sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

PERITO EM ACÇÕES DE GUERRILHA, O BREVE REINADO DE MANDUME

Artur Queiroz*, Luanda

No dia 6 de Fevereiro decorreu mais um aniversário da morte do rei Mandume. Este ano as comemorações incluíram um concurso literário. E como sempre, altos responsáveis governamentais apresentaram o jovem rei como um herói da luta contra a ocupação colonial. Falta acrescentar a palavra “portuguesa”. Porque ele foi um fiel aliado dos alemães que ocupavam o Sudoeste Africano enquanto potência colonial.

Na colónia alemã existia uma vasta região, a Damaralândia, limitada a Norte pela Ovambolândia, a Oeste pelo Deserto do Namibe, a Leste pelo Deserto do Kalahari e a Sul pela região de Windhoek, o chão dos hereros.  Os alemães queriam alargar esta parte do Sudoeste Africano até ao rio Cunene, criar um porto de mar na Baía dos Tigres, Moçâmedes ou Tombwa e construir um caminho-de-ferro regional até ao interior da África do Sul. Mandume foi peça importante desta estratégia. Fez tudo para que os territórios do Sul, Sudoeste e Sudeste de Angola fossem território da colónia alemã, o Sudoeste Africano, hoje Namíbia. 

A 19 de Outubro de 1914 entrou em território da colónia de Angola, no Cuamato, uma coluna integrada com o governador alemão da Dâmara (Damaralândia), Dr. Shultz Jensen, três oficiais e mais 11 soldados. Tropas portuguesas interceptaram os invasores em Naulila. Os oficiais alemães Curt Karden, Losch e Roeder foram mortos e o governador, ferido gravemente, foi preso. Ele revelou quais eram os projectos de Berlim para a região. Os territórios do Cuanhama e Cuamato ficavam integrados na colónia alemã do Sudoeste Africano (Namíbia).

O texto a seguir, resulta de uma pesquisa aturada em documentos da época e relatos de oficiais portugueses que combateram nas chamadas acções de “pacificação do sul de Angola”. O jovem rei Mandume combateu a ocupação colonial portuguesa, aliado aos colonialistas alemães. Lutou até à morte para que o Cuanhama não fizesse parte do mapa de Angola mas sim do Sudoeste Africano (Namíbia).

.Mandume ya Ndemufayo foi o último rei kuanyama e morreu a 6 de Fevereiro de 1917. Chegou ao poder em 1911, o seu reinado durou apenas seis anos. O padre Keiling, que com ele conviveu, relata desta forma a sua morte: “E virando-se para os filhos (seus primos) do falecido soba Weyulu, lhes perguntou se queriam ser muleques de brancos. Como eles dissessem que antes queriam morrer, o soba, levando a espingarda à cara, prostrou-os com dois tiros, e virando em seguida a arma contra si mesmo, fez saltar os miolos”.

À volta da figura de Mandume circulam lendas e estórias mais ou menos fantasiosas. A tradição oral costuma acrescentar sempre “um ponto” a cada conto. Os alemães, com quem Mandume conviveu e de quem foi fiel aliado, pouco relatam sobre esta aliança. Os militares portugueses, sim, têm muitas referências ao rei do Cuanhama. Mas curiosamente não descrevem uma grande batalha travada contra ele.

Quase todos os oficiais que combateram no Sul, Sudoeste e Sudeste de Angola publicaram as suas memórias da guerra. E nenhum, salvo o major Artur de Moraes, que trocou correspondência com Mandume, descreve sequer contactos com o rei.

A pesquisa que fizemos sobre a época através de relatórios militares e livros de memórias permitiu-nos obter importantes subsídios para melhor compreendermos o breve reinado de Mandume.

Em primeiro lugar interessa reter que ele chegou ao poder em 1911, alguns meses depois do triunfo da revolução republicana em Portugal, que pôs fim à monarquia. O distrito da Huíla, que abrangia o território das actuais províncias do Cuando Cubango, Namibe e Cunene, estava em guerra permanente. Depois do triunfo da República, os oficiais portugueses no terreno tentavam resolver a guerra através de negociações de paz com os sobas da vasta região. 

