Martinho Júnior,
Luanda
A passagem do Che
por África deve ser relembrada por todos os povos africanos, pelos povos de
todo o mundo, por que marca a ânsia de libertação das nações surgidas da rota
dos escravos e da colonização do continente, como marca a aspiração à adopção
duma lógica com sentido de vida, em alternativa à lógica do capitalismo, com
todo o seu cortejo de desequilíbrios, assimetrias, injustiças, tensões,
conflitos e guerras.
A 9 de Outubro de
2012 assinala-se a data do assassinato do Che na Bolívia, relembrando-se seus
feitos, sua memória e sobretudo o seu legado que é tão expressivo no presente.
Che revive onde a
luta contra a opressão não terminou, onde se constrói a paz e o socialismo,
onde se aprofunda a democracia em proveito de mais cidadania, mais participação
e mais justiça social.
Che revive na
América Latina como em África, como ainda em todo o mundo, agora muito em
particular, quando a crise do capitalismo faz com que uma aristocracia
financeira mundial surgida principalmente com a Revolução Industrial, se impõe
de forma tão brutal e hegemónica, de forma tão desprezível para com a
humanidade e o próprio planeta.
Che acabou de
reviver nas últimas eleições na Venezuela Bolivariana…
Eis o texto
publicado no Página Um (Zip, Zip nº 44), no início de Junho de 2010, quando o
Congo perfazia 50 anos de independência.
Nota prévia:
Junho de 2010 é o
mês que a República Democrática do Congo completará 50 anos de “independência”
melhor, a continuação do “pacto colonial” mediante uma contínua ingerência e a
fabricação de agentes capazes de “construir” os “jogos africanos” da
conveniência do que considero “aristocracia financeira mundial”, uma casta de
banqueiros e industriais colocados “acima” da “vontade” das potências,
instrumentalizadas todas elas em proveito dos seus interesses.
Por isso vou
recordar ao longo dos próximos ZIP ZIP e em retrospectiva, os textos que foram
publicados no desaparecido semanário “ACTUAL” de Luanda, que são o resultado
das minhas pesquisas sobre o Congo após 30 de Junho de 1960 e de acordo com uma
lógica que nada tem a ver com a do capitalismo, mas procuram ser fieis à linha
de pensamento de Patrice Lumumba, do Che, de Amilcar Cabral, de Agostinho Neto,
de Tomas Sankara, de Laurent Kabila…
A história
contemporânea do Congo interessa a toda a África e à humanidade, mas
particularmente a Angola pois a evolução da situação nos dois países foi-se
sempre inter-relacionando e inter-influenciando.
No momento em que o
capitalismo neo liberal alastra em África, a história transporta elementos
preciosos de análise sobre a continuidade do “pacto colonial” após as “independências”.
Os textos vou
reproduzir mantendo tanto quanto possível a redacção original e sem notas em
rodapé.
O CHE NO LESTE DO
CONGO, EM 1965
Pierre Mulele envia
Mitoudidi para o leste a fim de cooperar com as acções naquela Região; é
Mitoudidi que fez a ligação a Ernesto Che Guevara em 1965 e assumia os encargos
de chefia por parte dos congoleses, até o dia em que apareceu afogado, no lago
Tanganika.
Apesar disso, antes
da chegada dos internacionalistas cubanos, a rebelião avançou em 1964 o
suficiente para pôr em risco a coligação congolesa formada pelo trio Kasavubu –
Tshombé – Mobutu que procurava neutralizar a iniciativa da oposição armada, o
que alarmou os Estados Unidos.
Esses avanços, se
bem que com ganhos nos territórios tomados, parece terem resultado em alguma
deficiência de análise por parte de Che Guevara pois “a posteriori” ele próprio
teve a oportunidade de verificar que, para além da informação chegar muitas
vezes de forma fragmentada e atrasada, era exagerada no que dizia respeito à
capacidade, efectivo e vantagens militares das forças rebeldes e não dava
indicativos sobre a sua indisciplina e desorganização.
