente Nacional Anti-Andrés Manuel López Obrador (FRENA) num importante cruzamento da Cidade do México, em setembro 2020.Nayeli Cruz

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