domingo, 6 de fevereiro de 2022

Moçambique | O massacre português de Wiriamu – escrever para não esquecer

ENTREVISTA

Foi um dos maiores massacres coloniais. Há 49 anos, tropas portuguesas assassinaram a sangue frio mais de 300 pessoas em Moçambique. O historiador Mustafah Dhada resgatou esta história que por pouco ficava ocultada para sempre, e já a contou em dois livros.

Paula Cardoso | Setenta e Quatro

A 16 de dezembro de 1972, sob gritos de “Matem-nos a todos”, militares portugueses avançaram a tiro sobre homens, mulheres e crianças que encontraram nas cinco aldeias do triângulo de Wiriamu, situado no norte de Moçambique. O violento massacre executado pelo regime colonial luso matou 385 pessoas, mas, quase 50 anos depois, Portugal continua sem reconhecer a barbárie. Aliás, não fosse a publicação de um artigo, em 1973, no The London Times, e provavelmente nem sequer saberíamos do sangrento episódio.

É sobre ele que se tem debruçado o trabalho do historiador, professor e investigador Mustafah Dhada. Na obra O Massacre Português de Wiriamu: Moçambique 1972, publicada pela Tinta da China, este moçambicano radicado nos EUA demonstrou não apenas que o morticínio aconteceu como evidenciou que Portugal exercia violência sistémica – e não pontual – nos territórios colonizados.

A investigação, retomada no livro The Wiriyamu Massacre: An Oral History, 1960-1974 – ainda sem edição portuguesa –, encaminha-se para as páginas finais, com a preparação de uma terceira obra. O novo trabalho, antecipa o historiador, está centrado nos ‘fantasmas’ que encontrou no terreno, e que quase lhe custaram a vida. “Tive um ataque cardíaco”, revela em entrevista ao Setenta e Quatro.

O também professor universitário e investigador lamenta que o massacre de Wiriamu continue por reconhecer em Portugal, e pergunta: o que falta para que o país “aceite a verdade das suas mãos ensanguentadas” nos territórios ocupados em África?

Mais do que levantar questões, Mustafah Dhada sugere respostas, defende que “o debate do racismo deve ser contextualizado com o debate do género e da demografia”, e lembra como os negros e mouros transformaram a vida quotidiana em Portugal.

Cinco anos depois da publicação do seu livro sobre o massacre de Wiriamu – que continua por ser reconhecido – sente que colocou Wiriamu no mapa? De que forma? 

Como historiador, seria arrogante da minha parte afirmar que coloquei Wiriamu no mapa. Tudo o que fiz foi somente reconstruir a anatomia do campo de extermínio de Portugal em Tete, encontrar um lugar tranquilo para Wiriamu viver na história colonial de Portugal antes da sua saída da África, sugerir gentilmente aos estudiosos da área que, ao contrário do que afirmam, Wiriamu aconteceu e dar a Wiriamu um contexto indicativo na história da violência colonial europeia em massa na África. Deixo aos colegas historiadores e intelectuais públicos em Portugal a tarefa de avaliarem o meu trabalho, o seu valor e o seu lugar na história colonial portuguesa.

No exterior, o meu trabalho é razoavelmente bem reconhecido por historiadores e outros que consideram o livro um estudo marcante, utilizando várias disciplinas no âmbito da historiografia forense. Uma coisa é certa: embora a obra tenha atraído a atenção da crítica em Portugal, não conseguiu ‘mexer a agulha’ em Portugal para que este aceite a verdade das suas mãos ensanguentadas na África colonial.

Como explicar esta negação portuguesa em relação ao seu passado colonial?

Esta é uma questão complexa que merece uma análise sofisticada. Com a ascensão de Salazar ao poder, Portugal exilou-se das páginas da sua história e entrou num reinado de amnésia, com o terror como arma para forçar o apagamento do passado. Portugal entrou num mundo cheio de clones ‘mini-Salazar’ treinados como aplicadores dessa amnésia, e instruídos a usar todos os meios necessários para apagar a história autêntica, baseada numa cultura de evidências, substituindo-a por fabricações sacarinas no Estado Novo. 

Durante o meio século seguinte, o regime português engajou-se no saneamento epistémico de registos, delitos, e substituiu as granularidades da vida quotidiana e dissensões por ‘Salazar speak’. Com isso, os nossos arquivos nacionais pouco nos falam sobre a alma dolorida do povo português na metrópole, e dos subalternos no império. Sim, temos o tesouro dos arquivos da PIDE; mas eles contam-nos uma história altamente partidária e fragmentada. Com isso, hoje é quase impossível que verdades transparentes levantem uma narrativa autêntica, permitindo à negação uma plataforma natural para continuar a envenenar o poço do passado imperial português.

