Diogo Pombo –
jornal i
O dinheiro é pouco
para tanta procura nas três cantinas sociais que o i visitou em Lisboa. As
barrigas com fome vão aparecendo mas o governo só financia até 100 refeições
Bastava a conversa
ser há três anos e Mário nunca o diria. O emprego na construção civil, os dois
mil euros de salário, a casa partilhada com os filhos e a mulher, em
Portalegre, perdeu-os quando uma depressão o apanhou, empurrando-o para o
comboio do desemprego. Hoje ainda passa os dias com esta boleia indesejada,
porém, tudo junto não chega para ser o mais árduo desafio que teve de enfrentar
nos 52 anos que já leva contados. "Das coisas mais difíceis que tive de
fazer na vida foi chegar aqui", confessa, quando fala do momento em que,
"há quase três anos", bateu pela primeira vez à porta da cantina
social de Alcântara, em Lisboa.
Mas não foi ele a
fazer o pedido no centro paroquial. "Nem isso fui capaz de fazer",
confessa Mário, já conformado por ter recorrido "a intermediários, que o
tiveram de convencer" a ser hoje um exemplo de quem fintou o obstáculo que
se agiganta mais do que a própria fome - a vergonha. É com ela que centenas de
pessoas vão espreitando nos 111 refeitórios da capital, desde que o dinheiro
começou a ser tão pouco que já nem para comer chega.
Nunca o chega a
dizer, mas Mário não esconde o quão difícil foi superar o que sentiu por ser
uma entre as 70 pessoas que, desde Agosto, todos os dias, à mesma hora,
aparecem em Alcântara para recolherem a sua única refeição diária. "Não
foi fácil conseguir vir para cá", tenta explicar. Nos outros, contudo,
"não tem dúvidas nenhumas": a vergonha impede "muitas
pessoas" de "darem o passo" para procurar ajuda nas cantinas
sociais da cidade.
Mário tinha
"uma boa vida", e não foi o desemprego ou o divórcio a desmoroná-la.
"Foi a saúde", conta, quando percebeu que "alguma coisa estava a
falhar" no seu corpo. Era o início do caminho rumo à depressão "de
bater no fundo", de "chegar a pensar que nunca mais recuperaria as
faculdades". Culpa de "factores orgânicos que a gente não
domina", diz, lembrando as palavras dos médicos que lhe diagnosticaram
"um problema de andrologia". Entre "o começar a sentir, a
aceitar e a curar", foram três os anos em que a depressão o manteve
"desmotivado e fechado".
Já desempregado
veio para Lisboa, com 178 euros no bolso de Rendimento Social de Inserção. Os
400 euros de renda da casa paga-os a Santa Casa, além dos remédios que a
hipertensão lhe exige. Nada lhe sobra, seja para comer ou para ajudar no curso
de enfermagem da filha: "Não lhe dei um único tostão porque não
tenho." Com três anos já passados a comer na cantina, Mário parece ser a
excepção no vaivém diário de pessoas nos três de refeitórios que o i visitou -
muita gente nem há um ano começou a frequentá-los.
Em Alcântara, uma
mesa estreita e comprida, à entrada da sala da cantina, segura vários
recipientes e tupperwares. Por dia, são 70. Cada um guarda sopa, e só se
distinguem pelo nome inscrito nas tampas. Um deles está lá sempre desde
Setembro de 2012, entre as 14h30 e as 17h, à espera de Amélia. Aos 42 anos não
lhe "faz diferença" quem a "vê ou deixa de ver" e, por
isso, não há dia em que não apareça para levantar a sua refeição. Em Janeiro
fica sem os 329 euros de subsídio da Santa Casa, um sustento, o único, que
"é curto" mas "tem de chegar" para as despesas de todos os
meses. E chega desde que ficou desempregada e sem dinheiro para colocar comida
na mesa nem para a filha de 3 anos. Vergonha nunca a teve, embora "todos
os dias" veja pessoas "capazes de andarem aí no lixo" em vez de
"virem aqui". A cantina tem seis pessoas em lista de espera.
"Nunca dizemos que não", garante Isabel Brito, a directora, hoje
obrigada, porém, a pedir que os novos requerentes "esperem algum tempo".
O centro "não tem capacidade para mais", lamenta, e não é por falta
de procura.
Na Rua Voz do
Operário, na Graça, as pessoas aparecem até mais do que o suposto. "A sopa
dos pobres regressou, só que mais grave ainda", desabafa Vítor Agostinho.
