Rui
Peralta, Luanda
I
- Segundo revelou, nos últimos dias de 2013, o Washington Post, a CIA, na
Colômbia, tem um plano secreto para eliminação de altos responsáveis das Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército Popular (FARC-EP). Nestas
operações a CIA conta com a colaboração da NSA e o programa é subsidiado por um
fundo de dezenas de milhares de milhões de USD. Graças a este programa (e ao
“orçamento assassino”) já foram eliminados 24 guerrilheiros.
Iniciado
durante a administração Bush, o programa foi reforçado pela administração
Obama. As operações homicidas consistem na eliminação física de comandantes e
responsáveis operacionais das FARC-EP, utilizando “bombas inteligentes”, que
processam as leituras dos dados de GPS, indicativos das posições dos
guerrilheiros, antes de estilhaçarem os corpos dos seus alvos. No programa em
curso estão previstas operações fora do território colombiano, tendo já sido
efectuada uma acção de eliminação física no Equador, em 2008, que provocou a
morte do comandante Raul Reys. Recentemente, o ministro colombiano da Defesa,
Juan Carlos Pinzón, negou que existisse algum programa entre as autoridades
colombianas e as agências norte-americanas, mas que “no passado foram
efectuadas acções conjuntas, para enfraquecer a capacidade operativa dos
terroristas”.
As
palavras do ministro da Defesa encobrem os factos. Em 2000 a Colômbia vivia uma
espiral de violência. A guerrilha iniciara uma ofensiva sem precedentes, as
milícias paramilitares de extrema-direita (financiadas pelo governo
oligárquico) participavam com o Exército colombiano em “operações de limpeza”,
nas zonas rurais e nas províncias mais afectadas pela acção da guerrilha, o
exército. Nas cidades, a polícia e as milícias fascistas assassinavam e
torturavam os que eram considerados simpatizantes da guerrilha, sindicalistas,
militantes de partidos de esquerda e activistas dos direitos humanos e o país
atingia um recorde mundial de homicídios, quando a estes assassinatos
juntava-se a violência entre os bandos de narcotraficantes. Nesse ano foi
iniciado, pelos USA, o Plano Colômbia, um programa militar não classificado,
orçamentado em largas centenas de milhares de milhões de USD, destinados a ajuda
militar, reequipamento e treino do Exército Colombiano e dos Serviços de
Inteligência, com o objectivo de combater o “narco-terrorismo” das FARC.
Em
2003, três norte-americanos, funcionários de uma companhia privada de
segurança, que realizavam ações de suporte á DEA nas plantações de coca, foram
aprisionados pelas FARC. O governo norte-americano enviou uma equipa da CIA com
a finalidade de os encontrar. Com o desenrolar das buscas foi criado um centro
que fundia as agências norte-americanas (a CIA, a NSA e as agencias ligadas á
Força Aérea, Exército e Marinha) e os serviços colombianos de Segurança do
Estado. Resolvida a situação com a libertação (em troca por prisioneiros das
FARC, que estavam nas prisões militares colombianas), a “task force” continuou
a trabalhar. Foi enviado um chefe de missão (da US Air Force) que redefiniu o
orçamento da força e iniciou as operações de assassinato de responsáveis da
guerrilha.
As
operações iniciaram-se depois de analisados os perímetros de segurança dos
comandantes das FARC. Os norte-americanos descobriram que estes perímetros
estendiam-se por largas milhas para além das bases de guerrilha, o que
dificultava a tarefa de eliminação física e de captura dos responsáveis. Para
contornarem este problema, os norte-americanos optaram por colocar em
funcionamento um sistema de deteccção aérea, experimentada anteriormente no
Iraque (durante a 1º invasão) e mais tarde, no Afeganistão, que servia para
detectar bombas e combatentes. Na Colômbia o sistema foi utilizado para guiar
as denominadas “smart bombs, às quais foi acoplada uma antena, que seguia as
coordenadas do GPS, guiando-as até o seu destino.
