Angola: REAVALIAR A HISTÓRIA E AGIR COM LUCIDEZ




Pires Laranjeira* - Jornal de Angola

1 - O movimento popular de libertação de Angola teve o seu manifesto fundacional em 1956. Ora isso não aconteceu por acaso. Esse manifesto, nesse preciso contexto, correspondeu a uma avaliação rigorosa da herança histórica das lutas anti-coloniais, das forças sociais em presença com capacidade de transformação, das doutrinas políticas que estavam a ser adoptadas e, finalmente, das possibilidades de organização do povo, com vista à libertação nacional. Há ainda que considerar um outro elemento decisivo para se poder avaliar convenientemente o que representava esse manifesto: ele foi produzido no interior de um grupo de intelectuais e activistas anti-coloniais que formavam a vanguarda consciente da tradição cultural de que eram herdeiros. Dito de outra maneira, e com mais clareza e precisão, esse manifesto surgia no seguimento de múltiplos movimentos sociais e culturais, através dos tempos, e, do ponto de vista sócio-político, era a expressão mais elevada da actividade cultural desenvolvida pela elite alfabetizada na língua portuguesa desde o século XIX. Em síntese, o manifesto doutrinário que está na origem do movimento nacionalista moderno é o culminar da actividade político-cultural dessa elite que, desde o século XIX, proclamava o seu desejo e a sua vontade de independência. Nenhum outro agrupamento ou movimento político detinha, nesse preciso momento histórico, uma consciência tão aguda e extensa da íntima ligação entre a cultura e a política, ou, melhor ainda, de que a política é a organização sócio-cultural por outros meios. Outra ideia convém, uma vez mais, que se torne explícita, com simplicidade, para não haver dúvidas e não se perder a compreensão da legitimação histórica que sempre esteve em jogo. Essa ideia é a seguinte: as várias lideranças políticas, sociais e culturais, nos diversos sectores e instâncias de organização e poder, que iriam constituir depois o MPLA na sua fase decisiva da luta armada de libertação nacional, eram constituídas por um amplo número de intelectuais, pensadores, escritores e artistas, de todas as etnias, classes e raças, que nenhum outro movimento possuía na sua organização.

O MPLA nasceu, pois, das amplas lutas anti-coloniais de todos os tempos, fundamentando-se nomeadamente na assunção da modernidade angolana, por via do ensino do português e da introdução da chamada “imprensa livre” no século XIX e primeiro quartel do século XX. A Geração da revista Mensagem (1951), que integrou a mais ampla Geração de 50, onde couberam todos os nacionalistas africanos dos espaços mais variados, foi uma geração de fundadores da mais moderna cultura letrada de Angola. Refiro-me obviamente a figuras como Agostinho Neto, Aires de Almeida Santos, Maurício de Almeida Gomes, Alexandre Dáskalos, António Jacinto, Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz ou Mário António Fernandes de Oliveira. Essa geração teve predecessores e continuidade com Cordeiro da Matta, Óscar Ribas, José Luandino Vieira, Pepetela, Arnaldo Santos, Henrique Abranches, Costa Andrade, Benúdia, Uanhenga Xitu, António Cardoso, Alda Lara, Manuel Pedro Pacavira, Jofre Rocha, Jorge Macedo, Boaventura Cardoso ou Manuel Rui, entre tantos outros.

Convém recordar, com Frantz Fanon, que a luta armada de libertação nacional foi, em si própria, o acto cultural por excelência, não necessitando o colonizado, por isso, de apregoar que possuía cultura, como acontecia com a Negritude, mas, no caso do MPLA, tratou-se de corrigir e aumentar a posição fanoniana: o MPLA apresentava conteúdos de uma nova cultura, começada a elaborar ainda antes da sua própria formação.