Mas também existem outras razões! Estaríamos aqui dias para falar nisso. Vemos, por exemplo, que depois da Revolução de abril de 1974, Portugal não enraizou o passado curricularmente no ensino primário, secundário e universitário. Esta é uma parte. A outra é que, ao fazê-lo, deixou espaço epistémico para os pós-salazaristas reinventarem essa amnésia. Isto significa que hoje Portugal é um país de historiografia asfixiada, que não só nega o passado das mãos sujas, mas também nega que o país seja africano, em vez de europeu.

De que forma?

Antes dos descobrimentos, Portugal tinha infestação de uma alimentação quase vomitória. O espaço sanitário em Portugal era terrível, pior do que em França e Inglaterra, e dentro deste período houve uma expansão colossal de escravos mouros e africanos em trânsito para o Brasil e outros espaços do Atlântico. Foram eles que transformaram a vida quotidiana em Portugal, dos métodos de levantaria, de saneamento público, das refeições que eram muito mais sofisticadas. Tudo isso é verdadeiramente uma cultura que foi importada de África. 

Mas Portugal hoje não terá a coragem de estabelecer um programa nacional para descobrir e registar o DNA, para ver se há ligações entre os portugueses e os mouros, e as pessoas da África do Norte e do Sul. Isto significa que Portugal tem um desafio, um medo epistémico de que seja revelada a verdadeira genealogia e historiografia do país. Podemos concluir que a historiografia portuguesa é verdadeiramente um esforço intensivo de escapar às suas próprias origens e raízes e, neste sentido, de abraçar uma imagem fantasmática europeia. Mas os mesmos europeus veem e viam Portugal como um país atrasado, porque não havia literacia nenhuma. Até hoje isso persiste porque literacia não é somente uma habilidade de ler e de escrever, mas de aprofundar com esses meios um pensamento crítico que esteja baseado numa cultura de evidência autêntica. Isso não existe em Portugal. 

É uma tristeza que seja eu, um moçambicano que é agora um americano, e recentemente com nacionalidade portuguesa, a ensinar aos portugueses a verdadeira narrativa do império – ainda que um pedaço pequenino.

Esta dificuldade de confrontar o passado está na origem da dificuldade que temos de discutir as questões raciais no país?

Sim, mas há que questionar se o racismo é um problema desligado de outros problemas fundamentais da sociedade portuguesa. Se é desligado, podemos facilitar um debate sobre a raiz racista da historiografia portuguesa, e como é que essa raiz pode ser esclarecida, e combater isso com um programa estatal. Até já dei algumas indicações de como as raízes portuguesas já têm negritude. Mas não sei se é só um problema de racismo. 

Antes do racismo há outro problema não resolvido: de género. Sem isso, não sei se Portugal irá combater os outros problemas. Porque antes do problema do racismo há e houve o afastamento das mulheres do espaço produtivo e o seu não reconhecimento. O que quero dizer é que o problema do racismo vai concatenado com o de género. E quando se fala de racismo em Portugal, a resposta é ‘nós não tínhamos racismo devido ao lusotropicalismo’.  Mas o que estão a fazer é apontar o desejo sexual que havia em relação às mulheres africanas como cultura de evidência de não racismo. Não se reconhece que essa proximidade era verdadeiramente o primeiro espaço de objetificação humana.

De que forma podemos sair deste ponto morto em que nos encontramos?

A primeira coisa é simplesmente: o currículo escolar tem de ser transformado. É uma coisa imperativa. Também se deve perguntar como é que a narrativa portuguesa imperial se pode servir com verdade quando temos o Portugal dos Pequeninos em Coimbra. É uma indignidade, e acho que esta é a segunda coisa que se deve mudar. A terceira é que se Portugal não tem a coragem de aceitar o que se passou, será possível estabelecer uma comissão de transparência e de verdade, sem utilizar meios punitivos, somente para avançar a narrativa autêntica e de verdade? 

Trabalho com os arquivos em Portugal e posso dizer que não há nada de fonte primária na Torre do Tombo sobre Wiriamu. Nada. Há somente um mapa que descobri inadvertidamente porque não o classificaram, não perceberam o que era aquele mapa que estava ali encerrado entre papéis. Como é que podemos usar esses arquivos como uma fonte verdadeira, quando os mesmos e a produção de saber estava já denteada com as mãos fascistas do Salazar e do Caetano?  