Demorou
algum tempo até que o projecto obtivesse luz verde da Casa Branca. Não por
questões relacionadas com os direitos humanos, ou com preocupações relativas ao
facto da oligarquia colombiana não respeitar estes direitos e praticar a
tortura, o homicídio e o rapto de oposicionistas, sindicalistas e outros
activistas. Nada disso. Apenas porque os responsáveis dos USA não “confiavam”
nos governantes colombianos e não queriam ceder o código de encriptação do
sinal de satélite GPS para as “smart bombs”. Durante três anos, até 2006, os
norte-americanos não forneceram os códigos aos colombianos, realizando
sozinhos, as operações de execução física. Finalmente a “confiança” foi
estabelecida e os códigos foram partilhados com os serviços de inteligência
colombianos.
O
resultado desta colaboração foi verificado em 2008, com o assassinato do
comandante Raul Reys, no Equador. Os serviços secretos colombianos tinham
efectuado, desde 2005, um excelente trabalho de infiltração, penetrando com
relativa facilidade nas bases da guerrilha, como recrutas. Foi devido a um dos
infiltrados que Raul Reys foi detectado no Equador, nas margens do rio
Putumayo, na região fronteiriça entre os dois países.
O
ataque em território equatoriano foi objecto de discussão entre os USA e os
colombianos. Ficou decidido usar o argumento da autodefesa (depois dos USA
terem debatido com os colombianos as argumentações utilizadas na “guerra contra
o terrorismo” postas em práctica após o 11 de Setembro de 2001, cuja base
consiste: “se um outro país está dando refugio a terroristas, ou é incapaz de
os impedir de utilizar o seu território, deverá ser punido – ou auxiliado –
sendo legitima a agressão ou incursão a efectuar”). Os colombianos conseguiram
fazer prevalecer o argumento da autodefesa, baseando-se no facto das FARC
atacarem a Colômbia, o que daria, hipoteticamente, legitimidade a este Estado
de efectuar a acção no estado vizinho. Foi assim que uma chuva de misseis caiu
sobre o refúgio de Reys, no Equador, eliminando-o e á sua segurança e
comitiva.
Claro
que tudo isto causou uma disputa diplomática entre o Equador e a Colômbia. O
Equador acusou a Colômbia de violar as leis internacionais, ao bombardear o seu
território. A Venezuela acusou a Colômbia de ser um estado terrorista e a
Nicarágua cortou relações diplomáticas com os colombianos. O presidente
colombiano – Uribe, na época – cedeu às pressões internacionais e pediu
desculpas, o que irritou, levemente, os USA que esgrimiram de imediato o
argumento da autodefesa (há quem aponte que esta “irritação” dos USA esteve na
base da queda de Uribe).
A
continuidade da cooperação entre as agências norte-americanas e os serviços
secretos colombianos levou á criação de uma estrutura norte-americana
denominada “Bunker”. Esta estrutura funciona na embaixada dos USA em Bogotá e é
exclusiva das agências norte-americanas: CIA, NSA, NGIA (National Geospatial
Intelligence Agency) e a DEA. A coordenação com os serviços secretos
colombianos é realizada fora do Bunker, embora estes pertencem á estrutura,
assim como a MOSSAD israelita (estrutura essencial em termos de formação dos
quadros colombianos e na aplicação das tecnologias de vigilância, deteccção e
segurança.
Esta
estrutura foi transposta para outros países, no âmbito da “guerra contra o
terrorismo” e encontra-se estruturas organizacionais similares no Iraque,
Afeganistão, Paquistão, Somália, Iémen e México (esta ultima é uma estrutura
recente e aparece com um papel reforçado da DEA). Mantém o mesmo perfil: as
agências norte-americanas (CIA e NSA) na base e no controlo de toda a estrutura
e a coordenação com os serviços locais. Naturalmente que no mundo islâmico não entra
operacionalmente o papel da MOSSAD (no México os israelitas surgem na formação
e treino dos serviços mexicanos e na implementação das tecnologias de
segurança. Também os colombianos marcam presença neste país na colaboração com
os serviços mexicanos).