2 – O MPLA conquistou a independência e o poder em 1975, sob a liderança de Agostinho Neto, o poeta nacional e presidente-fundador do Estado-Nação, enfrentando o ataque externo do Zaire e da África do Sul, num jogo estratégico inserido no contexto da chamada Guerra Fria entre o Bloco Ocidental e o Bloco Comunista. Saiu vencedor desse assédio ao derrotar os invasores na batalha maior e decisiva de Cuito Cuanavale. A paz interna foi alcançada em 2002, após a morte de Jonas Savimbi, líder histórico da UNITA, e o povo angolano pôde, então, respirar de alívio quanto a esse assunto das armas. Depois de 41 anos de guerras, a consequência lógica é que o MPLA e forças armadas angolanas passaram a constituir inexoravelmente a espinha dorsal do aparelho de Estado, quer dizer, as duas organizações que estruturam e detêm os poderes económico, político e social. Desde o manifesto de 1956, há precisamente 56 anos, o poder de decisão dos destinos do país que se foi formando desde os tempos de Ngola Kiluangi e Nzinga Mbandi, entre outros líderes hoje considerados ícones nacionais, encontra-se na posse de uma crescente burguesia nacional que está a formar-se e isso corresponde a um estádio normal de evolução na passagem das colónias a modernos Estados-nações.

A guerra intestina, paradoxalmente, ajudou a estruturar o poder militar como poder importantíssimo do Estado centralizador e, através da incorporação dos jovens de todas as etnias e províncias do país, a alargar o melting pot sócio-antropológico, intercultural, que caracteriza Angola como entidade política que busca aprofundar a ideia-chave de “um só povo, uma só nação”, de Cabinda ao Cunene.

O reforço da burguesia em formação deu-se naturalmente com a participação de novos actores que emergiram do esforço de guerra, através dos negócios castrenses e das posições conseguidas no aparelho de Estado e no sector empresarial público, com as naturais ligações internacionais. O triunfo na guerra intestina e a paz assinada trouxeram ao aparelho de Estado novos protagonistas, que passaram a ocupar lugares na organização económica, política e social do país. O MPLA saiu reforçado e legitimado nos poderes construídos ao longo de cerca de meio século de actividade política anti-colonial e de exercício da governação do novo Estado.

Num país africano, em que pode existir o perigo de novas conflitualidades étnicas, sociais, regionais, económicas ou culturais, o povo não desejará perder a paz e a estabilidade que asseguram a vida do país. O pacto da estabilidade é, portanto, uma mais-valia a esgrimir nas contendas eleitorais. O fantasma da guerra, a realidade do enriquecimento da grande burguesia e do empobrecimento do povo e a esperança num desenvolvimentismo moderno (e mesmo pós-moderno) conjugam-se para assegurar a conciliação que caracteriza o momento político.

3 - É natural e louvável que o Estado queira preservar, reavivar e rejuvenescer (quanto aos usos e costumes, rituais e cerimónias), elementos culturais como a rebita, dança urbana, divertida, discretamente sensual e garbosa, para que a fruição dos entusiastas dançantes não se fique pelo tango, o swing ou o kuduro. Torna-se, pois, fulcral, como tem sido desde a independência, a exploração e o culto dos fundamentos bantu da nacionalidade, exercidos, de facto, pelas populações regionais e revalorizados pela intelectualidade empenhada numa prática nacionalista, conquanto a mestiçagem biológica se tenha processado em faixas geo-sociais apreciáveis e o entrecruzar dos elementos da hélice cultural dialéctica sejam evidentes nas zonas urbanas em acelerada mutação.

Hoje, o inimigo é o ultracapitalismo neo-liberal, selvaticamente especulador e culturalmente abjecto, que tanto procura vender literatura itinerante no mato como donuts na Ilha de Luanda.

Contra a tendência de a elite cultural angolana, nos idos de 40 e 50, se deixar assimilar pelas modas e substâncias culturais do invasor e de banalidades de consumo de outras procedências alienígenas, Agostinho Neto exortava à reconquista da sua peculiaridade ensombrada. O contexto era o da luta contra a assimilação colonial, mas, hoje, faz todo o sentido combater, ideológica e culturalmente, o excesso de optimismo quanto às crioulizações, mestiçagens, hibridismos, misturas, mesclas, amálgamas e outros conceitos e formas de abordar a interculturalidade em países do Sul a partir de uma conceituação que decorre de um foco centrado a partir do Norte. Basta pensar, para não irmos mais longe, nesta circunstância, que nenhum teorizador classifica uma sociedade portuguesa, inglesa ou francesa de crioula, mestiça ou híbrida.

Não se trata de negar a evidência de que as sociedades urbanas são, neste começo de milénio, por via da globalização capitalista e consumista, comunidades em vertiginosa mutação e assimilação de conteúdos muito diversificados.

