domingo, 28 de novembro de 2021

LOUCURA ORÇAMENTAL

A situação aqui descrita aplica-se também a outros países

Prabhat Patnaik [*]

O governo Modi (Índia) tem aumentado os impostos sobre os produtos petrolíferos como o seu principal instrumento de mobilização de recursos para gastos governamentais. Ironicamente, isto tem o duplo efeito de não estimular a economia, mas sim de estimular a inflação. Uma política orçamental alternativa de levantamento de recursos através de impostos directos sobre os ricos (dos quais a tributação da riqueza é a melhor opção possível) e a utilização dessas receitas para aumentar a despesa governamental teria simultaneamente estimulado a economia e mantido baixa a taxa de inflação.

Para ver porque é que isto acontece, considere-se o seguinte exemplo simples. Suponha-se que o governo queira gastar mais 100 rupias (Rs) e obtenha este montante através do aumento dos impostos sobre os produtos petrolíferos. Isto eleva os preços da gasolina e do gasóleo e tem um efeito de pressionar custos em todos os sectores, elevando os custos dos transportes. Além disso, também aumenta o preço do gás de cozinha, o que tem um efeito directo sobre o custo de vida. Por esta razão, o impacto de um aumento dos preços dos produtos petrolíferos cai muito mais fortemente sobre os trabalhadores do que sobre os ricos. Mas os trabalhadores consomem a maior parte dos seus rendimentos de qualquer forma. Assim, se os seus rendimentos reais descerem, verifica-se então uma queda correspondente no seu consumo real. Portanto, as Rs 100 arrecadadas através de impostos sobre produtos petrolíferos reduzem a procura de consumo em cerca de Rs 100, mesmo quando o gasto deste montante pelo governo aumenta a procura agregada em Rs 100. O aumento líquido da procura agregada é portanto muito pequeno, razão pela qual toda esta política orçamental não consegue estimular a economia.

Contudo, verifica-se ao mesmo tempo um aumento de preços devido a esta política orçamental e assim o consumo dos trabalhadores diminui. Temos portanto os efeitos duplamente deletérios mencionados anteriormente: dificilmanete há qualquer estímulo da economia mesmo quando a taxa de inflação aumenta. Isto é exactamente o que tem acontecido na economia indiana. A taxa de inflação tem aumentado (atingiu 4,48 por cento em Outubro/2021 em comparação com Outubro/2020), mas a estagnação industrial persiste, juntamente com enormes stocks de cereais alimentares com a Food Corporation of India. O Índice de Produção Industrial era apenas 3,1% mais elevado em Setembro de 2021 em comparação com um ano anterior; era 2,6% mais baixo em comparação com o mês anterior, ou seja, Agosto de 2021.

A política orçamental seguida pelo governo Modi esmaga portanto o rendimento real per capita dos trabalhadores através da inflação e, ao mesmo tempo, não aumenta o emprego. É precisamente a espécie de política que um governo não deveria seguir numa situação em que há tanta "folga" (“slack”) na economia sob a forma de capacidade industrial não utilizada e stocks de cereais alimentares. Numa tal situação, que corresponde àquilo a que os economistas chamam um "jogo de soma não nula" (ou seja, uma situação em que o benefício de um não tem de ser à custa de outro), os trabalhadores podem ser melhor remunerados através da criação de maior emprego, sem sequer prejudicar os lucros e a riqueza dos capitalistas, enquanto o governo das classes dominantes ainda consegue gastar mais em infraestruturas. Mas em vez de utilizar a "folga" que existe na economia para gastar mais em infraestruturas, o governo Modi está a esmagar os trabalhadores para gastar mais em infraestruturas (mesmo esta despesa está agora a ser cortada), enquanto deixa intacta a "folga" na economia.

Agora considere-se uma política alternativa. Suponha que o governo reduz os impostos sobre os produtos petrolíferos e faz o mesmo montante de despesa que estava a fazer no caso acima referido, aumentando o défice orçamental. Então haverá claramente uma expansão da procura agregada, uma vez que o aumento da procura causado pelo aumento da despesa governamental (em Rs 100 no nosso exemplo) não será compensado por qualquer diminuição alhures, uma vez que neste caso não há tributação de ninguém para mobilizar de recursos. Isto elevará o nível de actividade e de emprego na economia, ao mesmo tempo que fará baixar a inflação. De ambos os pontos de vista, do controlo da inflação e da criação de emprego, isto seria uma opção melhor: os trabalhadores beneficiarão tanto de uma inflação mais baixa como de um emprego mais elevado.