Os portugueses hoje estão tão desconfortáveis com as realidades que têm de enfrentar, do ponto de vista de sustentação, de alimentação, do emprego e tudo isso, que somente têm duas coisas para aguentar as mágoas de uma vida existencial tão precária. Uma são os dramas brasileiros na TV e outra é simplesmente essas fantasias e fantasmas dos descobrimentos, de que eram um império grande. O que é interessante é que Portugal como país demográfico não é viável, os brancos portugueses não se estão a reproduzir tão facilmente, e as mulheres já estão numa rebelião autossustentável. Creio que o debate do racismo deve ser contextualizado com o debate do género e da demografia.

Há quem tenha considerado que Wiriamu foi “a mais horrível de todas as atrocidades da História Moderna colonial”, classificando a situação de genocídio.  Concorda? 

Não tenho dados concretos para chamar Wiriamu de genocídio, no sentido de não ter visto provas, de arquivo ou não, que provem categoricamente que a contrainsurgência portuguesa pretendia exterminar um grupo étnico inteiro porque alguns elementos deste grupo étnico supostamente apoiavam a insurgência. Uma ordem para ir ao Wiriamu e "limpar" os insurgentes e seus apoiantes não significa limpamento étnico total na região, embora as ordens tenham transformado os chamados apoiantes em objetos desumanizados, "outrosizados," em outras palavras. No entanto, um caso convincente pode ser apresentado aqui para sugerir que Wiriamu teve aspetos da violência em massa encontrados em casos de genocídio. 

Defende que Wiriamu inverteu o equilíbrio de forças a favor dos movimentos de libertação luso-africanos. De que forma?

Sabemos que a 25 de abril de 1974, as Forças Armadas Portuguesas retiraram [Marcello] Caetano do poder, encerrando as guerras coloniais em África. Até então, Portugal lutou com sucesso contra as demandas por transparência nas suas colónias com um silêncio global inexpugnável sobre as mesmas, implantando sofismas diplomáticos e contrainformação. Obras históricas contemporâneas colocam o Movimento das Forças Armadas no centro deste acontecimento como libertadores que libertam Portugal do encarceramento político. 

O papel das mulheres, aliás, está retumbantemente ausente na maioria dos relatos contemporâneos sobre a revolução! Mas foi assim que Portugal foi libertado? Uma investigação probatória conta-nos uma história diferente. Duas metamorfoses persuadiram o discurso imperial de Portugal a afastar-se da política corporativista de Caetano, em direção à sua própria libertação: a exposição complexa de Portugal às guerras de libertação africanas e a Igreja Católica de Moçambique. 

As guerras de libertação, na Guiné em particular, levaram muitos oficiais a questionar a razão de Portugal estar em África. Integrou este grupo nada menos que o Governador-Geral da Guiné, António Sebastião Ribeiro de Spínola, cujo texto, Portugal e o Futuro, deu voz a quem sentia que a guerra, embora militarmente vencível, estava politicamente perdida.

As revelações da cumplicidade de Portugal na violência colonial em massa pela Igreja Católica de Moçambique agravaram a gravidade deste descontentamento no texto de Spínola. Essas revelações, em particular do massacre de Wiriamu, abalaram a credibilidade do silêncio global cuidadosamente arquitetado por Caetano sobre o abuso dos Direitos Humanos em África. Ambas as metamorfoses eram, por falta de melhores termos, portadoras do conhecimento do Sul global, ensinando Portugal sobre o pós-colonialismo. As suas ideias de liberdade e pluralismo social, e a posição da Igreja sobre o desenvolvimento da capacidade humana e os Direitos Humanos foram catalisadores-chave para os homens armados de Portugal agirem da forma que agiram, libertando Portugal. 

Simplificando, visto de um mundo de cabeça para baixo, foi África que libertou Portugal – e é esta perspetiva de uma história de baixo que merece uma reflexão séria.

Há um par de anos, estava a preparar uma sequela do livro, que tinha o título provisório de Wiriyamu Voices. Como está esse projecto?

Terminei esse projeto em 2019, e foi publicado como monografia em 2020, novamente pela Bloomsbury Academic Press, de Londres, com o título The Wiriyamu Massacre: An Oral History, 1960-1974.  Este livro nasce porque perguntei a alguns dos meus estudantes: o que falta no primeiro livro? [O Massacre Português de Wiriamu]. Todos responderam: o que precisa é de um livro colateral, com transcrições curadas – das mais críticas – que possam suplementar o livro original. O problema é que tinha entrevistado mais de 200 famílias, e cada família tinha cerca de três a seis filhos, irmãos, mulheres e sobreviventes etc. Então o que fiz foi selecionar e curar aproximadamente 24 entrevistas. Fiz uma introdução e produzimos esse livro. Agora vamos ver se há interesse numa edição portuguesa, porque já fiz essa tradução.

