terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Brasil | A MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO

Emir Sader | Carta Maior

Toda luta política, toda luta cultural, até mesmo toda campanha eleitoral, é uma luta da memória contra o esquecimento. O que aconteceu no país? Como aconteceu? Por que aconteceu? O que ocorreu que nos fez chegar ao que vivemos hoje?

O editorial do Estadão, ''O mal que Lula faz à democracia'', é um modelo desse tipo de visão da direita. Parte do eleitorado estaria se esquecendo de quem é Lula, o que justificaria seu favoritismo nas pesquisas para voltar a ser presidente do Brasil. O jornalão se propõe a recordar para os brasileiros como foi a passagem do PT pelo poder.

O partido colecionou casos de corrupção, aparelhamento do Estado, apropriação do poder público para fins privados e políticas econômicas desastradas. Lula não teria nenhuma credencial para se apresentar como o salvador da democracia. Antes de chegar ao governo, o partido teria se caracterizado por uma oposição tipo quanto pior melhor. Opôs-se ao Plano Real, à modernização do sistema de telefonia, à criação de agências reguladoras e até propostas para melhorar a educação pública, agindo para desgastar os governos de Itamar Franco e de FHC.

No governo, o PT teria continuado sua trajetoria antidemocrática. O “mensalão” seria um caso paradigmático de “perversão do regime democrático, com uso do dinheiro público para manipular a representação política”. O “petróleo” teria colocado toda a estrutura do Estado, incluindo estatais e empresas de capital misto, a serviço dos interesses eleitorais do partido.

Na relação com a oposição, Lula teria tido um discurso de deslegitimação de toda e qualquer oposição ao governo, com um “nós” e “eles”, os virtuosos contra os outros. Depois do governo, Lula teria continuado a desmoralizar o Estado Democrático de Direito, difamando o Judiciário por uma conspiração para prejudicá-lo. Ao se apresentar como perseguido político, Lula demonstraria que não acredita nas instituições democráticas do país. Lula nunca teria tratado bem a democracia brasileira.

A versão da direita precisa do esquecimento, precisa reescrever a história, para tratar de impor sua narrativa. Já nem vou retomar a Vaja Jato, que inviabiliza grande parte dos argumentos do Estadão, que precisa dar por estabelecidos os casos de corrupção atribuídos ao PT.

Outro dos pilares da visão do Estadão são as políticas econômicas consideradas “desastradas”. O momento de maior crescimento da economia brasileira em muito tempo, combinada com geração de dezenas de milhões de empregos, com elevação do salário mínimo 70% acima da inflação, é considerado desastrado. Desastrado para quem? Para quem se opõe ao combate às desigualdades, às políticas de distribuição de renda, de ampliação do mercado interno de consumo de massas.

Quanto à relação do Lula com a democracia brasileira, ele foi candidato três vezes à presidência do Brasil. Derrotado, reconheceu os resultados, nunca questionou sua legitimidade. Ganhou democraticamente as eleições, elegeu sua sucessora, que se reelegeu, sempre democraticamente. Conviveu de forma republicana com o Judiciário, o Congresso, os meios de comunicação, os partidos de oposição. Governou com um amplo bloco de forcas de esquerda e de centro.

Cada bloco de forças faz sua reconstrução do passado e projeta o futuro a partir dela. No Brasil de hoje, a esquerda luta para recordar o que foram os governos do PT, e a direita luta para atualizar o que acredita que foram os governos do PT.

Lembrar é reconstituir historicamente o que foi um período determinado, como ele foi construído, que relações de força o tornaram possível. E como, a partir dali, chegamos ao que viemos hoje.

Para a direita, a crise atual do país teria sido resultado dos governos do PT. A imagem alta do Lula seria resultado do esquecimento dos danos que o PT teria produzido no país. Teria gerado o desequilíbrio das contas públicas com os enormes gastos dos seus governos, teria degradado as estatais com a corrupção, teria atentado contra a democracia. Seu retorno significaria a volta de todos esses problemas, a começar pelos gastos do Estado, pelo retorno da inflação e pela corrupção.

Para que esta visão se imponha, é preciso apagar da memória das pessoas o que realmente foram os governos do PT. Apagar que a economia cresceu, sem gerar inflação. Que as políticas sociais foram expandidas, sem desequilíbrio das contas públicas. Que as desigualdades sociais e regionais diminuíram substancialmente no Brasil. Que esses governos foram eleitos e reeleitos sucessivamente de forma democrática. Que respeitaram a democracia. Que foram derrotados em três eleições presidenciais e nunca questionaram os resultados.

Que o Brasil e o povo brasileiro viveram muito melhor nos governos do PT. Que a crise atual é resultado da ruptura da democracia, da interrupção do segundo mandato da Dilma. Que a partir dali a economia voltou a entrar em recessão, que a inflação voltou, que a contas públicas passaram de novo a estar desequilibradas, que as desigualdades retornaram.

Há duas grandes interpretações sobre o Brasil hoje, as duas supõem memória e esquecimento. A luta política, ideológica, cultural, gira e torno da memória e do esquecimento. Por enquanto está ganhando a memória.

Imagem: PT/Reprodução

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