Mas uma nação jovem, tal como as jovens nações dos séculos XVIII e XIX, inclina-se por definir uma política cultural de natureza nacional, determinando uma matriz fundadora, em que a maioria se reconheça, sob pena de alienar os fundamentos culturais do país. Reconhecendo-se a matriz bantu, isso não impede que brancos, caribenhos ou asiáticos nascidos ou naturalizados em Angola não se reconheçam também nessa matriz, ficando livres de aderir também a outras componentes da cultura angolana, seja o bacalhau à Gomes Sá, o funky-jazz da Samba ou o poema minimalista à moda de e. e. cumming.

Nos anos 50, Agostinho Neto propunha a “reconquista” (o re-conhecimento, a apropriação e o usufruto) da cultura bantu, embora tivesse consciência de que os intelectuais, por natureza, formação e subjectividade, eram todos, segundo os conceitos epocais da antropologia de origem colonial, aculturados, assimilados, mestiçados. Essa é a questão fulcral para as novas gerações, qual seja a da assunção da especificidade da cultura angolana, da sua irredutível singularidade, que não pode ser classificada de mestiça, híbrida, crioula, branca ou negra. Pode-se correr o risco de observá-la como facto exótico através das disciplinas teóricas do Velho e do Novo Mundo, igualizando-a a tantas outras, reduzindo-lhe o alcance sob o rótulo de cultura mestiça ou crioula do Sul, mas, olhando à especificidade do lastro cultural popular, tradicional e genérico, a cultura angolana não pode deixar de ser maioritariamente bantu, produzida em línguas nacionais, isto é, em quimbundo, tchokwé, umbundu, português, por uma base sociológica de maioria negra.

Não se trata de recusar qualquer forma de cultura moderna e até pós-moderna (sabendo que isso implica o pastiche ou a colagem, suportes antiquíssimos ou tecnologias de última geração), como a pintura de cavalete, o vídeo, a instalação, o hip-hop, a performance, a poesia visual ou a painting-body, provenientes de seja qual for o sector social e étnico. É necessário reconhecer que nenhum povo pode viver a sua vida afectiva, subjectiva, estética, intelectual e relacional segundo expressões e produtos de pura importação mercantil, como sejam a banda desenhada com protagonistas brancos, o pequeno-almoço à base de donuts ou Camões e Ezra Pound fornecidos a jovens impreparados sobre a língua portuguesa, o classicismo, a ideologia imperial ou o fascismo.

Agir com lucidez

4 – Desaparecido o mais-velho MPLA-Partido do Trabalho, a cartilha social-democrata e neo-liberal toma conta da vida política do país. O actual MPLA constitui a espinha dorsal do poder em Angola. Neste momento, o capital simbólico adquirido pelo MPLA na sua caminhada contra o colonialismo português e os países austrais do apartheid e das ditaduras neo-coloniais, faz com que não exista espaço para uma alternativa, que, se fosse possível, teria de se alimentar de alianças e coligações, que são impensáveis nas actuais circunstâncias.

A FNLA, a UNITA, o PRS, a Nova Democracia, são forças de contra-poder hegemónico que têm assento nas instâncias do poder central e têm capacidade de mobilização, mas resta saber se essa convocação para a participação cívica é nacionalmente alargada e de largo espectro representativo. Tudo indica que ainda não, em proporções muito variadas, e as reticências aumentam se estendemos o raciocínio à nova entidade política chamada CASA e a tantos outros agrupamentos. Os entendimentos, para além de pontuais, não apresentam uma verdadeira alternativa política e económica, limitando-se a pugnar pelo aprofundamento da democracia, o que não deixa de ser um programa exigente que implica o longo prazo, afinal aquele com que o próprio MPLA se comprometeu e terá de continuar a levar à prática, pelas próprias circunstâncias do desenvolvimento material da sociedade, se quiser prolongar a sua aura de partido histórico, fundamental na constituição do Estado-nação e da democracia.

