segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Portugal. O GOVERNO CEDEU E NÃO FOI POUCO



Paulo Baldaia –TSF, opinião

São os aliados do PS, PCP e Bloco, que dizem que o orçamento ficou pior do que o esboço. Dizem que as cedências são por culpa do PSD e CDS, mas a tese do ministro Mário Centeno é mais credível: "numa negociação só há vencedores".

O orçamento é agora pior do que era quando foi entregue em Bruxelas, diz o PCP e o Bloco. Também acho. Tem menos coerência, é menos de esquerda do que era, carrega nos impostos indirectos, como se eles não tivessem implicação no custo de vida de pobres e ricos.

Deixa cair uma bandeira socialista que fazia todo o sentido para um governo de esquerda, mesmo que nunca tivesse tido o apoio entusiástico do PCP e do Bloco, que era a descida da TSU para trabalhadores que ganham menos de 600 euros. Estes são os trabalhadores, sempre nos lembrou o PS, que não ganhariam nada com o fim da sobretaxa. Estes são os trabalhadores para quem 10 ou 20 euros fazem a diferença.

Quem acreditou que era possível vergar Bruxelas argumenta agora que numa negociação ambas as partes têm de ceder. É verdade, mas isso foi o que sempre foi dito pelos que criticavam o irrealismo das contas e a impossibilidade de cumprir as regras, aumentando a despesa e diminuindo a receita.

Tudo começou com um esboço que agora é um orçamento. São ainda apenas contas num papel, compromissos que todos os anos os governos assumem e corrigem de acordo com a execução. O anterior governo conseguiu até a proeza de ter mais orçamentos rectificativos que orçamentos propriamente ditos. Depois de tudo o que a Comissão impôs ao documento que o PS entregou hoje no Parlamento, tendo a comissão feito também algumas cedências, o que fica para um futuro próximo é o recado de que haverá, por parte de Bruxelas, um "controlo ao detalhe", porque continua a haver um "risco de incumprimento".

Fica provado, como hoje disse o ministro Mário Centeno, que "há alternativa". Ainda bem. O pior que nos podia acontecer a todos, aos que gostam deste governo e aos que não gostam, é que tivesse ficado provado que existe uma ditadura de pensamento único. É possível mudar, aconselha-se prudência e uma execução profissional e sem falhas. No papel a alternativa é possível, mostrem agora na prática que a alternativa é melhor.

A PAZ POR OBRA DO NÃO ALINHAMENTO ACTIVO EM PLENO SÉCULO XXI – II



Martinho Júnior, Luanda 

1 – África tornou-se no continente onde se foram instalando, muito por poderosa ingerência compulsiva da ocupação colonial, as relações mais desestabilizadoras e desequilibradas que alguma vez foram experimentadas pela humanidade em parte alguma do globo e, em consequência traumatizante disso, são os africanos que polvilham ainda hoje a cauda dos sucessivos relatórios da ONU, referentes aos Índices de Desenvolvimento Humano.

Esse longo e complexo processo, durou séculos a fio, desarticulando as muito vulneráveis sociedades africanas, de tal forma que nem as independências vieram resolver as questões profundas desses contenciosos que se prendem entre outros, a factores de ordem histórica, antropológica e sócio-política, numa equação com os factores de ordem físico-geográfica-ambiental, que são também eles sujeitos às premissas impostas pelo domínio vindo de fora.

Em “O LABORATÓRIO AFRICOM” detalhamos alguns dos aproveitamentos nefastos alimentados pelo vigor neo colonial, realçando os aspectos que nutrem a disseminação do caos no continente africano, sem esgotar todavia o assunto. 

2 – Reverter a tendência da degradação, num quadro em que África é “um corpo inerte onde cada abutre vem depenicar o seu pedaço”, foi e é uma aspiração ciclópica e corrente por toda a África, mas também aí a subversão dos esforços tem deixado sua marca crítica, indefectível e dramática.

