Rui Peralta, Luanda
VII - Sendo a América
Latina um manancial de novas forças autogestionárias, participativas e
emancipadoras, torna-se necessária uma reflexão sobre a forma como estas
autonomias sociais se relacionam com o Estado, com as instituições e partidos,
como são efectuadas as relações entre o local, o nacional e o global, a relação
com o mercado e com outros sectores sociais ou as suas formas de organização.
Nestas reflexões e observações muitos foram os seduzidos pela ideia do anti-poder,
um contra poder baseado na autonomia dos movimentos sociais e dos espaços
comunitários autogeridos, as zonas autónomas. Entre os seduzidos por esta ideia
estão Toni Negri, Miguel Benasayang e John Holloway, tendo este ultima
analisado a experiencia zapatista.
Clamando por um transformar
o mundo sem tomar o poder e a desenvolver conceitos como “poder-acção,”
“poder-fazer” em vez do interesse pela tomada do poder. Holloway defende que o
mundo não pode ser transformado a partir do Estado, por este ser apenas um nó
na rede das relações de poder. Para Holloway o objectivo estratégico seria o de
liberar o poder-acção e o poder-fazer e prevenir as experiências autogeridas do
perigo representado pelas instituições e pela sua institucionalização. Holloway
esquece algumas questões muito básicas, a começar pelos zapatistas, que ele
observou durante anos.
As conquistas dos
zapatistas são consideráveis e Holloway acompanhou-as de perto. Só que quando
os comandantes zapatistas falam em mandar obedecendo referem-se a uma fórmula
de poder popular, que impede a burocratização e os maus hábitos dos dirigentes,
assim como é anunciador de um poder muito real (e vertical, bastando a essa
verticalidade a posição de comandantes e subcomandantes), assumido pelas
assembleias, mas também pelo poder institucional zapatista, representado em
instituições como os conselhos de bom governo e o Exército Zapatista de
Libertação Nacional (EZLN). E foi esta estrutura que escapou a Holloway nas
suas conclusões.
É evidente que a
existência das Zonas Autónomas e a importância da autonomia social assume um
papel de vanguarda nas movimentações sociais do seculo XXI, na América Latina,
mas não no sentido da recusa do poder. Até porque para muitos destes movimentos
(pelo facto de estarem espacialmente focados) essa é uma questão que eles nem
sequer colocam. Muitas das movimentações não têm intentos revolucionários em
potência, outras podem até ter um comportamento insurrecional, mas daí a serem
situações revolucionárias que coloquem em causa o poder de Estado ou o
relacionamento institucional vai uma grande distância. Portanto a questão do
Estado, ou da tomada do poder, não é uma constante nestas movimentações. E não
o é porque ainda não estão criadas as condições que levem a essa tomada de
posição.
Um outro conhecido
partidário dos movimentos, é um dos mais fecundos autores sobre as questões
relacionadas com os movimentos, interessado na experiencia boliviana da guerra
das águas e no piqueteros da Argentina e também com um especial interesse na
experiencia zapatista, Raul Zibechi. Zibechi não se deixando deslumbrar, como
Holloway, foca o conceito de dispersar o poder. Para Zibechi a questão é fugir
do estado, sair dele. A dispersão do poder realiza-se, segundo ele, de duas
formas: pela desarticulação da centralização estatal e por estruturas não
burocratizadas, assumidas pelo pluralismo de estruturas organizativas.
VIII - Todas estas
concepções são reveladoras de um único facto: a incompreensão do papel do
Estado. Nenhum destes conceitos operacionais (anti-poder e dispersar o poder)
compreende o Estado. O Estado é apenas, única e exclusivamente, um aparelho
repressivo, sendo por isso o seu domínio o mecanismo principal de poder. Todas
as restantes atribuições do Estado são apêndices dispensáveis, que poderão ser
cortados e entregues á iniciativa privada ou aos processos autogestionários, ou
às comunidades, ou às Igrejas, que qualquer uma destas identidades assume esse
papel. Agora, aquele que foi o germe do Estado, o elemento preponderante da sua
existência e que o faz assumir um papel central nos grandes períodos
revolucionários, é o germe repressivo, que só através dele é conseguido.
Um dos grandes
papéis dos movimentos e das autonomias sociais (as Zonas Autónomas) é exactamente
o de criar os mecanismos de administração pública e socializada dos bens e
serviços. É esta a sua grande virtude e este factor que o coloca na vanguarda.
