quarta-feira, 25 de março de 2015

O ANO DA GRANDE VIRAGEM PARA ANGOLA – III



Martinho Júnior, Luanda (inclui textos anteriores deste título)

11 – O compêndio histórico “1961 – Memória dum ano decisivo” expõe “elementos adicionais” em relação ao arrolar do amplo ambiente que possibilitou o início da Luta armada em Angola e, com isso o “empertigamento” do Movimento de Libertação em África: a derrota da colonização portuguesa na Índia, assim como o papel daqueles que perfilhavam a descolonização em África a partir do “foco de Goa”.

Julgo que isso redunda de vários factores, entre eles a relevância que deve ser dada ao facto da história a que se reporta escrupulosamente a ATD, ter sido tão amplamente investigada a partir do sul, algo que não se limita como é óbvio à posição geográfica.

Por outro lado, a psicologia da revolução contra o colonialismo, é bastante conhecida por causa dos contributos de entidades latino americanas ao nível duma autoridade no assunto como Frantz Fanon, mas tem mais dificuldade em perceber os fluxos de carga filosófica, ideológica e psicológica que na época sopraram com tanta “substância” a partir de Angola, como de outras colónias portuguesas e como da Índia!

Assim é que, logo depois de se reportar às datas decisivas de 1961, assim como aos respectivos acontecimentos, o compêndio histórico aborda o carácter e o papel da “Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portuguesas”, CONCP, para terminar com um depoimento único, o do general e patriota angolano Benigno Vieira Lopes, “Ingo”, ele próprio desertor das Forças Armadas Portuguesas na Índia na altura crítica do fim da presença portuguesa e um elemento activo contra o colonialismo nessa situação (não um mero observador presente “no terreno”)!

O factor afro-asiático preenche de certo modo todo o peso, a leste, do argumento “Tricontinental”, que ao reflectir-se na CONCP também se reflectia nos primeiros protagonistas da Luta de Libertação em Angola!

Estes “elementos adicionais”, para quem queira evidenciar o impulso internacional favorável à Luta de Libertação em África, não são acessórios, fazem isso sim parte da essência desse ambiente!
  
12 – Do depoimento por escrito sobre o carácter afro-asiático da CONCP, de Jonuel Gonçalves, há um aspecto inequívoco em reforço da legitimidade da luta armada nos termos da Luta de Libertação em África:

…“Além de Aquino de Bragança, esteve na reunião fundadora em Casablanca, Pundlik Gaitonde, dirigente do ramo goês do Congresso Nacional Indiano, na verdade o homem de Nehru para Goa.

Em meados de 1961 participei com ele em palestras e debates no Brasil (onde cheguei pouco antes) sobre a luta nas colónias portuguesas e, embora minha idade na altura não facilitasse conversas aprofundadas com as lideranças políticas, Gaitonde referiu-me várias vezes a importância atribuída na Índia à CONCP e que a libertação de Goa seria uma forma de apoio às demais lutas.

Fiquei na altura com a impressão que as intervenções de Gaitonde naquelas palestras e as viagens que fazia, visavam colocar à opinião internacional que a irredutibilidade salazarista tornavam o satiahgra (resistência pacífica) impossível e que a Índia podia ser obrigada a recorrer à força”…

É evidente que uma conclusão-decisão dessas, vinda de Nehru, assumia o contraditório duma forma que não era esperada pelo próprio Estado Novo, que se reflectia não só em relação à Índia, mas também em relação a África, factor que passou a ser entendido pelos países africanos independentes e foi influente no apoio à formação das organizações angolanas empenhadas na Luta, ao ponto de ser possível o apoio na formação do potencial guerrilheiro dessas organizações!

Foi também importante no âmbito do Não Alinhamento activo “Tricontinental”, que se assumiu com energia num enorme espaço físico-geográfico próprio, a sul!
  