Foi
a partir do orçamento do Plano Colômbia que se criou sustentabilidade para
programas complementares (como este do Bunker). Seja como for, tanto o
orçamento do Plano Colômbia, como dos planos complementares, foram escondidos
da opinião pública norte-americana. Para que não acontecessem os escândalos da
década de 80 (as guerras secretas dos USA na Nicarágua, Honduras e El
Salvador), o Congresso norte-americano não atribui qualquer verba para
participação em operações no estrangeiro, às forças armadas dos USA. Como o
Pentágono não está a financiar estas operações (uma vez que o Congresso não
atribuiu quaisquer verbas), os financiamentos só poderão surgir através da NSA
e da CIA, ou seja, do Departamento de Estado.
Moraliza-se
o financiamento para justificar o crime.
II
- Mas a vida politica colombiana não é só feita de casos de espionagem,
ingerências, agressões e teorias da conspiração (tudo factores que se
desenrolam nos cenários e nos bastidores da guerra de classes). Tem também as
tricas, as intrigas e as armadilhas inerentes a uma sociedade dominada por uma
oligarquia, que sofre a pressão de uma nova elite emergente, que para afirmar
as suas pretensões e o seu domínio, necessita da democratização da vida
politica colombiana.
Vejamos
o caso que envolve o mayor de Bogotá, Gustavo Petro. No início deste mês de
Janeiro, Alexandro Ordõnez, Inspetor-geral do Estado Colombiano, nomeado pelo
Senado, anunciou que o mayor Petro teria de abandonar o cargo, por alegada má
gestão no assunto do lixo. Os apoiantes de Petro (um ex-guerrilheiro do M-19)
argumentam que Petro está a ser vítima de um “golpe da extrema-direita” e
dezenas de milhares deles ocuparam as ruas de Bogotá.
O
M-19 foi uma força de guerrilha, que durante mais de duas décadas participou na
luta armada, através de acções de guerrilha urbana e nas frentes das áreas
rurais. Assinou os acordos que conduziram às eleições para a Assembleia
Nacional Constitucional, em 1991. O quadro constitucional iniciado em 1991
revelou-se uma farsa e desembocou numa das fases mais corruptas da História da
governação na Colômbia. As milícias paramilitares de extrema-direita tomaram
conta das operações e através do assassínio, do rapto e da tortura silenciaram
activistas, sindicalistas e militantes de forças de esquerda, enquanto
camuflaram as exportações de cocaína para os USA.
Petro
foi um dos legisladores que denunciou estas e outras situações. Apontou o dedo
aos seus colegas parlamentares que ordenaram massacres e apontou as relações
existentes entre os traficantes de droga, as milícias, o presidente e o governo
e os funcionários públicos corruptos. O presidente Uribe (o chefe das milícias
paramilitares da extrema-direita) acusou-o, em 2007, de ser “um terrorista á
civil, disfarçado de deputado!”. O ódio de Uribe foi continuado pelo
inspector-geral Ordõnez, um antigo apoiante de Uribe e um actual opositor ao
processo de paz e às negociações com as FARC. Petro não é acusado de corrupção,
nem de conduta criminal, mas de “má gestão”.
Vejamos
o objectivo desta acusação. Bogotá é a maior cidade do país, Petro tem um
passado de resistente e é um dos líderes da esquerda colombiana. Ou seja
Bogotá, a maior cidade do país, é governada pela esquerda. Começam aqui as
preocupações de Ordõnez, o santo inquisidor do não menos santo ofício da “caça
às bruxas”. Por outro lado Petro foi um dos principais negociadores do M-19,
quando das negociações com o governo colombiano (já lá vão 24 anos). Estando o
governo actualmente em negociações com as FARC (o que permitirá ás FARC participarem
na politica colombiana, eleger deputados, responsáveis autárquicos, etc.),
Ordõnez (ou melhor os seus donos, os oligarcas que vivem das comissões do
narcotráfico, dos latifúndios e da corrupção generalizada) transmite, desta
forma, um aviso às FARC: mesmo que vocês elejam representantes, mesmo que
vençam eleições, nós (a oligarquia) temos a faca e o queijo na mão (o Senado) e
podemos impedi-los de exercerem os cargos.”