Há vozes que ficaram de fora, mas que gostaria de incluir?

Sim, existem vozes que não incluí no livro. Elas foram excluídas porque provaram apoiar muito tangencialmente o primeiro livro. E também existem algumas vozes que não consegui obter, mas que suspeito poder fazer, quando os informantes se mostrarem cooperativos. Mas provavelmente nada que eu possa acrescentar alterará o núcleo dos textos que produzi em Wiriamu.

Disse numa entrevista que acharia fantástico Portugal ter um monumento anticolonial no mesmo espaço do Padrão dos Descobrimentos e de outros monumentos coloniais. Num país que se recusa a confrontar o passado, como promover esse diálogo no espaço público?

Oponho-me terminantemente a quaisquer apagamentos de monumentos como forma de abrir espaço para que os subalternos tenham voz! Nenhum apagamento garante a existência de diálogo. Preferia que fossem erguidos monumentos anticoloniais no mesmo local dos monumentos coloniais, para fomentar o diálogo e criar um discurso no espaço público. 

Deixem-me ser claro no que diz respeito a Wiriamu. Não seria fantástico para Lisboa ter um monumento de oito metros erguido na mesma boca do estuário onde  está o monumento aos descobrimentos, para espoletar um discurso sobre os descobrimentos e o massacre sangrento com que terminaram? Não me importava absolutamente nada de organizar esse monumento financiado pelo Governo português. Já tenho uma escultura pronta, cujo contorno desenha um mapa de África. 

Podíamos ter, por exemplo, uma patina bem vermelha no lugar dos territórios coloniais, para sugerir, de modo subtil, a herança da violência colonial. Isso sim, acabaria por gerar diálogo, e talvez o repúdio feroz por parte de memorialistas que defendam todo um passado glorioso incontestável na base do imperialismo português! Eis as imagens de uma tal peça — a Revolta de Atlas!

Enquanto conduziu a investigação, teve vários problemas de saúde. Chegou a ser aconselhado por médicos a parar o que estava a fazer? Foi algo que ponderou? 

Sim, sofri um grave trauma vicário depois de fazer o meu trabalho de campo, que me levou quase dez anos para superar, e que envolveu uma terapia acompanhada de sessões de dessensibilização e reprocessamento de movimentos oculares de EMDR [Eye Movement Desensitization and Reprocessing, que significa dessensibilização e reprocessamento através do movimento ocular]. E admito aqui que, ao terminar o último parágrafo do primeiro livro sobre Wiriamu, eu tive um ataque cardíaco. 

Aqui está o parágrafo que quase encerrou a minha vida: “O massacre destruiu tudo isto. A biografia da destruição de Wiriamu conta‑nos que 385 indivíduos — cada um com um nome, uma identidade e uma alma digna de estima — perderam a vida, além de muitos outros sobre os quais nada se sabe. Essa parte da narrativa, embora dilacerante, está também eivada de rancor, de atos de bravura ambíguos, de salvação de almas humanas prestes a morrer em fornos de adobe”. Ao reler esta passagem do texto, interrogo‑me sobre como deverá a história profissional tratar os carrascos e os textos que apagam ou obscurecem uma verdade frágil e fragmentada, ainda que irrefutável.

Ou como deverá um império lidar com transparência com os atos que praticou há 40 anos? Deverá Portugal limitar‑se a arquivar tudo e esquecer? Deverá pedir desculpa pelos atos de violência em massa cometidos durante a guerra colonial? Deverá distribuir indemnizações? Como deverá Portugal sarar as suas feridas enquanto autor de um passado colonial violento? Poderá o gesto impetuoso de piedade de um único homem redimir a prática organizada de violência em massa de um império? Deixando de parte julgamentos jurídicos e juízos morais, que rubrica epistémica para o mal deverá ser criada para avaliar períodos de prática sistemática de massacres misturados com gestos de misericórdia, inadvertidos ou intencionais, que marcam o período colonial? 

Estas perguntas perseguem‑me e atormentam muitas das minhas noites, ansiando por respostas — em vão. A única resposta que ouço é o som ensurdecedor de um silêncio que me gela o sangue. De facto, diante de massacres como este, quem precisa de uma consciência? Fui para a emergência de um hospital, onde a Dra. Elizabeth Kaback, cardiologista presente, salvou a minha vida. Ao descobrir o meu trabalho, ela me aconselhou a deixar Wiriamu para trás e investigar “coisas felizes”, coisas que celebram a vida. Wiriamu, entretanto, se recusa a morrer, ironia de todas as ironias! Hoje estou nos estágios finais de saída do estudo da violência colonial em massa. Então, depois talvez retornare aos meus outros dois amores: Escultura e História da Arte. 

