Catarina Moura - Público
Com
a presença de poucos populares, Sophia de Mello Breyner Andresen é a décima
primeira figura nacional a ser sepultada na Igreja de Santa Engrácia.
À
saída da Capela do Rato, em Lisboa, às seis da tarde, não estavam muitas
pessoas para receber Sophia de Mello Breyner Andresen, que saía dali para
Panteão Nacional, onde fica agora por decisão unânime da Assembleia da
República, em
Fevereiro. Uma charrete com flores brancas esperava pela
saída da urna coberta pela bandeira nacional e algumas pessoas foram parando
curiosas com o aparato: batedores, carros oficiais e guarda de honra da Guarda
Nacional Republicana (GNR), fotógrafos e câmaras de televisão par acompanhar a
poeta.
Quando
a urna sai da capela, onde decorreu uma cerimónia privada dirigida pelo
patriarca de Lisboa, Manuel Clemente, e pelo padre e poeta Tolentino de
Mendonça, então alguém se apercebe do que se passa e corre entre os transeuntes
o nome de Sophia. Depois de passar o carro puxado a cavalos da GNR toda a gente
dispersa, o que voltaria a acontecer mais tarde, no pátio exterior do Panteão
Nacional durante a cerimónia com honras de Estado em que Cavaco Silva ,
Assunção Esteves e Pedro Passos Coelho assinaram o Termo de Sepultura.
Na
homília privada onde estiveram presentes os familiares e figuras como
o ensaísta Eduardo Lourenço, a ex-deputada Maria Barroso Soares, o presidente
da Fundação Calouste Gulbenkian, Artur Santos Silva, ou o advogado José Miguel
Júdice, o tema escolhido por Manuel Clemente foi “a pureza de coração”.
Sophia de Mello Breyner “unia muito bem a aspiração religiosa com a consciência
política”, disse aos jornalistas o patriarca, lembrando as vigílias contra a
ditadura e a guerra colonial em que a poeta participou em 1972, promovidas por
um grupo de católicos progressistas de que fazia parte.
“A
Sophia tem uma poética da luz e da transparência”, disse à saída desta
cerimónia Tolentino de Mendonça, acrescentando que esta entrada no Panteão
frisa que “não há povo sem cultura” e a que a poesia é desde sempre “uma das
formas de arte mais persistentes e de todos, o que Sophia de Mello Breyner
protagoniza”.
Este
lado de inconformismo e de universalidade da poeta, cuja morte fez ontem dez
anos, foi lembrado por diversas vezes já na cerimónia no Panteão, às sete da
tarde, onde estiveram presentes filhos e netos e as mais altas figuras de
Estado, assim como representantes de todos os partidos com assento
parlamentar.
Perto
do pátio reservado aos convidados, algumas dezenas de pessoas foram parando e
assistindo aos discursos de Cavaco Silva, Assunção Esteves e o escritor José
Manuel dos Santos, que lançou a ideia desta trasladação num artigo assinado no
PÚBLICO em 2013.
Na
cerimónia, o escritor lembrou a poeta como “a voz” que ainda hoje “diz o que é
preciso ser dito”, num tempo que, como o era o de Sophia, é “um tempo subjugado
e entregue à ameaça”. Palavras que continuam ainda hoje necessárias, disse José
Manuel dos Santos, antes de citar Sophia: “Não somos apenas animais
acossados na luta pela sobrevivência, mas somos, por direito natural, herdeiros
da liberdade e da dignidade do ser”.
O
génio literário de Sophia de Mello Breyner foi sempre referido, dando-se
destaque à sua “cidadania exemplar”, como disse Cavaco, e à sua presença nos
principais momentos da democracia portuguesa: “Vemo-la em Abril, celebrando o
dia inicial do 'acordo livre e justo'. Vemo-la à porta de Caxias, cravos na mão
mais certa entre todas as mãos. Vemo-la no Parlamento, protagonista da nossa
Constituição fundadora”, lembrou Assunção Esteves.
Ramalho
Eanes, antigo presidente da República, destacou aos jornalistas a ideia de
“dignidade essencial do Homem” que Sophia defendia. “Ela di-lo de uma maneira
extremamente bonita em verso, mas fá-lo na vida através da acção cívica e
politica, através da relação quotidiana com as pessoas”, disse.
Guilherme
de Oliveira Martins, presidente do Tibunal de Contas, não esquece “a
participação de Sophia na Assembleia Constituinte, a trabalhar em temas
fundamentais como a cultura, a defesa do património, mas também a educação para
todos”. Oliveira Martins, que é presidente do Centro Nacional de Cultura,
sucedendo à poeta que também ocupou este cargo, disse ainda que “a presença nas
escolas da obra de Sophia é algo de fundamental”.
Na
cerimónia, os discursos foram intervalados pela actuação da Companhia Nacional
de Bailado – executou duetos do Lago dos Cisnes e de Orpheu e
Eurídice –, pelo Coro do Teatro Nacional São Carlos que cantou o Magnificatde
Bach e por uma gravação de 1957 em que a poeta lê poemas como Dia ouSoneto
à Maneira de Camões. Nos três discursos, citou-se a mesma frase de Sophia:
“Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o
espantoso sofrimento do mundo”.
“Fez
da sua memória um símbolo colectivo, mas nunca foi uma figura de regime”, disse
José Manuel dos Santos, para quem “a poesia de Sophia torna impossível a sua
apropriação” – o que parece rimar com a imagem da Bandeira Nacional a
esvoaçar com o vento por várias vezes à porta do Panteão e a revelar
uma urna lisa e simples.
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