A
9 de Dezembro dezenas de milhares de apoiantes do mayor Petro manifestaram-se
na Plaza Bolivar, no centro da cidade, ocupando esse espaço durante cinco dias.
A Guardia Indigena, uma milícia das comunidades indígenas do sul da Colômbia
fez-se presente no apoio a Petro, manifestando-se com os seus bastões de
madeira. Os sindicatos, as associações de Direitos Humanos e as forças
políticas de esquerda foram para a Plaza apoiar Petro. Mesmo os sectores que se
opõem a Petro mostram-se preocupados com a arbitrariedade dos
inspectores-gerais (se a indiciação for avante, Petro ficará afastado de
qualquer cargo público durante 15 anos), iniciando um debate que percorre todos
os sectores da sociedade colombiana (inclusive o Congresso) sobre a
legitimidade do Senado em nomear inspectores-gerais que depõem eleitos pelo
povo. Alguns argumentam que se a Colômbia ratificou a Convenção Americana Para
os Direitos do Homem tem de cumprir com os dos procedimentos indicados na
Convenção que impede que qualquer responsável público eleito apenas pode ser
removido pelo tribunal competente.
Com
este argumento na bagagem, o mayor de Bogotá viajou a Washington e aí reuniu-se
com membros do Congresso dos USA, do Departamento de Estado e da Comissão
Interamericana dos Direitos Humanos, órgão responsável pela implementação da
Convenção Americana Para os Direitos Humanos, onde obteve diversos apoios e
conseguiu, provisoriamente, a suspensão da decisão do inspector-geral. Enquanto
a Comissão Interamericana decide os próximos passos legais a dar, o Comité
Colombiano para os Direitos Humanos, uma comissão do US Office na Colômbia,
reúne com ministros, congressistas e senadores colombianos, no sentido de
discutir a legalidade dos inspectores-gerais, depois do país ter ratificado a
Convenção.
Estranhos
desígnios, os dos USA. Nos palcos internacionais utilizam os Direitos Humanos
para combater eventuais ilegitimidades enquanto no terreno utilizam carniceiros
para eliminarem os representantes desses mesmos direitos.
III
- Enquanto as negociações entre as FARC e o governo colombiano prosseguem e a
saga de Petro ameaça fazer correr muita tinta, Mikhail Kalashnikov, o criador
da mais popular arma de fogo do mundo, morreu, aos 94 anos de idade. A
Kalashnikov (AK-47) tornou-se uma das armas mais usadas (estima-se que sejam
cerca de 100 milhões, espalhadas pelo mundo). A simplicidade desta arma, a sua
fácil manutenção e os seus baixos custos de produção foram factores que levaram
ao seu sucesso. Mas foram estes os factores que a transformaram na arma mais
utilizada pelos movimentos de libertação nacional e pelas guerrilhas populares (caso
da Colômbia).
Em
1942, durante a II Guerra Mundial, Mikhail Kalashnikov (que cresceu no Sul da
Sibéria) era comandante de uma unidade de tanques do Exército Vermelho da URSS,
quando foi gravemente ferido. Enquanto recuperava dos ferimentos, tomou conhecimento
de que Estaline estava a analisar projectos de armas portáteis (espingardas,
metralhadoras e revolveres) para equiparem o Exército Vermelho Soviético.
Apresentou o seu projecto (delineado no hospital onde recuperava dos
ferimentos) e Estaline gostou da proposta. Cinco anos depois, em 1947, a AK-47
foi introduzida no Exército Vermelho e em 1950 tornou-se a arma padrão dos
Exércitos da URSS e dos países do Pacto de Varsóvia. Numa entrevista concedida
á BBC, Mikhail Kalashnikov referiu que criou a AK-47 para defender as
fronteiras da URSS e não para ganhar popularidade ou ser rico (e de facto
sempre fugiu da popularidade e nunca foi rico).