No momento em que os esforços mais ingentes e inteligentes se puderam concentrar nas organizações que compuseram o Movimento de Libertação em África, da Argélia à África do Sul, foram sendo disseminadas pelo poder dominante ocidental, organizações etno-nacionalistas com vista a consumir o oxigénio do Movimento de Libertação em África e assim intoxicar os esforços em prol das expectativas e esperanças de liberdade.

Isso funcionou durante décadas a fio e reflecte-se nas horas contemporâneas!

Foram precisamente Cuba Revolucionária e o MPLA que há 51 anos melhor puderam, em comum, perceber esse fenómeno e prepararem-se para lhe fazer frente, com intervenientes desde logo directamente implicados: Agostinho Neto, Ernesto Che Guevara e Laurent Kabila (1965), com seguidores muito atentos como foram e têm sido entre outros Jorge Risquet, José Eduardo dos Santos, Raul de Castro e Joseph Kabila, até aos nossos dias!

Do 4 de Fevereiro de 1961, a 2 de Janeiro de 1965, o MPLA começou a assumir a linha moderna que deu curso, à latitude sul do país, ao Movimento de Libertação em África, vindo a constituir de facto Angola numa “pedra angular” desse tão difícil processo.

O Programa Mínimo do MPLA foi realizado com sacrifícios enormes, perante o cruzar constante de obstáculos, riscos e ameaças, a 11 de Novembro de 1975 de boa memória, tão boa memória como aquele 4 de Fevereiro de 1961, mas subsiste o empolgante desafio de levar a cabo o Programa Maior, particularmente depois que a 4 de Abril de 2002 se calaram as armas!

3 – Finalmente, a partir de 4 de Abril de 2002, Angola conseguiu calar as armas, face a face à história, à antropologia, ao ambiente sócio-político “endógeno”, aos enormes desafios, obstáculos, riscos e ameaças que se deparam, alguns no rescaldo de velhos contenciosos, outros em função de impactos recentes, sobretudo gerados a partir do fim da Guerra Fria.

Por isso em Angola e nas regiões circundantes, o Não Alinhamento activo em pleno século XXI subsiste tendo como substância exigente o Programa Maior do MPLA, sem deixar de sua vinculação estar em jogo em concorrência democrática multipartidária com outras expressões sócio-políticas, algumas delas sequelas até de velhos etno-nacionalismos.

Quando o calar das armas foi alcançado as responsabilidades dos patriotas angolanos ganharam expressão em caminhos nunca antes experimentados, num quadro em que o Programa Maior passa obrigatoriamente por décadas de luta contra o subdesenvolvimento, em que a paz é vital para se semear à latitude angolana a espécie tão rara quanto frágil da árvore do renascimento africano.


4 – Angola assumiu a paz como um dos eixos essenciais de solução dos contenciosos internos numa atmosfera multipartidária e em plataformas externas pantanosas (como a RDC, os Grandes Lagos, ou o Golfo da Guiné…), que implicam, qualquer delas, a busca incessante de consensos por via do diálogo, do desarmamento, da recuperação de traumas que vêm de longe e de perto (traumas que atravessaram várias gerações), da construção e reconstrução de infra estruturas e estruturas, de inovadoras políticas de redistribuição da riqueza natural, de busca incessante de harmonia, equilíbrio e justiça social, fortalecendo as tónicas da educação, da saúde, da reorganização urbana e rural…

A construção da identidade nacional ainda não pôde vencer algumas questões básicas que se ligam à antropologia cultural, conforme testemunho corrente que se pode observar tanto nos ambientes urbanos e suburbanos, quanto nos imensos espaços rurais.

A luta contra o subdesenvolvimento requer paz para se poder levar a cabo atendendo aos seus múltiplos factores de que a cultura é, de facto, um factor de ponta em relação ao homem e tudo isso num ambiente sócio-político vinculado à construção duma complexa democracia multipartidária que tem início em processos representativos, mas que se abre também, cada vez mais, à possibilidade de participação.

