João Novaes, São
Paulo – Opera Mundi
Poeta, jornalista e
biólogo moçambicano participou da luta pela independência de seu país
Sob a laje de um
sobrado no Jardim São Luís, bairro de periferia na zona Sul de São Paulo, mais
de cem pessoas se acomodavam para escutar atentamente e com confesso
deslumbramento uma palestra informal do poeta, biólogo e jornalista moçambicano
Mia Couto, autor de obras como “Terra Sonâmbula” (Cia. Das Letras, 1992 (1ª
ed.), 208 pgs.), de passagem pelo Brasil para a divulgação de seu mais recente
livro, “A Confissão da Leoa” (Cia das Letras, 2012, 256 pgs.).
Em meio aos populares do Bar do Zé Batidão, onde ainda participou de um sarau
organizado pelo coletivo Cooperifa,
na última quarta-feira (07/11), Mia parecia mais à vontade do que no dia
anterior, quando conversou amigavelmente com um público mais elitizado, em uma
sala de cinema do Conjunto Nacional, localizado nos Jardins, bairro ‘nobre’ da
zona oeste. Nas duas ocasiões, conversou com a reportagem de Opera Mundi.
O perfil pacato e conciliador do escritor não esconde uma vida marcada pela militância, que começou nos anos 1970, quando participou da luta pela independência de Moçambique, quando se juntou à Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). Hoje, desencantado, não participa mais da vida político-partidária do país (promete nunca mais voltar a se envolver com partidos), mas o ativismo está presente em suas atividades como jornalista, biólogo (dirige uma empresa de estudos sobre impactos ambientais) e, sem dúvida, em suas obras.
Ativismo político
“Política é um assunto tão sério que não pode ser deixado só nas mãos dos políticos. Temos de reinventar uma maneira de fazer política, porque isso afeta a nós todos. Faço isso pela via da escrita, da literatura, já que me mantenho jornalista e colaboro com jornais. Também faço intervenções como visitar bairros pobres onde as pessoas não recebem meu tipo de mensagem. Essa é a minha militância”, explica.
Atualmente, afirma manter uma distância crítica do governo, controlado pela Frelimo desde a independência, em 1975. Para ele, a proximidade entre o discurso e a prática do partido se distanciaram, mas afirma não haver ressentimento ou sensação de traição, pois considera que esse fenômeno se reproduz em todo o mundo. Ao contrário, se diz grato por seu tempo de militância partidária. “Fazer política hoje exige grande criatividade, temos de saltar fora de modelos, mas o modelo de fazer política faliu. Em todo o lado do mundo. Então é preciso reinventar, ter imaginação. Para ter imaginação é preciso sair fora dos padrões que vemos”.
Nascido António Emílio Leite Couto, filho de um casal de portugueses que já viviam há muitos anos no país africano, Mia cresceu em uma casa colonial na Beira, terceira maior cidade de Moçambique, em um meio rural e próximo do ambiente místico encontrado em algumas de suas histórias.
Na juventude, já
morando em Maputo (na época colonial chamada de Lourenço Marques) e começando a
ganhar destaque por seus poemas, decidiu estudar medicina. Por diretrizes da
luta revolucionária, foi escalado como jornalista na Tribuna, publicando
matérias favoráveis à independência – até o jornal ter sido incendiado por
colonos portugueses. Lembra que nunca pegou em armas durante a luta pela
independência, pois, embora os brancos fossem bem-vindos no movimento, não eram
autorizados a atuar como guerrilheiros, mas no serviço clandestino.
Em suas histórias
de luta pela independência, Mia lembra de como se alistou clandestinamente na
Frelimo. “Havia na época um ritual chamado ‘confissão de sofrimento’, onde cada
pessoa para ser aceita contava sua história de vida e todos os fatos que o
colonialismo os fez sofrer. Ouvi cada história e me assustava, porque não tinha
sofrido tanto quanto eles. Temia que teria de inventar uma história muito
sofrida para ser aceito. Quando chegou minha vez de falar, me perguntaram: ‘É
você que escreve poesias?’ e respondi que sim. Daí me disseram: ‘Então tudo
bem, você pode entrar’”, conta, sempre provocando risos.
Atuação ambiental
Sobre seu trabalho
com estudos de impacto ambiental, Mia é mais um entre os muitos ativistas
moçambicanos a relatar a dificuldade para se encontrar um equilíbrio entre o
ativismo nessa área e a agenda desenvolvimentista. Perguntado sobre os
problemas que as grandes obras, principalmente relacionadas à mineração, têm
causado às populações e ao meio ambiente, ele afirma que o principal problema
se encontra na aplicação das leis.
“Moçambique tem uma
grande fragilidade institucional que é seguir o que está na lei. O país tem
leis, mas não a capacidade para acompanhamento e controle. Isso tem de ser
resolvido. Por outro lado, é preciso prestar atenção, pois Moçambique está em
uma armadilha grande: entre ficar como está e aceitar aquilo que vem [de fora],
o que nem sempre é o melhor. O país lutou muito para atrair investimentos, para
que sua imagem criasse simpatia com o grande capital. (...) Deve-se lembrar que
a miséria também é um problema ambiental. [Não se pode] deixar os países como
Moçambique como estão, como se estivessem bem, quando na verdade eles não estão
[Mia criticou em outras ocasiões, assim como neste caso, a corrente que defende
que a África deveria permanecer um ‘continente selvagem’]. A miséria gera
problemas enormes em Moçambique, tão insustentáveis quanto aos atribuídos à
indústria, que muitas vezes é cega”. Para ele, o meio termo deste conflito só
pode ser alcançado com o diálogo.
Engajamento poético
Entre tantos
trabalhos e engajamentos, Mia considera que sua atividade mais importante é dar
conselhos e orientações aos jovens moçambicanos que o procuram e manifestam seu
desejo de se tornarem poetas. “A condição para o poeta não é que ele escreva
bem, mas que tenha uma história a ser contada. A falta de domínio da técnica
não deve ser um impedimento para continuar, não deve ser a morte do sonho”,
afirma, lamentando que um dos locais onde mais se procure desencorajar essa
iniciativa sejam justamente as escolas.
Foi muito aplaudido
quando disse essa frase na Cooperifa, já que estava cercado de um público que,
por muitas vezes, vê o seu direito a produção intelectual ser alvo de
preconceito. “Acredita-se que a periferia pode dar jogador, cantor, dançarino,
mas poeta? No sentido de que o poeta não produz só uma arte, mas
pensamento...Acho que o grande racismo, a grande maneira de excluir o outro, é
dizer que o outro pode produzir o que quiser, até o bonito, mas pensamento
próprio, não. E vi aqui que havia um pensamento que está muito vivo e está
fazendo acontecer coisas”.
Leia mais em Opera Mundi
Sem comentários:
Enviar um comentário