Os oficiais monárquicos sabotavam, de todas as formas, essas iniciativas. Eles apenas tinham um objectivo, a ocupação pela força. Queriam medalhas, condecorações, promoções por distinção, lugares bem pagos no regresso a Lisboa como “heróis”. Os militares do Quadro do Ultramar, tratados depreciativamente por “oficiais mandioca”, queriam a paz a todo o custo, porque já tinham poucos laços com a “metrópole” e em Angola casaram e lhes nasceram os filhos.

A situação dos colonos era dramática. O major Artur de Moraes escreve no seu livro de memórias que os portugueses estavam “dispersos pelo interior de Angola e por falta de recursos e de auxílio do Estado se acham na maior miséria”. As guerras no Sul consumiam largas somas de dinheiro e centenas de vidas humanas. “Angola está desguarnecida e é sobretudo a fronteira do Sul que está mais ameaçada”, diz ainda aquele oficial que viveu os últimos anos da sua vida, já como civil, na cidade do Cuito, onde faleceu.

Estudos dos alemães

Nesta época a fronteira de Angola era praticamente o rio Cunene e o último posto português estava no Humbe, então sede de concelho que foi chefiado, entre outros, pelo capitão Gomes da Costa, que mais tarde foi o líder do golpe fascista em Portugal do 28 de Maio de 1926. Morreu no posto de marechal. 

Outro administrador do Humbe foi o capitão Artur de Moraes, republicano militante e que após o 5 de Outubro de 1910 ganhou algum protagonismo na região. Foi ele que assinou um tratado de paz e amizade com o rei do Cuanhama, Nande, em 22 de Fevereiro de 1909. Na realidade era um “auto de vassalagem”. 

As condições no Cuanhama eram péssimas devido a uma estiagem prolongada à qual se seguiram dois anos seguidos de inundações. Artur de Moraes fretou três carros bóeres puxados por dez juntas de bois, carregou-os de mantimentos, atravessou o Cunene e foi até a cidadela real de Nande a quem entregou os mantimentos. Na sequência deste gesto de boa vontade, o rei assinou o tratado.

Artur de Moraes refere nas suas memórias que ficou provada a abertura de espírito dos cuanhamas e que era possível ocupar todo o território sem sacrifícios de vidas humanas. Ele escreveu que “é inadiável fazer-se a delimitação da fronteira Sul o que servirá de barreira à cobiça de estranhos”. 

Ele sabia do que estava a falar. Umas das testemunhas da assinatura do tratado foi o missionário alemão, Aray Woolfhorst, que imediatamente informou o alto comando germânico no Sudoeste Africano (Namíbia). Os alemães iniciaram de imediato acções que puseram em causa o tratado. Eles tinham um plano ambicioso de ocupação do Sul de Angola cujo núcleo principal ficava no triângulo entre o Cuanhama, Humbe e Cassinga.

O governo alemão queria um porto de mar no Sul de Angola e colocou três hipóteses: Baía dos Tigres, a apenas 50 quilómetros da fronteira com o Sudoeste Africano, então território sob ocupação alemã, Namibe e Tombwa. Fez estudos sobre a viabilidade da construção de um caminho-de-ferro que ligasse esse porto de mar à Namíbia, Rodésia (Zimbabwe) e interior da África do Sul. 

Os engenheiros alemães decidiram que a via-férrea devia ser feita ao longo do Paralelo 17º Sul entre o porto de mar escolhido e atravessando a Namíbia, o Zimbabwe e mergulhando no centro da África do Sul. Conhecemos hoje pormenores do traçado da linha que acabou por não ser feita, dado que os alemães foram derrotados em 1915. A via-férrea passava ao longo do rio Cunene até aos rápidos de Sacavala, contornava o Morro de Capupito, seguia para Ediva, passava ao longo do rio dos Elefantes, atravessava o território dos mucubais seguindo a margem esquerda do rio Curoca e terminava na Baía dos Tigres, Namibe ou Tombwa.

Rendição dos alemães

Norton de Matos, que foi governador-geral de Angola entre 1912 e 1914, conhecedor dos planos dos alemães criou postos militares apetrechados com estações radiotelegráficas em toda a região, desde a Foz do Cunene até ao Tombwa. Os alemães viram o seu sonho esfumar-se quando em Julho de 1915 foram obrigados a assinar a rendição ao general Botha. A I Grande Guerra começara um ano antes e as tropas da Alemanha na África Austral pouco aguentaram. 