5 – Nem todos os impactos da globalização redundam em factores construtivos, sobretudo os indexados a processos neo liberais digeridos pela hegemonia unipolar por via dos “mercados abertos” impostos pelos interesses e conveniências dominantes com “genes neo coloniais” e“transfronteiriços”.

O continente africano está afectado directa ou indirectamente por esses impactos “do Cabo ao Cairo”, isto é: nem a África do Sul se pode livrar deles, ou dos seus efeitos directos e indirectos!

É nesse ambiente de “areias movediças” que se mechem os pés ainda titubeantes da paz angolana e para tal os processos de inteligência são extraordinariamente críticos, por que sem ela é impossível levar a cabo a aplicação da lógica com sentido de vida em África no quadro duma tão complexa luta contra o subdesenvolvimento!

O relacionamento Angola-Cuba nesse processo, por via substancialmente dos reforços conseguidos no âmbito alargado e estratégico da “Operação Carlota”, alimenta as mais legítimas aspirações de luta contra o subdesenvolvimento num ambiente tão desfavorável, desde aquele longínquo 2 de Janeiro de 1965.

O exercício de paz que o Presidente José Eduardo dos Santos tem realizado dentro e fora das fronteiras do país e até no Conselho de Segurança da ONU, que acabou com a pena de morte, que desarmou, que desminou, que se abriu às mais diversas apreciações no âmbito dos direitos humanos basicamente garantidos já pelo Movimento de Libertação em África, que procura a todo o transe impulsionar sectores tão diversos que vão desde a educação, à saúde, ou os antigos combatentes e veteranos da pátria, à reinserção social, ao saneamento básico, à implantação de energias renováveis, à implantação de esforços em prol da água potável, à construção e reconstrução de infra estruturas e estruturas, à diversificação da economia… implica em amplas transformações sócio-culturais que conduzam em toda a profundidade à gestação duma consciência reflexiva humanizada e respeitadora da natureza e do ambiente, acima do padrão médio da mentalidade que permite a paz.

Há poucos dias no Conselho de Segurança da ONU a delegação angolana apresentou sua proposta de desarmamento nuclear global, tirando partido do que foi alcançado por África, continente livre de armas nucleares depois de ultrapassado o regime de “apartheid”…

É essa tremenda ousadia que merece ser garantida e cultivada acima de tudo, no quadro do Não Alinhamento activo em pleno século XXI, sabendo-se que há muitos ainda que terão dificuldade, inclusive em redundância dos seus estatutos sociais com reflexos sócio-políticos, em engrenar nessa capacidade que ultrapassa em muito as plataformas de mentalidade antes alcançadas.


6 – Se em termos antropológicos é tão crítico encontrarem-se soluções de luta contra o subdesenvolvimento, encontrar formulações geo estratégicas a partir da água interior, tendo em conta, no âmbito da equação físico-geográfico-ambiental com os factores humanos, que a matriz da água angolana está na região central das grandes nascentes, tem merecido um alheamento quase total e isso demonstra a hipervalorização que se tem dado ao que muitas vezes vem de fora e a comparativa subvalorização que se dá às capacidades internas do desenvolvimento sustentável, ainda que seja o futuro a muito longo prazo que esteja em jogo e com isso a garantia maior de inteligência e de consciência em prol da construção da identidade nacional.

A paz por si não resolve se factores humanos e factores físico-geográficos ambientais não forem tidos em conta na equação do seu inter-relacionamento (a fim de se consolidarem os processos de desenvolvimento sustentável, de programação e logística, bem como a mobilização de recursos de toda a ordem, sobretudo recursos humanos) e isso acaba por fragilizar as aspirações tão legítimas de Angola, inclusive no âmbito de suas manifestações externas!

A região central das grandes nascentes em Angola, além duma geo estratégia inteligente a muito longo prazo, garante à identidade angolana e aos patriotas encarar os problemas profundos com que se debate o continente africano olhos nos olhos!