E a razão por que falo disso é porque as últimas páginas do meu novo livro são sobre isso. Tem o título provisório The voice digger and the historian’s struggle in Portugal’s killer fields in Africa, não tem tradução fácil para português, e estou a escrevê-lo mais uma vez por causa dos meus estudantes. Disseram-me: ‘Já sabemos o que aconteceu, já conhecemos as fontes primárias bem curadas, agora devemos perceber o posicionamento do historiador neste âmbito de investigação forense do massacre’.

Nesse posicionamento, e considerando o impacto na sua saúde, considera que mergulhar em Wiriamu foi um processo mais de adoecimento ou de cura?

Não sei como posso responder a esta questão. Talvez o meu trabalho sobre a violência em massa num dos muitos campos de morte de Portugal fosse entender o colonialismo como processo de apagamento. Os académicos estudam o colonialismo em dois contextos: o imperialismo europeu ou a história subalterna, ou seja, a história dos súditos e do império. 

Para mim, o colonialismo foi mais do que uma experiência quotidiana nas colónias e no exílio autoeleito. Foi um conjunto de muitos ventos tectónicos que me transformou emocionalmente e que durou quase setenta anos. Durante os primeiros treze anos da minha vida, o colonialismo português encadeou a minha alma com muros de silêncio mudo. Isso apagou a minha identidade, arrancando a minha pele morena que cobria a minha carne existencial e ossos epistémicos. 

E assim o colonialismo preencheu o meu interior silenciado com histórias estranhas, celebrando descobertas que outros conheciam como verdades existenciais já descobertas em chão Mussa-Ambique; línguas, idiomas, e semióticas imperiais que articularam intencionalmente a supremacia da civilização branca e que nos tornaram selvagens; música que separaram da sola dos nossos pés e da nossa poeira banhada pelo sol, chuva, mar, sal, e tornados; poesia reificada que substituiu as doces onomatopeias de alegria enquanto você competia com mosquitos encharcados de sangue para apanhar gotas de chuva de língua estendida; e crucifixos que negavam espaço à fé em deuses concorrentes. 

Todos esses eram artefactos de violência colonial contra nós, inerentemente imersos em nos despojar de quem seria e nunca poderia ser autêntico - e por um bom motivo. Por mais perfeitos que falássemos, escrevêssemos e lêssemos a sua língua e lhes ensinássemos a sua própria história, recitássemos a sua poesia, cantássemos o seu fado com um tom perfeito, aceitássemos o seu Jesus como nosso, nada disso poderia estiolar a nossa pele e alma para nos tornarmos invisíveis. Eles não tinham uso para a nossa pele, mas como objetos de sexualidade tórrida.  

O que eles falharam e não conseguem entender é que aquela pele envolvia e integrava a nossa alma numa existência única que merecia um ser humano, que antes do colonialismo tinha muitas texturas, muitas línguas, muitas emoções, muitos amores sem e com violência, muitas paixões mútuas e assimétricas, muitas capacidades de abraçar os outros e ainda permanecer fiéis a nós mesmos. E esse conjunto de muitas realizações nos dizia uma coisa: ser assimilado como um português de cor não-branca era habitar uma caverna de perdição lusitana entorpecente de pulso. 

A única maneira de superar essa sensação de poder predatória era desfigurar Portugal das suas garras imperiais e, no processo, libertá-lo; e agora parece mais evidente que em face das torturas recentes no Alentejo [por agentes da GNR, em Odemira] devemos continuar a lutar contra o Portugal pós/neo/colonial para mudar as suas narrativas históricas, musicais, culinárias, poéticas e literárias, desta vez com picadores de gelos epistémicos, e garfos imbuídos de pluralismo globalizado.

Ainda há testemunhas que o assombram como se fossem fantasmas?

Há dias e certamente há noites em que posso ouvir um gemido ou uma batida suave. É tudo imaginário, claro. A maldição da empatia na vida humana é ouvir, sentir, cheirar, tocar e ver as alegrias e tragédias de outros seres humanos, vivos ou mortos. Com os vivos, podemos comunicar e compartilhar. Não é tão fácil com os mortos. Aqui, apenas os historiadores orais têm a habilidade de exumar vozes para falar pelos silenciados, apagados e despossuídos por meio de narrativas que falam a verdade ao poder. 

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