Vietname,
Cuba, Iraque, Egipto, Argélia, Síria, foram governos que adoptaram esta arma,
nos anos 60, assim como os movimentos de libertação nacional no continente
africano ou as guerrilhas sul-americanas, asiáticas e do Medio Oriente (e as
guerrilhas urbanas na Europa, USA e no Japão. A AK- 47 foi utilizada pelas
Brigadas Vermelhas, Itália, Facção do Exército Vermelho da Alemanha – vulgo
Baader Meinhof – e do Japão, pela ETA, IRA e pelos Panteras Negras nos USA). A
AK-47 está presente na bandeira de Moçambique, por exemplo, em honra do
movimento de libertação nacional e das guerrilhas conduzidas pela FRELIMO e é,
em vários países, um símbolo das longas lutas travada pelos povos contra
opressão colonial. No Vietname, durante a guerra, os soldados norte-americanos
preferiam-nas às M16, que encravavam constantemente. Na década de 90 a ONU
efectuou um relatório onde era referido que dos 49 conflitos observados pela
ONU (na época) a AK-47 estava presente em 46.
Quando
Mikhail Kalashnikov fez 85 anos, Putin homenageou-o com um jantar, em Moscovo.
Nesse jantar estava presente uma delegação norte-americana em representação da
National Rifle Association, NRA, que tornou o general Kalashnikov membro
honorário da Associação. Morreu nove anos depois. Assistiu á importância que a
sua arma teve na construção de Estados e na transformação do mundo em curso.
Nunca abandonou a ideia de que a AK-47 foi concebida para a defesa de
soberanias e nunca quis sair da Rússia.
Que
descanse em Paz, pois foi em Paz que se esforçou por viver.
IV
- O mundo é composto por contradições (motor da mudança). Se a Colômbia procura
um acordo de paz, o Japão procura readquirir a soberania perdida após a sua
derrota na II Guerra Mundial e busca construir um exército. E avança neste
sentido no mesmo dia em que Mikhail Kalashnikov morreu. O primeiro-ministro
japonês Abe Shinzo, responsável do Partido Democrático-Liberal, é um conhecido
“falcão”, conservador, adepto da política nuclear e um nacionalista convicto
(de liberal o homem tem muito pouco e de democrata é daqueles que fica-se pelas
eleições). Em Dezembro passado prestou homenagem aos soldados japoneses caídos
durante a II Guerra Mundial - inclusive aos criminosos de guerra julgados pelo
Tribunal Militar Internacional, estabelecido no pós-guerra – e recusa-se
comentar as atrocidades cometidas pelo exército japonês na China e na Coreia.
Eleito
em Dezembro de 2012, Abe Shinzo iniciou um programa de reformas económicas e
politicas (estas ultimas ao nível da política externa nipónica e da política de
segurança) para além de lançar uma campanha pela revisão constitucional, em
particular do artigo 9, que impede o país de assumir a soberania nacional, ao
restringir o sistema de defesa do Japão, impossibilitando a organização do
exército japonês, reduzido a uma força de autodefesa. O discurso de Abe na
homenagem aos soldados japoneses foi comedido e não ultrapassou os limites do
razoável, é certo. Mas não foi o suficiente para evitar os comentários da
Coreia do Sul e da China. Aliás o comentário do porta-voz chinês, um tal Qin
Gang, foram - ao contrário do discurso de Shinzo, que evitou os chavões
nacionalistas - demagógicos e fizeram sorrir os mais atentos quando referiu que
“alguns políticos japoneses, por um lado, falam de democracia, liberdade e paz
e por outro lado, promovem o militarismo e embelezam a agressão japonesa e a
história da colonização. Isto é uma blasfémia contra a democracia, a liberdade
e a paz (…) O Japão sofrerá as consequências.