A busca pela paz a sul do planeta, tem apesar de tudo mais pontos fortes na América Latina do que em África onde a disseminação do caos transfronteiriço está em curso pressionando as regiões mais sedentárias de ocupação humana do continente, as regiões de maior riqueza de água interior.

O papel de Cuba em relação à paz, é similar ao de Angola, cada um em seu continente: Cuba conseguiu dar guarida às conversações de paz em curso sobre a Colômbia, algo decisivo para as espectativas e as aspirações de luta contra o subdesenvolvimento na América!

Muito mais que diversificação económica, Angola precisa urgentemente de ser muito mais sensível aos profundos factores de ordem histórica, antropológica e sócio-política, equacionados com os factores físico-geográfico-ambientais, de forma a se determinar a sua própria trilha de desenvolvimento sustentável a muito longo prazo, num processo gerador de conhecimento, de inteligência, de consciência patriótica, de construção da identidade nacionl e de mobilização, tirando partido dos imensos potenciais do homem como da água interior, água que é vida!

Se assim não for, Angola terá dificuldades acrescidas também em relação à região fulcral dos Grandes Lagos e à RDC, sendo incapaz de sair dos parâmetros alcançados nos seus actuais esforços políticos-diplomáticos em prol da paz em África, um projecto condicionado pelas conjunturas manipuladas pelo AFRICOM e potências que pretendem neo colonizar África.

Assumo essa visão patriótica, ainda que ela tenha sido até agora tão subvalorizada!

Em saudação ao 4 de Fevereiro de 2016

Ilustrações e fotos 
- Mapa de África evidenciando-se as pressões humanas que existem sobre as regiões mais ricas de água e de biodiversidade; 
- Mapa de Angola colocando em destaque os Parques e Reservas Naturais: de todos eles só a Reserva Natural e Integral do Luando corresponde basicamente em relação às nascentes dos maiores rios angolanos, precisamente na região central do país, aquela que poderá algum dia servir para se lançar uma geo estratégia patriótica e vital, a ser exercida a muito longo prazo; 
- O Presidente José Eduardo dos Santos recebendo pela última vez Jorge Risquet (Risquet viria a falecer pouco tempo depois); 51 anos de identidade e aspirações comuns entre a Revolução Cubana e o MPLA, com toda a evidência nas aspirações de paz e desenvolvimento sustentável.

RACISMO EM PORTUGUÊS. NÃO PODIAM SER CHEFES. NÃO QUERIAM SER ESCRAVOS



JOANA GORJÃO HENRIQUES (texto, em São Tomé e Príncipe), DÁRIO PEQUENO PARAÍSO (retratos) e FREDERICO BATISTA (vídeo) - Público

São Tomé e Príncipe tem o peso de um tempo em que os casais mistos eram proibidos – homens negros a quem os pais brancos não quiseram dar o apelido, mulheres mestiças que viveram toda a vida amantizadas. A miscigenação fazia-se na clandestinidade.

Um dia, a mãe de Isaura Carvalho decidiu, à revelia dos avós, ir viver com o homem por quem se apaixonara. Ela, negra, era a única filha. O avô não queria que vivesse como amante de um português branco, destino mais que provável para um casal misto naquele tempo. Mas os pais de Isaura “bateram de frente” um no outro e apaixonaram-se. Nessa altura não era permitido socialmente em São Tomé e Príncipe um branco e uma negra casarem-se, constituírem família, deixarem descendência mestiça.

Isaura Carvalho (n. 1957) lembra-se das cartas que a avó portuguesa escrevia ao seu filho dizendo que “não queria uma preta na família”. Aos netos — ela, Isaura Carvalho, e os sete irmãos — a família paterna chamava “os mulatitos”. Havia até uma tia de Viseu que propôs ao pai de Isaura enviar uma das suas filhas para a “ensinar a ser costureira”. “A minha mãe esperneou”, lembra a historiadora e uma das fundadoras da Fundação Cacau, o mais dinâmico espaço cultural de São Tomé e Príncipe. Cada vez que chegava uma carta da metrópole, o pai de Isaura Carvalho tentava escondê-la para a mulher não perceber que ela, negra, “era sempre o objecto da rejeição”.