"Está a piorar de mês para mês", avisa o director da Sociedade de
Instrução e Beneficência, ao contar, por alto, os dez 'nãos' com que é
"obrigado" a responder, por semana, aos que procuram ajuda. O
refeitório tem quase 40 pessoas em lista de espera, além das 10 que apoia sem
ajuda do Instituto da Segurança Social - que subsidia um máximo de 100
refeições por instituição, a 2,5 euros cada.
Às 11h surgem as
primeiras pessoas na sala de espera. Às 12h30 já se contam mais de 30 quando
sobem as escadas em direcção ao pátio, último espaço a separá-las da cozinha.
Atravessam-no camuflados pelos berros, pontapés na bola e correrias crianças
que por lá brincam, durante o intervalo da escola. À entrada da cozinha
depositam os sacos, lado a lado, sem etiquetas ou nomes. Ana Garcia não precisa
de auxiliares de memória. Os 40 anos a colocar, dentro de maletas, tudo o que
sai da cozinha é tempo suficiente para decorar o que pertence a quem. "Há
sacos que levam dez almoços de uma vez, uns três e outros seis", conforme
o agregado familiar onde sabe que serão esvaziados.
Nesse dia os
recipientes enchem-se de canja, arroz de aves, fruta e pão. Os sacos esperam à
porta. Rosa Pinto e Isabel Campos são das primeiras a deixar os seus. Por lá
ficam também, à espera que Ana grite o seu nome. Vieram juntas, tal como o
fizeram em Novembro de 2012, quando a vida impôs que procurassem aqui auxílio.
"Cheguei e entrei logo, venho cá de segunda a sexta", conta Rosa. Ao
fim-de-semana não há refeitório, e aí tem de "comprar comida" para si
e para o filho, "há 15 anos desempregado". Por isso, aos 68 anos, vai
"contando bem" cada um dos 256 euros da sua reforma, que tem de
esticar para a "água, luz e a bilha de gás". O que sobra tem de
chegar para os 33 euros de renda da casa.
Isabel também
"nunca falta". É uma "pessoa doente", há uns anos
"[rebentou-lhe] uma veia na cabeça" e agora tem de "ter cuidado
com os nervos". Isso e guardar 20 euros na carteira para "os dois
medicamentos" que necessita. Os médicos, diz, acusam-na de "só olhar
para os outros em vez de olhar para si". Os números explicam-no: a reforma
de 230 euros não chega sequer para pagar a renda de 300, mas isso não a impede,
"quando pode", de ajudar quem "lhe dá pena". Isabel admite
"comer pouco", e assim justifica "os pedaços" que dá sempre
que pode a pessoas que "vê deitadas na rua". Há seis meses foi a vez
de Alberto Baptista. Sem cantina ao fim-de-semana, filtra com os olhos as
prateleiras dos supermercados em busca de "coisinhas baratas, como
salsichas e enlatados" que não roubem demasiado à sua pensão de "200
e poucos euros".
Alberto fala de
tudo sem hesitar. No Centro Paroquial do Restelo isso nem sempre acontece, e o
trio de excepções entre as 50 refeições (só 40 financiadas pela segurança
social) que Eugénia Bual serve diariamente confiram-no. Ou será a vergonha?
"É um bocado", aceita a directora, ao revelar "os três almoços
servidos um pouco antes" das 12h30. A hora marca o início da invasão. As
bocas são tão rápidas a ocupar lugar à mesa como a deixá-lo vago, e 45 minutos
chegam para fechar o serviço. "Vêm cheios de pressa, é uma questão de
vício, parece que estão a fugir de qualquer coisa", suspeita Eugénia. A
cantina funciona numa antiga casa: a cozinha apertada e as duas salas a
precisar de mais espaço denunciam-no. Na entrada há caixotes com legumes,
fruta, cereais ou enlatados do Banco Alimentar".
Nas paredes
encostam-se arcas frigoríficas, tapadas por panos e a servir de mesa para
tachos e panelas que servem a ementa do dia: sopa e bacalhau. Aqui o
"ritmo" é acelerado, e no meio da pressa só Jorge pára por segundos.
Aos 46 anos, vem aqui acudir o estômago. Estava cheio de fome e encontrou a
cantina "por casualidade", em Maio. Desde então que vive na rua, sem
pensões, subsídios ou rendimentos. Quando encontrar um emprego, já tem um
objectivo - retribuir a ajuda "espectacular" que recebe, e juntar-se
às cinco voluntárias do Restelo.
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