quarta-feira, 23 de abril de 2025

Todos, todos, todos os Franciscos

Parecia um homem bom, simples, apostado em limpar a malsã Cúria Romana e em “abrir” a sua igreja, mas foi também, talvez sobretudo, um sagaz político que percebeu que era preciso mudar algo para que tudo ficasse na mesma.

Fernanda Câncio | Diário de Notícias, opinião

Foi rei absoluto de um Estado a fingir, dirigente de uma organização que tem (e não deixou com ele de ter) na discriminação das mulheres e na obsessão pelo sexo duas das suas características definidoras, multinacional de riqueza incalculável que nunca se faz rogada em estender a mão aos orçamentos dos países, por mais pobres que sejam.

Lavou os pés de sem-abrigo, visitou prisões, clamou pelo acolhimento dos migrantes, exortou o mundo a erguer-se contra a barbaridade do que se passa em Gaza e a defender a Terra contra a destruição ambiental; fez discursos anti-capitalistas e chegou a dizer que Jesus seria hoje considerado comunista. 

Acreditou no diabo como ente real e, como milhões de católicos, a começar pelos portugueses, adorou uma estatueta (sim, refiro-me à “Virgem de Fátima”). 

Quem era de facto Jorge Bergoglio, entronizado Francisco em março de 2013? 

Se em algumas coisas nos surgiu, ao longo destes 12 anos, desempoeirado, “moderno” e até rebelde -- como quando afirmou “Se uma pessoa é gay e busca Deus, quem sou eu para julgá-la?”; quando finalmente em 2023, após avanços e recuos, deu permissão para a benção de casais homossexuais por padres (frisando porém que isso em nada implicava equiparar essas uniões ao “sagrado matrimónio”); ou quando, já este ano, muito perto do fim, colocou a primeira mulher na direção de um dos ministérios da Santa Sé --, noutras chocou pelo ultramontanismo.

Como quando em março de 2018, na exortação apostólica Gaudete et Exsultate (“Alegrai-vos e Exultai”), proclamou ser “a vida cristã” não apenas “uma luta permanente” contra “o mundo e a mentalidade mundana” ou “a própria fragilidade e as próprias inclinações” mas também “contra o demónio, que é o príncipe do mal”. Sublinhando não se tratar essa figura de “um mito”, “representação”, “símbolo” ou “ideia”, advertia ser esse engano que “leva a diminuir a vigilância, a descuidar-nos e a ficar mais expostos. (…) A convicção de que este poder maligno está no meio de nós é precisamente aquilo que nos permite compreender por que, às vezes, o mal tem uma força destruidora tão grande.” 

Nesse mesmo ano, em abril, o Vaticano organizava um curso de exorcismo -- algo que deixava alguns religiosos entusiastas de Francisco, ouvidos então pelo DN, descorçoados e até incrédulos. Caso do padre e professor do doutoramento em psiquiatria e saúde mental da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto Anselmo Borges: “Os exorcismos, o diabo, são uma crendice. Não há diferença entre isso e aqueles professores não sei quê que são propagandeados à saída do metro nuns papelinhos. O que é real é o sofrimento das pessoas. (…) Há um grande livro de um grande exegeta, Herbert Haag, um dos maiores especialistas de sempre na Bíblia, que se chama Adeus ao diabo, no qual ele demonstra que não existe nenhum fundamento para defender a respetiva existência.”

Sendo assim -- e é assim -- em qual dos Franciscos devemos acreditar? No que logo em 2014 convidou Patti Smith para participar no concerto de Natal do Vaticano ou no que nos jurava que o diabo, com maiúscula, existe mesmo? No que recebia transexuais ou no que, em privado, usava (pedindo depois desculpa por o ter feito) palavras homofóbicas para referir homossexuais e se manifestava contra a admissão de homens com essa orientação sexual em seminários? No que tanto pregava a paz ou no que, a seguir ao massacre no semanário humorístico Charlie Hebdo, em 2015 -- motivado, de acordo com a reivindicação do Daesh, pelo “gozo” com Maomé -- , disse que se alguém lhe insultasse a mãe (ou a “Virgem Maria”), lhe daria um murro?

Em quem ordenou o levantamento do segredo pontifício, para permitir o acesso das autoridades “civis” aos processos canónicos de abuso sexual, ou em quem admitiu (ou ordenou) que as concordatas assinadas, sob o seu reino, com vários países africanos assegurassem foro privilegiado a prelados, o direito de recusa de testemunho por parte de membros das igrejas, exclusão de acesso a instalações e arquivos, conferindo-lhes estatuto de território estrangeiro, e certificação de que a Igreja Católica não podia ser demandada por crimes cometidos pelos seus funcionários?

Sem dúvida de que Francisco era simpático, adorável até, por vezes; que dizia e fazia coisas comoventes (como aquela lancinante oração no dealbar da pandemia de Covid-19 quando, numa Praça de São Pedro deserta, pediu que lembrássemos só nos termos uns aos outros -- irmãos, todos). Mas a verdade é que, se houve mudanças sob o seu governo, nada mudou suficientemente para que não possa ser revertido pelo seu sucessor.  

Se foi, é certo, odiado e guerreado pelos setores mais conservadores da sua igreja e da política mundial -- alguns dos quais, sem vergonha, como é o caso do líder da extrema-direita portuguesa, vêm agora afetar tristeza com a sua morte --, e isso quer dizer alguma coisa, ficou muito aquém dos anseios daqueles que mais o defenderam.

Disse ao DN, em 2019 -- há seis anos, quando Francisco estava exatamente a meio do seu papado -- a teóloga e freira Maria Julieta Dias: "Se podia ter feito mais? Podia, mas isso seria uma má estratégia. Ele não se sobrepõe à Igreja, quer levá-la a assumir a direção que ele quer imprimir. Quer que ela chegue lá. A mudança de mentalidade e de vida não se decreta por normas nem por documentos. É pelas mensagens que dá, a forma como o faz. Isso é que pode levar a uma mudança de mentalidade; ele quer criar uma mudança mais eficaz e mais profunda. Levar-nos a uma mudança que compreendemos, que nos faz felizes."

Pode ter sido isso, sim. Pode ter sido pouco tempo -- 12 anos não é muito, decerto, para mudar uma instituição milenar. Ou pode ter sido apenas a mudança que acreditou ser necessária para que uma organização tão enfraquecida pelo escândalo do abuso sexual de menores, tão desgastada que viu resignar o anterior papa, fosse capaz de ganhar um novo fôlego.

Pode ter sido o reconhecimento de que a Igreja Católica é, enquanto estrutura de poder, irreformável -- ou a convicção de que não precisa assim tanto de ser reformada.

Certo é que a sua exortação  “todos, todos, todos”, tão glosada e incensada, foi, afinal, desconstruída na resposta que deu a uma jornalista que lhe perguntou, à saída de Lisboa, em 2023: “Como explica a incoerência entre uma igreja aberta a todos, todos, todos, e uma igreja que não é igual para todos -- onde nem todos têm os mesmos direitos, oportunidades, no sentido de que, por exemplo, mulheres e homossexuais não podem receber todos os sacramentos?”

Uma coisa, respondeu Francisco, "é acolher toda a gente, outra são as regras de funcionamento da organização". Uma coisa é a igualdade em teoria; outra, muito diferente, é a prática. Uma coisa é quem está na posição de acolher, outra quem está na posição de precisar de ser acolhido. O diabo está nos detalhes, já sabíamos.

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