Viver com esta realidade não foi pacífico, conta: “Não percebia porque tinha de ser assim [, se todos os outros tinham famílias que se aceitavam].”

A mãe decidiu que não ia continuar a viver amantizada, como se dizia na altura. Quis, portanto, o estatuto de mulher casada — que acabou por conseguir, já Isaura Carvalho tinha uns “seis ou sete anos”. Afinal, a sua própria mãe já tinha vivido com esse estigma. “A minha avó não queria que a minha mãe passasse pelo mesmo. O meu avô não regressou a Portugal, vivia com a minha avó, mas nunca se quis casar. Deu a dignidade de uma esposa, mas não o papel — isso na altura era mesmo muito importante”, conta.

O avô foi administrador de uma roça e deixou de organizar eventos sociais porque a avó era negra e “não queria discriminá-la”. “Havia todas as proibições imaginadas. Em nova, a minha mãe quase não saía, [os meus avós] criaram uma redoma.” No final a redoma serviu para repetir a história familiar, e ela abandonaria a casa dos pais.

A família emigrou para Angola em 1964, justamente porque a mãe se queria distanciar: “Não havia muitos casais mistos — havia muitos mestiços, mas não casais. Estas famílias tinham de encontrar alguma protecção, a nossa foi sair de São Tomé e Príncipe.”

Ainda hoje a mãe de Isaura Carvalho não gosta de ir a São Tomé e Príncipe, vive em Lisboa. Isaura Carvalho regressou ao país depois da independência.

Muita da miscigenação em  São Tomé e Príncipe fez-se na clandestinidade. Manuel Jorge de Carvalho do Rio, 54 anos, director executivo da ONG Marapa, conviveu directamente com o choque racial durante a sua infância. A mãe era são-tomense e o pai português, branco, mestre-de-obras numa grande empresa agrícola. “Sentíamos o reflexo da raça. Havia escalões. Não gostavam que nós, filhos de branco, nos misturássemos com as sanzalas.”

Em  São Tomé e Príncipe, a mãe era a companheira não oficial do pai, português, branco. Tiveram cinco filhos. Oficialmente, o pai era casado com uma portuguesa, que vivia em Portugal com os outros filhos. “Isso prejudicou-nos, porque, como o meu pai era casado, não podia perfilhar os filhos cá, apesar de vivermos e convivermos com ele.”

Até morrer, o pai nunca deu apelido aos filhos são-tomenses, mesmo tendo-os educado durante a infância, mesmo tendo-lhes ensinado a ler e a escrever. Em 1975 houve o retorno dos portugueses que trabalharam nas roças e o pai de Jorge Rio foi um deles. “Se bem que houve alguns que ficaram na roça a trabalhar, mesmo na companhia de que fazíamos parte. Mas o meu pai tinha a sua família lá, cinco filhos em Portugal, portanto foi.”

Jorge teria 12 anos na altura. Levou-o ao porto, ao barco que partiu da ilha. Despediram-se, chorando. Nada podiam fazer. Manteve um contacto esporádico com o pai através de carta. Mas nunca mais se viram o resto da vida. Foi a mãe, sozinha, quem educou os cinco filhos. Mais tarde, já o pai tinha morrido, Jorge marcou viagem para Portugal. Foi ver a freguesia onde ele viveu, visitou a família portuguesa, que o recebeu, e aos irmãos são-tomenses, “muito bem”. Os irmãos portugueses “não atingiram os mesmos níveis” profissionais dos irmãos são-tomenses. “Sentimos também que a ausência do meu pai durante muito tempo prejudicou os filhos que estavam lá, não lhes conseguiu dar a formação que nos deu a nós.” Mas repete, magoado: “O grande mal é que o meu pai não nos podia reconhecer oficialmente como filhos, porque era casado — e nós não tínhamos culpa de ele ser casado. Isso foi uma marca que me deixou ferido. Ser gerado por um pai, conviver com ele, e não ser reconhecido... Até hoje não consigo engolir isso.”

