Miguel
Guedes – Jornal de Notícias, opinião
Destruindo
o mito da eternidade, hoje termina o ciclo político mais bem alimentado no
Portugal que se assomou democrático após o 25 de Abril. Um longo caminho com
mais de 41 anos, quatro décadas de contos infantis, elaborados com carinho,
sobre o inferno da Esquerda unida que - com comunistas ou revolucionários no
poder ou perto dele - não tardaria a comer crianças ao pequeno-almoço no
primeiro vislumbre dos amanhãs que cantam numa praça de touros perto de si.
Termina a agonia da imutabilidade do arco da governação e dos seus intérpretes
residentes. O ciclo político do "bicho-papão" comunista acaba hoje.
Como
é obvio, o mito do "bicho-papão" só poderia acabar com a Esquerda
unida. Unida por incidência e no poder por consequência, decorrentemente e
contra a deriva mais neoliberal de que há memória num PSD que, de tanto se
encostar a Portas, acabou por fechar as portas da percepção de que poderiam
seguir juntos sem que a Esquerda finalmente se unisse. Acende-se o fogo.
Sente-se que para muitos dos "irrevogáveis", não pode haver uma união
boa que não uma união à Direita, por mais fraca, cínica ou circunstancial que
possa ser a sua génese ou exercício. Uma questão de honra que confundem com
carácter. Ou de tradição, dirão os conservadores-cristãos. Uma verdadeira união
à Esquerda não é possível nem equacionável por aqueles que sempre defenderam a
superioridade moral da Direita para gerar entendimentos. Só com a mão direita
se podiam assinar acordos, plásticos ou de ferro, sendo que todos valiam se o
negócio fosse estrategicamente sólido. Para esses, a Esquerda esteve sempre
condenada à fatalidade da desinteligência, até porque a história até
sustentava, em parte, esse discurso sectário. Também por isso, este é um dia em
que a democracia faz história. A Direita descobre, no Parlamento, que é nesta
casa que as famílias da Esquerda se entendem. A Direita assusta-se porque
dentro da casa nunca concebeu este conceito de família.
Embora
alguns se finjam despercebidos, todos já perceberam que não há acordos menores
por se revestirem de incidência parlamentar. Importante é que sejam sustentados
por verdadeira vontade política exercida no tempo. E basta ter memória,
relembrando o primeiro acordo de incidência parlamentar que... a Direita rompeu
em 1978. Acabou célere esse meio ano de mãos dadas entre o PS e CDS. Quando Sá
Carneiro aliciou Freitas de Amaral para a Aliança Democrática, deixando Mário
Soares na mão de Ramalho Eanes, a circunstância fez o seu percurso. Se em 1978
era a democracia a funcionar, já em 2015 é a Direita a abanar; se antes era a
normalidade, agora é a fatalidade. Uma questão de carácter, sobranceria e
esquecimento histórico. No passado, pela mão daqueles que nos dias de hoje
anunciam as diferenças entre PS/BE/PCP como uma desgraça antecipada e moribunda
no prazo de um ou dois anos, seis meses foram mais do que suficientes para
sepultar o primeiro acordo de incidência parlamentar da nossa história
democrática.
A
estabilidade e o rigor, palavras na ordem do dia agitadas pela Direita que
passará à Oposição. Porque pouco do que existe é eterno, não se poderá saber
com rigor quanto pode durar um Governo de maioria relativa do PS com um acordo
de incidência parlamentar do BE e PCP, como não se soube com rigor como
resistiu a estabilidade de um Governo de maioria absoluta do PSD/CDS com o
"irrevogável" Paulo Portas. Sabe-se que, tendo em conta a competência
técnica das negociações à Esquerda, cada dia terá sido válido e vincado o
acordo, fortalecido, até à sua conclusão. Porque pouco do que existe é eterno,
ao mesmo tempo que a Esquerda vai perdendo o seu preconceito moral de
superioridade cultural face à Direita, a Direita vai crescendo no seu complexo
imoral de superioridade económica face à Esquerda. Porque pouco do que existe é
eterno, talvez ainda sejamos testemunhas de um tempo em que a história contará
o conto de um bicho-papão neoliberal. Aquele que enfiou milhões sem fim numa
bolha especulativa, se alimentou de adultos por altura da ceia e promoveu a
delinquência nas mais altas esferas do sistema financeiro e político. As
crianças saberão o que foi o BPN. Em bom rigor.
O
autor escreve segundo a antiga ortografia
*Músico
e advogado
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