É,
no mínimo, curioso que, quando o assunto é o Japão, a China - que sempre usa um
discurso externo carregado de boas intenções - apenas consegue manter uma
relação baseada na realidade imposta pelo imperialismo norte-americano. A China
só aceita um Japão desmilitarizado, de soberania nacional amputada, um Japão
obrigado a ouvir a toda a hora e a todo o instante os crimes perpetrados pelos
fascistas japoneses que conduziram o país á catástrofe. A China pretende apenas
um Japão que sirva para os mandarins vermelhos de Pequim descarregarem bonitas
frases nacionalistas e recordarem o tempo em que o PC Chinês conduzia a luta de
libertação contra o Japão, ou exercerem pressão sobre as ilhotas nipónicas,
quando lhes dá ataques de histeria ultranacionalista (que caracteriza o
discurso dos leaders chineses desde a década de 60, a fase do Mao “maoista”) e
xenófoba.
É evidente que as intenções de Abe não são as
de readquirir soberania nacional. Abe necessita de tocar nesse assunto porque a
economia japonesa precisa de um exército como de pão para a boca. E a elite
chinesa sabe disto. E sabe, também, que se as restrições á criação de uma força
militar japonesa caírem, a economia japonesa beneficiará de um fôlego
imprescindível, que colocará o país numa linha directa de competição nos
mercados mundiais, principalmente nos sectores da industria de segurança e na
industria militar, o que entra em choque com os planos da elite chinesa, que
está a lucrar em grande escala com estes sectores e não se apresenta disposta á
concorrência japonesa (uma concorrência séria, que poderá comprometer os planos
chineses, ao nível da concepção de produto).
O
Pacifico é hoje o “mare mostram” do Capital e por isso torna-se uma zona
sensível onde se desenrolam processos extremamente dinâmicos. Mas estes
processos não são, primordialmente, de origem apenas geoestratégica ou apenas
geopolítica. São de um novo tipo: geoeconómicos. É esta a realidade do Pacifico
e é nesta esfera que as movimentações no (e em torno do) Pacifico se irão
desenvolver. Por isso as declarações de Caroline Kennedy, a embaixadora dos USA
em Tóquio: "We support the evolution of Japan’s security policies, as they
create a new national security strategy(…)”. Neste sentido o discurso chinês e
as demonstrações de força dos chineses valem tanto como as declarações
insalubres da embaixadora dos USA no Japão: são conversas de accionistas. A sua
exuberância é apenas para consumo interno (assim como aquela máxima do
marketing: “o que é nacional é bom”. Palavras de mercador, levadas pelo vento).
Mas
esta realidade geoeconómica não esconde a “shock doctrine” que se desenvolve,
silenciosamente, em Tóquio. No passado mês de Dezembro (um ano depois da eleição
de Shinzo), dois anos depois do grande terramoto, do tsunami e do acidente
nuclear, o parlamento nipónico aprovou a lei de segredo de estado. Este é,
efectivamente, um passo preocupante. O país, apos a sequência de tragedias em
2011, vive num clima de insegurança e de ansiedade. Estes acontecimentos fazem
lembrar um passado recente na História do país. Em 1923 Tóquio foi destruída
por um sismo de grande intensidade. Em 1925 é promulgada uma “lei de
preservação da paz”, que proibia as manifestações e instalava a censura sobre
assuntos considerados de “interesse nacional”. Alguns meses depois de promulgar
a lei, o país viu-se perante a brutalidade da ditadura militar e do estado
policial e os povos vizinhos passaram a conhecer a agressividade do fascismo
nipónico.
Estes fantasmas percorrem o imaginário dos
japoneses e dos povos vizinhos. Para uns e para outros é um exercício de
memória. Que se espera não ser curta…
Fontes
Murillo.
Mario Colombia and the United States: War, Unrest, and Destabilization. Hofstra
University Press, Long Island, New York, 2012
Hartung,
William Prophets of War: Lockheed Martin and the Making of the
Military-Industrial Complex. CIP.2013
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