A 11 de Dezembro de
1964 na Assembleia Geral da ONU Che referia :
“Os Povos de África
são forçados a suportar duma forma veladamente oficializada, a superioridade
duma raça sobre outra e que hajam assassinatos, em nome dessa superioridade.
As Nações Unidas
não vão fazer nada para o impedir?
Quero
particularmente referir o doloroso caso do Congo, um caso único na história
mundial, que demonstra como se podem lesar os direitos dos povos, com a mais
absoluta das impunidades e com o cinismo mais insolente.
As imensas riquezas
que o Congo possui, que as Nações Imperialistas querem conservar sob seu
controlo, são as razões directas e a filosofia da pilhagem não acabou.
Ela tornou-se mesmo
ainda mais forte que nunca e é por causa disso que utilizaram o nome das Nações
Unidas para perpetrar o assassinato de Lumumba, tal como o assassinato de
milhares de congoleses em nome da raça branca.
Como poderemos nós
esquecer a maneira como foi traída a esperança que trouxe Patrice Lumumba às
Nações Unidas?
É necessário vingar
o crime do Congo. Um animal carniceiro que devora os povos sem defesa , eis o
que caracteriza os brancos do Império”.
A administração de
Lyndon Johnson decidira a partir precisamente do final de 1964, perante a
crescente gravidade da situação do seu campo, mobilizar mercenários (“voluntários
especiais”) para travar o avanço rebelde em direcção de Leopoldville, uma vez
que as tropas congolesas de Mobutu se iam tornando, sozinhas, manifestamente
incapazes de o fazer.
A 11 de Abril de
1965 Che chegou incógnito à capital Tanzaniana, acompanhado de Victor Dreke e
de José Martinez Tamayo, onde constatou desde logo algumas das debilidades das
direcções que compunham os movimentos progressistas africanos.
Quase todos os
lideres residiam em Dar es Salam, “comodamente instalados em hotéis e fazendo
de sua própria situação uma autêntica profissão, uma ocupação por vezes
lucrativa e quase sempre cómoda” (segundo os apontamentos do próprio Che).
Combatentes cubanos
seleccionados, todos eles negros, foram-se juntando a Che, que em África assumia
a identidade de “Tatu”, utilizando diversas vias desde Cuba, chegando um
primeiro grupo com 14 guerrilheiros a 20 de Abril.
É com esse grupo
que Che faz a viagem de 1800 km entre Dar es Salam e a fronteira com o Congo,
que atravessa a 22 de Abril de 1965, durante a noite, em travessia do lago
Tanganika e instalando-se alguns dias em Kigoma, uma cidade ainda longe do “front”
e onde as condições de vida eram, para os dirigentes rebeldes, similares às de
Dar es Salam.
Che Guevara,
esperando a ligação de Laurent Kabila, sai de Kigoma e instala-se na base de
Kibamba, onde inicia a formação militar de algumas unidades congoleses e onde
os cubanos passaram a receber aulas de francês e kiswaili.
Enquanto espera
Laurent Kabila, Che começou a exercer medicina nas comunidades rurais próximas
e em benefício dos guerrilheiros congoleses, fazendo desse ofício uma fonte
inesgotável de informações sobre o modo de vida das pessoas, apercebendo-se
rapidamente da tendência da fermentação de tensões entre as comunidades congolesas
e as comunidades originárias do Ruanda.
A 2 de Maio chegou
um segundo grupo de 18 Cubanos e daí em diante outros grupos se foram sucedendo
de forma escalonada, engrossando a Coluna Um até chegarem a um efectivo de 120
homens que se espalhou pelas localidades de Bendera (onde existia uma central
eléctrica), Front de Force e Fizi-Baraka.
Durante esse
período, enquanto continuavam à espera da chegada de Laurent Kabila para dar
início a acções mais amplas, os cubanos foram-se apercebendo das dissenções entre
as várias tendências rebeldes e é nessa altura que chega Léonard Mitoudidi
enviado por Pierre Mulele, que impõe imediatamente mais disciplina ao campo
militar de Kibamba, proibindo o uso do álcool e suprimindo a distribuição
incontrolada de armas e de munições.