Mandume ficou privado dos seus aliados e ainda viu apertar-se a vigilância na fronteira, o que dificultou as suas acções de guerrilha, que ele lançava desde o Sudoeste Africano, onde se refugiara quando o general Pereira d’Eça (o Pêra de Aço) ocupou Ngiva (Ondjiva).

Só nesta altura foi definida a fronteira Sul de Angola, praticamente com o traçado que hoje tem. Portugueses e ingleses criaram uma zona neutra compreendida entre o Paralelo Ruacaná-Cubango, proposto pelos portugueses para fronteira e o Paralelo Cazambue-Cubango que havia sido proposto pelos alemães. 

A zona atravessava a região de Otchimporo, para onde os cuanhamas levavam o gado no tempo da estiagem, já que era abundante em água e pastos. Só no dia 1 de Julho de 1926 foi ultimado o acordo assinado na Conferência do Cabo entre delegados portugueses e sul-africanos sobre a fronteira que ficou fixada em linha artificial da catarata do Ruacaná ao encontro do rio Cubango. Mandume ficou com os movimentos limitados e perdeu os fornecedores de armas e munições. 

Um ano antes da derrota do “Kaiser”, o último rei dos Cuanhamas pôs fim à vida. Mas ao contrário das lendas que ainda hoje circulam, ele nunca teve um grande combate com os portugueses porque optou pela táctica de guerrilha. Todo o território entre Namacunde e Caconda foi teatro das suas operações de bate e foge. Era um guerrilheiro temível e causou muitos dissabores aos ocupantes. 

A glória das grandes batalhas cabe inteiramente ao rei do Cuamato Grande que infringiu às tropas portuguesas a sua maior derrota de sempre. Há quem atribua a Mandume a batalha de Pembe, mas é uma falsidade histórica. Quando aconteceu esse combate, Mandume era um menino e ainda nem sequer sonhava ser rei.

A batalha de Pembe

Os portugueses tentavam desesperadamente ocupar os vastos territórios a Sul do rio Cunene mas sucessivas colunas militares foram derrotadas e tiveram de recuar para o Humbe, a praça-forte das tropas de ocupação. O jovem conde de Almoster partiu para Angola à frente de uma unidade militar que depois de desembarcar em Luanda seguiu directamente para o teatro de operações. O rei do Cuamato Grande destroçou a sua coluna e o jovem conde morreu em combate. As autoridades coloniais ficaram em estado de choque e em Lisboa choveram as críticas à administração colonial. 

O governador da Huíla, capitão de engenharia João Aguiar, preparou nova coluna que ele próprio comandou. Mal passou o rio Cunene foi submetida a intenso fogo das forças do rei do Cuamato Grande. As forças da vanguarda, comandadas por Gomes da Costa, prepararam tudo para a tropa retirar “em boa ordem” para o Humbe mas as baixas foram muitas. 

Nada que se parecesse com o que aconteceu a seguir. Foi organizada nova coluna com a incumbência de submeter o Cuamato Grande e marchar para sul até Ondjiva. Esta coluna estava equipada com uma metralhadora pesada Hotchkiss que só atrapalhou. Também levava peças de artilharia 7 BEM (Bronze-Estriado-Montanha) que na hora do desastre matou muita gente com “fogo amigo”. O comandante era Pinto de Almeida, capitão de artilharia.

O vau do Pembe fica situado na margem esquerda do Cunene a dois quilómetros da confluência com o rio Caculovar. E dista do Humbe escassos oito quilómetros. Gomes da Costa e Artur de Moraes contam a batalha com grandes pormenores. Mais recentemente, Bento Duarte, que fez uma aturada investigação sobre as guerras do Sul de Angola, escreve que a batalha é “o quadro horrendo da formidável derrota dos portugueses, a maior e mais trágica que alguma vez lhe foi imposta na África Negra”.