13 – O Estado Novo, na sua teimosa persistência colonial, estimulou os contraditórios internos e externos, algo que escapava aos conceitos de contra-insurreição e os limitava ao ponto de, com eles apenas ser possível prolongar-se “in extremis” a sua vida, mantendo o seu carácter até o dia que a avalanche de contraditórios o submergisse!

Quero dizer com isso, que abriu todo um imenso processo dialéctico, que escapava à visão estruturalista dos que preconizaram os conceitos de contra subversão, eles próprios sustentáculos da irredutibilidade do poder colonial.

O caso do Estado Novo com a Índia foi a primeira contradição com fortes factores externos que foi vencida em prejuízo do Estado Novo, que se viria a reflectir no contexto da CONCP em África e chegou mesmo a comportar a experiência única de contraditórios, ao nível de patriotas angolanos como os camaradas Joaquim Domingos Augusto, “Valódia” e Benigno Vieira Lopes, “Ingo”.

Qualquer um deles esteve na Índia integrando as forças coloniais portuguesas, mas a trajectória do camarada “Ingo” coincidiu com os acontecimentos que rapidamente resolveram a questão: a tomada de Goa, Damão e Diu, pelas Forças Armadas Indianas, em apenas algumas horas.

O camarada “Valódia” fazia parte de duas das Companhias do Batalhão Indígena Angolano que se haviam revoltado contra as autoridades coloniais portuguesas e por isso foram evacuadas, voltando compulsivamente a Angola.

Quando o camarada “Ingo” chegou, já essas duas Companhias não estavam presentes, o que não o impediu de entrar em contacto com uma célula clandestina do Partido Democrático de Goa, de forma a passar documentação militar para o exterior, documentação essa que serviu como uma das fontes para as Forças Armadas Indianas passarem à acção da tomada do território, uma acção que durou apenas 14 horas.

Essa célula estava infiltrada por um agente da PIDE e, antes da invasão, o camarada “Ingo” foi identificado e preso, em Junho de 1961.

Com a tomada do território, os indianos conseguiram saber do seu paradeiro, propiciar-lhe asilo político temporário que chegou ao fim por que, por via dum advogado, João Cabral, o camarada“Ingo” conseguiu contacto com o CONCP e daí com o Comité Director do MPLA, com o camarada Matias Miguéis, que abriu a oportunidade do seu encaminhamento para Marrocos, a fim de integrar treinos de guerrilha.

14 – O compêndio histórico produzido pela ATD, não esgota as questões que se prendem aos factores contraditórios que a posição irredutível do Estado Novo criou, mas enumera e explica muitos exemplos de dignidade, que são expressão humana do ambiente excepcional que se viveu em 1961 e nos anos que se lhe seguiram.

Foi esse o húmus do Movimento de Libertação em África, que se abre à possibilidade da lógica com sentido de vida, por que desse modo, perante os desafios múltiplos que se impõem, em grande parte desafios que redundam das épocas de escravatura e colonialismo, há imensos resgates a realizar, integrados no amplo projecto de Luta contra o subdesenvolvimento crónico que advém do passado.

Angola e todos os países que viveram a saga da Luta de Libertação Nacional, são pois países com rumo, pois há torrentes históricas únicas que foram desencadeadas (1961 é disso referência), fortalecem as profundas convicções do presente e conferem imensas capacidades e energias que se prolongarão pelo futuro.

Não será tudo isso uma oportunidade para o Renascimento Africano?
  
*Foto recolhida do compêndio “1961 – Memória dum ano decisivo” – Campo de Marnia /Argélia (julho de 1963). 
Discurso de boas-vindas aos Delegados por Maati Bouabid (Presidente do Conselho Municipal de Casablanca). 
Na mesa, da esquerda para a direita: Pacoal Luvualu (UNTA, escondido por M. Bouaid), Maati Bouaid, Mário de Andrade (MPLA), Pandik Gaitonde (Congresso Nacional de Goa), Marcelino dos Santos (UDENAMO) e Aristides Pereira (PAIC). 
(In Conférence des Organisations Nationalistes des Colonies Portugaises: Casalanca, 18-20 avril 1961).

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