A essa altura Che
já havia constatado que não havia um comando unificado, muito menos quadros com
um nível cultural apropriado e de absoluta fidelidade, estando as poucas armas
pesadas dispersas, sem um plano de acção estratégico para seu uso, constatando-se
uma ausência gritante de disciplina até por que as unidades não haviam recebido
treino militar mínimo.
A 23 de Junho,
tendo-se juntado aos cubanos o comandante de origem ruandesa de nome Mundandi
(que havia recebido preparação militar na China), a partir de Front de Force os
efectivos prepararam o ataque à central eléctrica que se situava no rio Kimbi,
que veio a ocorrer pelas 5 horas da manhã de 29.
Apesar da surpresa
da iniciativa, os efectivos ruandeses demonstraram fragilidade, abandonando
pouco a pouco a frente de ataque, deixando os cubanos sozinhos e a enfrentar o
fogo de barragem da artilharia de campanha instalada pelas forças
governamentais à volta da barragem.
O ataque à caserna
de Katenga, realizado em simultâneo pelos Cubanos e efectivos Congoleses, não
trouxe também melhores resultados, com um elevado número de deserções antes
mesmo da acção de fogo ter começado.
A operação redundou
por conseguinte num completo fiasco, registando-se a morte de 4 Cubanos e de
pelo menos 14 Ruandeses, entre eles o irmão de Mundandi e a desmoralização dos
efectivos cubanos comandados por Che, verificada a incapacidade dos combatentes
rebeldes , tendo como rescaldo a mútua acusação entre congoleses e ruandeses
pela responsabilidade do desaire.
Só a 7 de Julho se
dá a chegada de Laurent Kabila acompanhado de Massengo ao campo militar de
Kimbamba e, apesar de ter dado boas indicações a Che mostrando inclusive
capacidade de mando sobre os efectivos e populações, cinco dias depois regressa
a Kigoma a pretexto de se ir encontrar com Soumaliot, (iniciando de facto o seu
regresso à Tanzânia, o que desgostou o próprio Che).
A 23 de Julho um
efectivo de 25 cubanos e 25 ruandeses realizaram uma emboscada a um comboio de
logística do Exército Congolês com pleno êxito, mas os ruandeses embebedaram-se
com as bebidas apreendidas e o seu próprio comandante, completamente ébrio,
matou um camponês tratando-o de espião, o que desagradou profundamente a Che.
A 11 de Agosto de
1965 entretanto, na reunião do Conselho Nacional de Segurança em Washington, o
então chefe da CIA , John McCone, informara mesmo assim que o regime instalado
em Leopoldville estava em perigo pelo que seria necessário enviar um socorro
ainda mais importante em defesa dos interesses americanos no País e a única
solução que encontraram foi o recrutamento e envio de mercenários com uma
importante dotação em equipamentos e armamentos, entre eles 4 aviões Hércules
C-130 (para transporte de tropas e logística), e aviões de combate B-26 e T-28,
que seriam tripulados por cubanos recrutados em Miami.
A rebelião, feita
por grupos muito heterogéneos, sem instituições experimentadas e politicamente
fortes, por vezes minada por tensões de ordem étnica e pessoal, tornava-se já
nessa altura insustentável.
Da parte da
rebelião minada pelas dissenções (o assassinato de Lumumba decapitou de facto o
incipiente movimento de libertação, retirando a única autoridade que se impunha
no universo político Congolês), o que não acontecia da parte da coligação
governamental que cada vez mais conseguia inventariar as posições rebeldes, o
que fazia aumentar os riscos sobre Che e o efectivo internacionalista cubano.
No final de Agosto
é desencadeada pela CIA e Pentágono a “Operação Ommerang” que resulta na
recaptura paulatina das localidades do leste em mãos rebeldes.
