Portugal vive hoje sob um regime
político que se apresenta como democrático, mas que já não o é. Persistem as
eleições, os parlamentos, os jornais, os partidos, os discursos inflamados na
Avenida da Liberdade para comemorar o 25 de Abril. Não há perseguições nem
presos políticos. Mas falta-lhes todo o resto. Falta já a substância.
A democracia portuguesa – e, por
extensão, a de toda a União Europeia – tornou-se um teatro de sombras, onde os
actores se movimentam obedientes a um guião traçado por interesses supranacionais,
alheios à vontade popular. A liberdade política esvai-se sem tiros nem
quarteladas, numa erosão subtil, mas implacável, em que o cidadão comum é
reduzido a figurante.
Tal como em Matrix, os
portugueses continuam a acreditar que vivem numa democracia porque ainda votam,
ainda discutem política, ainda protestam de vez em quando. Mas já não
mandam. Já não decidem. Já não influenciam. O poder efectivo – aquele que
determina o rumo da Economia, os modelos de governação, os critérios de
financiamento, as regras sociais, os limites da acção individual e colectiva –
reside noutras mãos. Mãos frias, cinzentas, instaladas em Bruxelas, Estrasburgo
e Frankfurt. Mãos de burocratas não eleitos, ou eleitos por cliques
governamentais sem qualquer representação directa de vontades nacionais. A
Comissão Europeia, hoje desprovida de qualquer sentido de solidariedade ou
humanismo, tornou-se uma instância autocrática que olha para os cidadãos como
carne para canhão, peças sacrificáveis num tabuleiro de xadrez onde só importa
proteger o rei e os bispos.
Onde antes se vislumbrava um
projecto de desenvolvimento económico e social, temos agora um modelo de gestão
tecnocrática e autoritária, que invoca a “governança” para justificar a
opressão fiscal, a vigilância digital, a neutralização da dissidência e o
esvaziamento do Estado-Nação. Em nome da estabilidade, da transição ecológica,
da saúde pública ou da “resiliência”, tudo é permitido – menos resistir.
A comunicação social mainstream,
falida e dependente cada vez mais do ‘oxigénio’ das corporações e do Estado –
porque os seus clientes tradicionais, os leitores, já não lhe concedem a
credibilidade e o valor económico de outrora –, traiu os seus princípios. Neste
novo cenário, deixou de ser watchdog para ser o petdog, abanando
a cauda a cada migalha do poder.
Portugal, outrora nação soberana,
é hoje um protectorado sem identidade política – mais submisso aos ditames dos
comissários europeus do que o foi à Coroa espanhola entre 1580 e 1640. A diferença é que, ao
menos, o domínio filipino não disfarçava a sua natureza. Hoje, os nossos
dirigentes sorriem, assinam, bajulam e até agradecem por sermos tutelados. E
não são apenas os burocratas estrangeiros os culpados: são, sobretudo, os
nossos próprios políticos, que cedo perceberam que em Bruxelas há mais poder, mais
visibilidade e melhores poisos do que em São Bento. De Durão
Barroso a António Costa, temos assistido a uma sucessão de ambiciosos que
trocaram a lealdade à pátria pela ascensão nas hierarquias internacionais.
Portugal serve já apenas como trampolim.
E, no entanto, os tempos difíceis
não surgem apenas do exterior. A deriva antidemocrática alastra também no plano
interno, disfarçada sob novas roupagens. Se muitos se escandalizam com o Chega
– e bem, diga-se, pois a retórica populista não oferece soluções, apenas
ressentimentos –, poucos se apercebem de que o verdadeiro risco está na
emergência de uma nova direita pretensamente respeitável, que nasce das
borralhas de um antigo PSD e CDS e que se tenta reabilitar à boleia de uma
figura tão popular quanto perigosa: o Almirante Gouveia e Melo.