Jorge e os irmãos conseguiram o apelido do pai depois de irem a tribunal, batalharem legalmente. Mas nunca deu o apelido paterno aos seus próprios filhos. Escolheu  Carvalho, em honra da mãe. “As pessoas não entendem porque é que nós não temos nacionalidade portuguesa se [somos filhos de um português] — e eu também não. Não tenho culpa de ter nascido na altura colonial. Conseguimos o registo só depois da independência, por isso não nos dão a nacionalidade.”

Eurocentrismo e colonialismo

Killa Z, 30 anos, rapper, faz uma música entre o tradicional e o contemporâneo. “Usei o rap e outros estilos modernos e fiz uma fusão com os estilos tradicionais como o tchiloli”, explica sentado num dos pátios contíguos à Casa da Cultura. Está numa salinha a produzir um disco com outros músicos, ao lado um homem pinta um quadro. O edifício de arquitectura colonial no centro da cidade tem as paredes exteriores degradadas.

“Se olhar à volta, é tudo colonial: está aqui, está no estado em que está e parece que são edifícios [feitos por colonos] que só eles mesmo é que conseguem gerir”, comenta com a sua voz pausada e ponderada.

É um crítico da desvalorização de África e do colonialismo, já reflectiu bastante sobre o tema, inclusivamente nas suas músicas. Antes da colonização, observa, África tinha reinos, sociedade, civilização, religião. “Mas entretanto começa o eurocentrismo, em que a Europa é o centro de tudo, e isso ainda se nota. São poucas as coisas aqui que são produtos nossos. Quando plantas uma bananeira, ela nunca vai dar maçã — plantaste para dar banana e ela vai dar banana. O colonialismo foi criado para que as sociedades estivessem hoje à mercê do que é o eurocentrismo.”

O resultado é que 500 anos depois São Tomé e Príncipe vive “numa dependência total do que é europeu”. “Temos uma independência política, mas em muitos casos foi feito copy-paste da Europa para cá. Quando África se afirmar no seu todo, vai-se fazer a reviravolta da História — de certeza que isso é uma das grandes preocupações dos países de primeiro mundo que preparam os destinos de África para que eles estejam sempre assim”, conclui.

Para muitos jovens como Killa Z é esta relação de São Tomé e Príncipe com África que se torna o foco da conversa sobre relações raciais. Katya Aragão (n. 1986) fez animação cultural, administração, “um pouco de tudo”, fez um talk show na Televisão São-Tomense, apresentou o jornal das 13h, é organizadora do evento Ted Ex São Tomé; nasceu em São Tomé e Príncipe, viveu em Angola e em Portugal, e relata o típico episódio que representa para si a mentalidade do colonialismo que perdura: “Há mais respeito se for um branco a dar uma ordem do que se for um preto, nacional.” Isso ela própria experiencia com a diferente forma de tratamento entre ela e o patrão branco feita pelo segurança da empresa onde trabalha.

Falta orgulho em ser são-tomense, em falar a língua (o forro), nota. Para determinadas pessoas, quem tem dinheiro ainda é o ex-colono, quem detém a maior parte das empresas é o ex-colono. “Até nos mais jovens [isso se nota]. Não tem nada que ver com racismo, tem que ver com o sentir que se deve uma obediência, com um complexo de inferioridade.”