No entanto, o problema de um aumento das despesas governamentais financiado por défices orçamentais está noutro lado: ele provoca um aumento gratuito da desigualdade de riqueza. Um défice orçamental implica um empréstimo do sector privado interno (deixamos de lado, por simplicidade, todos os empréstimos do estrangeiro), o que significa basicamente dos ricos internos, nomeadamente capitalistas e seus acólitos. Mas o Rs 100 (neste caso) que o governo estaria a pedir emprestado a estes ricos internos é colocado nas suas mãos pelos próprios gastos do governo através do aumento do nível da actividade económica. Eles não poupam este montante, reduzindo o seu consumo em relação ao que era no cenário base, antes de toda esta operação de aumentar as despesas governamentais em Rs 100 ter começado. Estes Rs 100 de poupança nas suas mãos são gerados pela própria operação e estas poupanças chegam às suas mãos mesmo quando aumentam o seu consumo em comparação com o cenário de base. As despesas governamentais financiadas por um défice orçamental dão, portanto, uma bonança aos ricos internos: eles podem aumentar tanto o seu consumo como a sua riqueza (uma vez que a poupança representa um acréscimo à riqueza) sem fazer qualquer sacrifício. É simplesmente uma prenda que lhes é dada e que não é à custa dos trabalhadores, mas que surge devido à existência da "folga" na economia.

É aqui que entram os impostos directos. Se houver um aumento dos impostos directos sobre os ricos internos em Rs 100, então o orçamento governamental permanece equilibrado, com Rs 100 das suas despesas adicionais a ser igualado por Rs 100 de receitas adicionais. Não se trata portanto de pedir emprestado nada aos ricos internos, não se trata de as suas poupanças aumentarem em Rs 100 e (uma vez que as suas poupanças são uma determinada proporção do seu rendimento) também não se trata de qualquer aumento do seu rendimento e, consequentemente, do seu consumo.

Dos vários impostos directos, o melhor de longe é a tributação da riqueza, pois ataca directamente o aumento da riqueza privada que de outra forma teria chegado às mãos dos ricos internos na sequência de um aumento das despesas governamentais. Um aumento das receitas dos impostos directos a expensas dos ricos aumenta o emprego, mantém a inflação baixa e não aumenta gratuitamente a riqueza privada; um aumento das receitas dos impostos sobre a riqueza tem a vantagem adicional de atingir o alvo directamente. Não é como se a riqueza existente dos ricos nacionais fosse diminuída de qualquer forma; um aumento da despesa pública financiado pelos impostos sobre a riqueza apenas impede qualquer acréscimo adicional gratuito da sua riqueza. Este modo de financiamento da despesa governamental é, portanto, superior tanto ao que o governo Modi está a fazer (que é aumentar os impostos indirectos, sob a forma de impostos sobre os produtos petrolíferos), como a um aumento do défice orçamental.

Mas então porque é que o governo não recorre a esta medida e, em vez disso, prossegue um caminho de loucura orçamental que ataca os trabalhadores, quer mantendo o desemprego, quer aumentando a inflação que diminui os seus rendimentos reais per capita? A resposta está nas exigências do capital financeiro globalizado e nas prescrições de instituições como o FMI, que actuam como condutas para estas exigências. O capital financeiro globalizado opõe-se à tributação da riqueza, pois esta atinge a oligarquia empresarial interna com ela alinhada; e o governo Modi apoia de todo o coração tal suavidade para com a oligarquia. A finança globalizada opõe-se também a um aumento do défice orçamental, razão pela qual temos uma legislação como a Lei FRBM [NT] que estabelece um limite ao défice orçamental como uma percentagem do Produto Interno Bruto. O que resta, portanto, é a tributação indirecta e a forma fácil descoberta pelo governo Modi de aumentar as receitas fiscais indirectas é pela tributação dos produtos petrolíferos. A loucura orçamental do governo Modi está, portanto, completamente em sintonia com as exigências do capital financeiro globalizado.

Mas, com o aumento dos preços do petróleo no mercado internacional, a prossecução de uma tal política orçamental só irá aumentar ainda mais a taxa de inflação interna. E se o governo quiser controlar a inflação, então não aumentará os preços internos dos produtos petrolíferos em linha com os preços mundiais mas, em vez disso, reduzirá um pouco os impostos sobre esses produtos (como fez recentemente) – mas depois equilibrará esses cortes com uma redução das despesas governamentais a fim de manter o défice orçamental dentro dos limites, de modo a que o capital financeiro globalizado permaneça satisfeito. Assim, ironicamente, o governo tentará controlar a inflação através do agravamento do desemprego, mesmo numa situação de considerável "folga" na economia.

21/Novembro/2021

[NT] FRBM Act: Lei de responsabilidade fiscal e gestão do orçamento (Fiscal Responsibility and Budget Management) aprovada em 2003 pelo governo indiano.

[*] Economista, indiano, ver Wikipedia

O original encontra-se em https://peoplesdemocracy.in/2021/1121_pd/fiscal-folly. Tradução de JF.

Este artigo encontra-se em resistir.info

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