Há quem trema com os apoiantes do
Chega. Eu tremo tanto ou mais com os que se juntam, discretamente, em redor de
Gouveia e Melo. Começa-se pelo novo BFF (best friend forever) do
Almirante: Isaltino Morais, o velho cacique que gere Oeiras como um paxá num
feudo medieval. Junte-se-lhe Rui Rio, o ex-presidente do PSD, agora mandatário
da candidatura a Belém, com contas a ajustar com os seus ‘fantasmas’ que o
impediram de ser primeiro-ministro. Adicione-se ‘senadores’ reformados do PSD
ou derrotados do CDS, bem da vida por terem aproveitado da rede de contactos
políticos uma existência inteira, mas saudosistas das luzes da ribalta, como
Ângelo Correia, António Martins da Cruz e Francisco Rodrigues dos Santos. Esta
frente discreta, mas não menos inquietante, de figuras em busca de redenção ou
vingança compõe um coro de sombras que encontra em Gouveia e Melo uma âncora,
um novo D. Sebastião vestido de almirante. É isso que tentam vender.
Aliás, de entre os sete fundadores e
membros da direcção de apoio ao Almirante – Honrar Portugal, que
curiosamente repete uma denominação com laivos de Estado Novo de um grupo
de pensamento do Chega no Facebook –, não é de admirar que haja quatro
especialistas em marketing, porque Gouveia e Melo é um produto apenas com
embalagem: Carlos Sá, Catarina Santos Cunha, Manuel Vaz e Tiago Mogadouro. De
facto, bem precisam de vender um senhor que de carisma tem zero, sem um
pensamento teórico, político ou social minimamente estruturado sobre assunto
algum, que lê o teleponto como um boneco de cera – talvez seguindo as recomendações
de Tiago Mogadouro, que é director-geral do Museu Madame Tussaud, em Nova Iorque.
Mas mais preocupante ainda é ver
neste grupo avançado de lugares-tenentes de Gouveia e Melo – que se tornou
conhecido por ter sido o director logístico de um produto (vacinas contra a
covid-19) durante três trimestres – uma constitucionalista, Teresa Violante,
que já defendeu, sem pudor, que houve, sim, atropelos constitucionais durante a
pandemia, mas que tal problema se resolve facilmente: basta mudar a
Constituição. Talvez também queira mudar a Constituição para que os atropelos
cometidos por Gouveia e Melo, na sua sanha justiceira a bordo do NRP Mondego,
se tornem legais.
É este o perigo de se embarcar em
populistas – que é exactamente aquilo que Gouveia e Melo é. Se a lei incomoda,
muda-se a lei. Se os direitos atrapalham, cortam-se os direitos. Tudo pela
eficácia – e ele já defendeu ser contra a burocracia, porque, hélas,
promove a corrupção. A democracia, com os seus equilíbrios, os seus freios e
contrapesos, os seus incómodos, é hoje vista como um obstáculo.
O problema da crise dos partidos
tradicionais, que fizeram crescer os populismos e os extremismos, faz também
‘nascer’ este tipo de figuras que, tal como André Ventura, querem mudança – mas
essa mudança vem acompanhada de veneno. Em vez de vir revestida de ideias, vem
mascarada com palavras como “modernização”, “responsabilidade” ou “realismo”.
Traz, na verdade, um conteúdo bem mais sinistro: menos democracia, mais
controlo.
Gouveia e Melo é o rosto ideal
para esta operação – e será talvez o mais desejado aliado, mesmo que
involuntário, de André Ventura. Se Gouveia e Melo for eleito para Belém, aí
teremos um populista sem ideias – ou com ideias feitas por outros –, mas com
farda e voz grave. Um produto de marketing, com teleponto e conselheiros. Um
símbolo de autoridade artificial, que seduz quem anseia por ordem, mas não
percebe que está a abrir caminho ao autoritarismo. A ascensão de Gouveia e Melo
não representa apenas um risco político: representa um sinal de desespero
democrático. Quando o povo deposita as esperanças num almirante vazio de
pensamento, é porque já perdeu a confiança nos partidos, nas instituições, na
democracia em si mesma.
Portugal vive, pois, um tempo de
simulacro: simulacro de soberania, simulacro de debate, simulacro de escolha. E
como em todos os simulacros, o espectáculo continua – com Gouveia e Melo em
Belém seguirá, pois, em agonia, já sem alma, sem sentido e sem verdade.