Ao mesmo tempo que
em Setembro os mercenários tomam Baraka e Fizi e em Outubro Lubonjo, Lulimba,
Front de Force e Kabimba, o presidente Kasavubu decretou o fim do “mandato transitório”
de Tshombé, colocando no seu lugar Evariste Kimba, que formou um “Governo de
Reconciliação Nacional”.
Para muitos
rebeldes, com a destituição de Tshombé, deixava de haver razão para se manterem
em pé de guerra pois aquele que era apontado como o assassino de Patrice
Lumumba era posto não só fora do governo mas voltava para o seu exílio no
exterior.
As forças que se
empenharam na libertação do Congo decompunham-se e Kasavubu, na reunião de
chefes de estado da OUA, em Acra , obtinha vantagens políticas com a decisão
favorável sobre a proposta de saída do Congo de todas as forças estrangeiras
dum lado e do outro do “front”, pelo que o próprio presidente da Tanzânia,
Julius Nyerere, pediu aos internacionalistas cubanos para se retirarem.
Para Ernesto Che
Guevara, conforme a carta de despedida que havia antes de partir para África
endereçado a Fidel, “outras terras do Mundo reclamam o concurso dos meus
modestos esforços (…) Deixo um povo que me adoptou como um filho ; uma parte do
meu espírito é – lhe dedicado. Sobre os campos de batalha eu empenharei (…) o
espírito revolucionário do meu povo, a sensação de cumprir com o mais sagrado
dos deveres: lutar contra o imperialismo, onde quer que ele seja (…) Repito que
retiro a Cuba toda a responsabilidade, salvo a inspiração do seu exemplo”.
Para a recaptura de
Stanleyville e Paulis, onde existiam várias centenas de europeus de
nacionalidade belga, os Estados Unidos e a Bélgica decidiram fazer actuar directamente
as suas próprias forças, sob o pretexto de realizar a operação humanitária de
evacuar os seus nacionais.
Os Estados Unidos
empenharam a sua aviação e os Belgas forneceram unidades de páraquedistas no
quadro da convencionada “Operação Dragão Vermelho” desencadeada de 24 a 27 de
Novembro de 1965.
É sensivelmente
nessa altura a 21 de Novembro que a Coluna Um do Che decide sair do Congo pela
mesma via por onde entrara, o lago Tanganika, até por que os contactos com os
lumumbistas no interior do Congo se tornaram praticamente impossíveis, tal como
com o grupo pessoalmente liderado por Pierre Mulele que continuou a actuar no
interior e em 1966 estava localizado a leste do curso do Cassai, conforme foi
noticiado pelo primeiro número da revista “Tricontinental”.
Os contactos dos
Cubanos com Pierre Mulele passaram para os encargos da Coluna Dois, a partir de
Brazzaville.
A 9 de Outubro de
1967 Che morreria assassinado na pequena escola primária de la Higuera, na
Bolívia, para onde dera continuidade à sua saga internacionalista no seguimento
da sua passagem por África.
O que interessa
reter passa pela lição de quanto a aristocracia financeira Mundial, quer
através das políticas das potências (neste caso essencialmente os Estados
Unidos, a Bélgica e a França), quer através das multinacionais disponíveis
(principalmente aquelas encarregues da exploração dos minérios de que o Congo é
fértil) se mantinha interessada no agravamento das condições de rapina das
riquezas naturais do continente africano em função do crescimento económico que
se foi sucedendo à revolução industrial, sem melhores soluções para os povos de
África.
A curta passagem
pelo poder de John F. Kennedy foi insuficiente para se rectificarem as
políticas externas dos Estados Unidos em relação a África, pelo menos enquanto
durou a Guerra Fria, pelo que o nacionalismo africano foi irremediavelmente
submerso pelas políticas neo coloniais, ou enveredou pelo movimento de
libertação, única garantia de se dar continuidade à justa aspiração de
liberdade, igualdade, emancipação e independência.
Nota: Este artigo,
conforme gravura, foi publicado a 3 de Janeiro de 2004 no semanário “ACTUAL” Nº
378. Página Um – 6 de
Junho de 2010 / Página Global – 9 de Outubro de 2012
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