A existência de dezenas de agrupamentos políticos no país fracciona a capacidade de se constituir uma ou mais forças que possam afirmar-se como alternativas democráticas abrangentes. Demonstram um não-alinhamento com os partidos que têm assento parlamentar, mas mostram a ineficácia da fragmentação. Muitos deles não possuem base de apoio e, desde logo, estão condenados a desaparecer, porque aparecem como sintoma de voluntarismo, que tanto pode ser ingénuo como irresponsável ou mesmo de algum oportunismo, espelhando, objectivamente, a fragmentação doutrinal, fazendo lembrar a situação em Portugal no período pós-25 de Abril de 1974, justamente aquele de maior conturbação social e de instauração da democracia representativa.

A UNITA e a FNLA podiam constituir uma alternativa, nestas eleições, se não tivessem o ónus da História contra elas. A sociedade angolana sabe que essas duas organizações tiveram o apoio do apartheid e de Mobutu e a representação de populações bem localizadas e, por isso, ainda há-de demorar a transformarem-se em partidos representativos da maioria da sociedade angolana sintonizada com as grandes democracias históricas, e nomeadamente as emergentes. Não atingiram ainda o estatuto de possibilidades de alternância, como se verifica noutros países. É preciso dar tempo ao tempo.

Por outro lado, num país do Sul, não há qualquer legitimidade, seja de quem for, em sugerir que o sistema político deva ser uma democracia segundo cópia do modelo ocidental, visto que, no hemisfério norte, nenhum país é constituído por tantas etnias e línguas, como acontece com a esmagadora maioria dos países africanos.

Além disso, a história ensina-nos que a modernidade e a democracia ocidentais são indissociáveis de uma certa barbárie, como explicaram os teóricos da Escola de Frankfurt, pois não há riqueza que não assente, na sua origem, na dominação e exploração, mais ou menos violentas, ou, então, disfarçadas com amortecedores democráticos (veja-se, por exemplo, as actuais democracias grega e portuguesa), de um sector da sociedade por outro ou de um ou vários países por outro(s). Lições de moral de governantes ou analistas de outros países, é melhor que não existam, pois convém sempre não esquecer os esqueletos no armário ou os fantasmas no álbum de memórias.

Por um futuro melhor

5 - Ainda que um naipe significativo dos históricos do MPLA não reconheça nele o antigo movimento, não há qualquer hipocrisia ou cinismo em aceitar que a manutenção do poder significa a continuidade do projecto de constituição e consolidação da burguesia nacional e, por conseguinte, a estabilidade do regime, assente numa economia de extracção de matérias-primas. Resta saber se a burguesia nacional constituinte será patriótica o suficiente para abrir o capital ao fomento da produção nos sectores primário e secundário e satisfazer as necessidades básicas do povo, abrindo a sociedade a uma cada vez mais extensa literacia e consequente participação política, com o sonho de crescente consciência cívica.

Em suma, portanto, no plano do desejo e da esperança, a via política deveria ser simples e clara: alargamento da produção e da oferta de trabalho, com auto-suficiência no plano alimentar, formação de uma classe média ampla, extensão máxima da educação e da formação profissional, cuidados de saúde pública e familiar, ou seja, elevação dos níveis de vida e felicidade – um belo programa para qualquer força política verdadeiramente patriótica, popular e humanista.

Como dizia Marx, a prática é o critério da verdade. As eleições serão livres, não temos dúvidas sobre isso, e os meios ao dispor das forças políticas serão equitativos, segundo as regras eleitorais, mas que se calem sobretudo as vozes da desgraça que querem este mundo e o outro num abrir e fechar de olhos, sem olhar às vítimas colaterais.

Agir com lucidez, é atender às necessidades básicas do povo.

A não ser assim, o poder político abre a porta à contestação legítima das forças políticas e sociais. Revoluções e mudanças, sim, em paz e tranquilidade, com vigilância democrática e responsabilidade máxima de todos. As utopias dão muito trabalho, não dependem de poucos e a dialéctica da história desfaz as melhores ilusões. O resto é a espuma dos dias, muito melhor vivida com o máximo de bem-estar para todos. O povo angolano bem merece.

Coimbra, 24 de Junho de 2012

(*) Comunicação do Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra apresenta, na quinta-feira, em Paris, num colóquio sobre as próximas eleições em Angola.

(*) O Jornal de Angola publica em primeira-mão esta comunicação que o Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra apresenta, na quinta-feira, em Paris, num colóquio sobre as próximas eleições em Angola.

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