A lista oficial das baixas é impressionante. Oficiais mortos: capitão médico Manuel João da Silveira, segundo tenente João Faria Roby Pereira (Armada); capitão Pinto de Almeida (comandante da coluna), alferes Joaquim Pinto Rodrigues (Artilharia); tenente Adolfo Ferreira, tenente Francisco Resende, tenente Freire Temudo, alferes Santos Nunes (Cavalaria); tenente Luz Rodrigues (Companhia Europeia); tenente José Maria Ferreira, alferes Manuel de Oliveira (Batalhão Disciplinar); alferes Albino Chalot, alferes Correia da Silva (VI Companhia Indígena); tenente Matias Nunes (XVI Companhia Indígena); tenente António Trindade (Administração Militar); alferes Pacheco de Leão, comandante dos “auxiliares indígenas”. Na batalha do Vau de Pembe morreram ainda 13 sargentos e 255 soldados. Ficaram todos insepultos e só dois anos mais tarde Artur de Paiva, um “oficial mandioca”, conseguiu resgatar as ossadas.

A guerra dos Bóeres

Lord Kitchner, em 1902, ao serviço da Grã-Bretanha, põe fim às repúblicas holandesas independentes do Transval e do Estado Livre de Orange, na África do Sul. Muitos bóeres refugiaram-se em Angola e fixaram-se no distrito da Huíla. Mas enquanto durou “A Grande Jornada” eles tiveram retumbantes vitórias sobre os ingleses e já sonhavam com um grande país que abrangia toda a Namíbia e o Sul de Angola até ao rio Cunene.

A vitória inglesa ajudou os portugueses a fazer a ocupação do sul de Angola. Foi neste quadro que o rei Iulo, do Cuanhama, assinou um tratado de amizade com os portugueses. Mas tudo mudou quando Mandume subiu ao poder, sucedendo ao seu tio. Os portugueses classificaram-no como “um jovem irrequieto e sanguinário”. 

O Cuanhama ficou dividido em relação ao novo soberano. Os poderosos lengas (generais)  Nekongo e Eválua abandonaram o Cuanhama e fixaram-se no Humbe, levando milhares de pessoas e os seus rebanhos de gado. Os generais Kalola e Chiconhengue, fiéis a Mandume, faziam razias nas mucundas dos nobres cuanhamas “exilados”. O general Kalola foi preso pelas tropas portuguesas quando atacava a mucunda de Kabongo, já depois de assinada a paz com o pequeno e grande Cuamato. Mais tarde foi preso Chiconhengue.

Nos primeiros meses doseu reinado, Mandume escreveu uma carta ao major Artur de Moraes, comandante militar e administrador do Humbe, onde diz que quer viver em paz e harmonia com todos os vizinhos e reprova as acções de Chiconhengue e Kalola no Cuamato e no Humbe. 

O major Moraes aceita a amizade oferecida por Mandume e através de uma carta oficial dá-lhe uma garantia: “pode estar descansado que o general Chiconhengue e os outros cuanhamas presos no Cuamato não serão mortos, porque o Governo da República Portuguesa, não consentiria em tão grande barbaridade. Em Portugal não há pena de morte e fique certo de que serão bem tratados”. Os republicanos queriam marcar a diferença com os monárquicos, que passavam “o gentio a fio de espada”.

Mandume não respondeu ao ofício de Artur Moraes e as suas acções de guerrilha prosseguiram, agora com forte apoio dos alemães, que lhe levaram a Namacunde 19 carros bóeres carregados de armas e munições. Alves Roçadas fundou um forte na margem esquerda do Cunene e Pereira d’Eça avançou sobre N’giva. Milhares de cuanhamas fugiram para o Evale e para Cuambi, já no Sudoeste Africano. Mandume fez o mesmo trajecto. 

A sua guerrilha era letal mas as tropas inimigas aos poucos ocuparam os seus domínios. Nem bóeres nem alemães, derrotados, lhe podiam valer. O rei sabia que sem retaguarda estava perdido. Um ano antes do armistício que pôs fim à I Grande Guerra, assinado na floresta de Compiégne, em França, Mandume decidiu pôr fim à vida na cidadela real de Namacunde. O sul de Angola não seria parte da colónia alemã. Os seus aliados alemães do Sudoeste Africano (Namíbia) renderam-se logo no primeiro ano da I Grande Guerra. Estender a Damaralândia até às margens do Cunene não passou de um sonho do Kaiser. 

*Jornalista

Na imagem: Gravura do rei Mandume-ya-Ndemufayo, destacado líder da resistência contra a ocupação colonial

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