Mas isto não é, de forma alguma, uma situação que ponha em causa o poder, ou
uma manifestação de anti-poder, nem uma fuga ao estado. Na Historia existiram
outras situações análogas. Nos séculos XVI e XVII, as zonas autónomas piratas e
as suas redes globais, por exemplo, representam uma experiencia histórica única
e de projecção global, baseada em assembleias e com muitos dos pressupostos que
hoje vemos nos movimentos sociais da América Latina. Mas foram facilmente
esmagadas pela burguesia e pelas frotas das monarquias europeias, quando estas
acharam que as utopias piratas faziam perigar o comércio e os interesses das
Companhias Comerciais. E porque foram facilmente esmagadas? Porque não
aproveitaram o seu posicionamento no mundo e porque não olharam para o fulcro
da questão: o poder e a tomada do aparelho repressivo do estado, ou seja do
Estado.
Noutra realidade
espacial e temporal tivemos a experiencia dos Conselhos Operários, por exemplo.
Em países como a Itália, nas zonas industriais de Milão e Turim eles foram
determinantes, assim como por toda a Europa industrial. Foi um movimento de
classe, de natureza operária, que fez tremer toda a Europa burguesa industrial
nos anos vinte do século passado. Mas, exactamente porque a questão do poder
foi protelada e porque no seu interior surgiram correntes deslumbradas com a
vitalidade operária (os comunistas dos conselhos), o Estado burguês, quando
chegou o momento crucial, em que a burguesia industrial já não podia suportar a
pressão operária, fez varrer os conselhos, através de uma vaga repressiva de
tal intensidade que muitos dos seus militantes permaneceram na cadeia (os muito
poucos que sobreviveram ás condições das cadeias fascista italianas, Gramsci
acabou por morrer na cadeia, por exemplo) durante 30 anos, só saindo depois do
final da II Guerra Mundial.
Portanto esta é uma
questão fundamental, mas que, tanto Zibechi, como Holloway, não a colocam
devidamente, porque interpretam erradamente as dinâmicas sociais e não fazem a
devida análise histórica comparada de processos similares, ocorridos em
diferentes realidades espaciais.
IX - As alternativas só
serão sólidas com a tomada do poder. Apenas a utilização do aparelho de Estado
(mesmo que seja para o destruturar e extingui-lo a medio prazo) é a única forma
de assegurar as autonomias e as conquistas efectuadas pelos movimentos, frente
á barbárie capitalista e ao imperialismo. Até á tomada do aparelho de Estado
tudo permanece em risco de ser extinto, como aconteceu em todos os períodos
históricos nas mais diversas realidades espaciais.
Teorias e conceitos
como os de Holloway, Negri e Zibachi são absolutamente ineficazes face ao
imperialismo e á forma pouco subtil e cavalheiresca como o capitalismo age nas
periferias. O capitalismo não se assusta com os importantes experimentos das
mobilizações sociais e dos movimentos, quanto muito fica alerta e prepara a contraofensiva.
A agenda imperialista não é alterada pelos fortes movimentos que reclamam a
soberania dos recursos e proclamam uma efectiva soberania nacional e popular.
Recolhe informações, analisa e processa os dados e aguarda, paciente, pela
altura própria de agir.
X - Como coordenar (e
federar), então, a multiplicidade de espaços alternativos e autónomos para
preservá-los do rolo compressor do capitalismo? (Também aqui as realidades
históricas de outras latitudes - como por exemplo os debates iniciados na
Europa do século XIX entre Proudhon, Marx e Bakunine, ou os problemas que se
apresentaram aos Communards de Paris - podem apontar pistas). Como tomar o
poder sem ser tomado pelo poder (porque é essa a questão e não a metafisica do
anti-poder e da dispersão)? Como construir formas de poder popular articuladas
de forma a proceder a uma socialização da produção, para lá da estatização
burocrática? Como efectuar a difícil transição que leva os poderes
constituintes a tornarem-se poderes constituídos? E quais os métodos de
articulação entre os espaços de deliberação e os de decisão?
Algumas destas
questões são respondidas pela praxis dos movimentos, outras são questões para
as quais ainda não têm resposta e outras ainda não os afectam. Todas estas questões
(e outras que aqui não foram levantadas) não se referem á realização imediata
do outro mundo possível, mas ao seu começo.
XI - Uma estratégia de
transformação de raiz estende-se durante um macro ciclo de longo prazo. É um
caminho longo…
A diversidade das
experiencias demonstra a ampla riqueza das prácticas emancipadoras em curso na
América Latina. Nesta diversidade os movimentos sociais explanam a questão do
procedimento democrático (a democracia directa), a apropriação dos recursos e a
socialização da produção. O que faz a força do panorama actual latino-americano
é o facto das denúncias da alienação capitalista e os processos comunitários de
emancipação estão conectados á crítica social e ambiental do capitalismo,
através dos seus movimentos populares.
Há que ir além da
ideologia e mergulhar na experiencia histórica. E acima de tudo, não esquecer
que o importante é transformar o mundo (para que o mundo ainda não transformado
não nos transforme…).
(Torino, Março de
2013)
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