Estudou na escola portuguesa e “tinha pouca relação com aquilo que é São Tomé e Príncipe”, confessa. Mas havia uma professora que ensinava o pan-africanismo, o que “foi muito importante”. “Acho que há necessidade de o pan-africanismo ser mais divulgado, é a partir daí que a identidade africana vai ser aprofundada. Aqui há uma grande mistura. Somos uma ilha e por acaso estamos no golfo da Guiné. Mas só me senti mais africana depois de estar num país africano, ver como os africanos do continente são realmente. E nós não somos como eles. Somos muito ocidentalizados, sofremos muitas influências e não pegamos no que é nosso. É normal que os miúdos estejam confusos e não saibam o que é isso de identidade africana, sobretudo quando não estão expostos a isso. Tenho tido necessidade de partilhar o meu despertar com outros colegas, com os mais novos sobretudo.”

A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie é uma das suas grandes inspirações. A verdade é que, querendo ou não, em África a ligação ao mundo ocidental é forte. Por exemplo, “há um grande movimento de cabelo natural dos afro-americanos nos Estados Unidos”, comenta, a rir. “Estamos a ser mais africanos, mas esse movimento vem dos Estados Unidos, de pessoas que nunca vieram a África.”

Tem umas longas tranças, cuidadas, e usa uma camisola com tecido africano. Edlana Barros, 29 anos, recebe-nos em sua casa no bairro do Quilombo. Bem no centro, o bairro é feito com casas pré-fabricadas. A sua casa de banho parece um cabeleireiro, comenta a rir, quando fala dos produtos que compra para o cabelo, muitos trazidos de fora.

Estudou no Brasil e agora trabalha como assistente de comunicação num projecto ligado ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Lamenta que em São Tomé e Príncipe o jovem que fala forro seja aquele que foi à procura — pois era uma língua proibida e non grata para a elite. A história de São Tomé e Príncipe é pouco ensinada, ainda para mais no seu caso, pois frequentou uma escola portuguesa “e a partir do 5.º ano era praticamente uma estrangeira, não estudava nada relacionado com São Tomé e Príncipe”, diz. “Para saber coisas sobre o meu país, precisei de ir consultar o livro de um estrangeiro.” Quanto ao colonialismo, era ensinado com uma “versão portuguesa dos factos”. “Quando se falava da época colonial, falava-se de todos os países por alto. Aprendíamos o que os alunos portugueses aprendiam. É uma visão muito simplista, acredito que é uma visão muito: ‘É o meu lado, defendo o que eu fiz.’”

Só mais tarde, quando tinha 14, 15 anos, é que começou a questionar esta versão dos factos.

Se pudesse voltar atrás no tempo, Maísa Bom Jesus preferia que não tivesse havido colonialismo. “Muito da minha cultura foi apagado, para além de sermos pequenos. Sinto que não somos tão africanos como os africanos da África continental. A cultura deles é muito mais evidente do que a nossa. A minha cultura é como se fosse café e leite e houvesse mais leite do que café no copo”, diz esta jovem, que estuda em Taiwan e está de regresso, a passar uma temporada em São Tomé e Príncipe.

“Colonizar um país, tirar o que é a raiz desse povo e transformá-lo em pequenos portugueses não concordo”, acrescenta. Maísa Bom Jesus nasceu na “segunda república e não sentiu na pele nada de negativo em relação ao colonialismo”. Nota muito da influência portuguesa, inclusivamente critica o facto de haver tanta ajuda lusa: “Ainda é como se fôssemos filhos de Portugal.”

E lembra-se de um episódio que espelha a diferença geracional na forma como se olha para o colonialismo. O avô tinha um jardim enorme, “a coisa que cuidava com mais carinho”. “Nós passávamos e pisávamos e estava sempre a ralhar. Dizia muitas vezes: ‘Meu Deus, os pretos não conseguem fazer nada, estão sempre a destruir tudo, é por isso que digo que os brancos é que sabem fazer as coisas.’ Se havia algo errado, era logo: ‘Os brancos é que têm de tomar conta de São Tomé.’”

Ora, ela consegue “criticar os portugueses”, algo que o avô “não conseguia fazer”.

Negar o racismo

O atelier do artista plástico Kwame de Souza, 35 anos, é um open space que lhe serve também de casa. Tem várias telas suas espalhadas pelas paredes, algumas inacabadas, o chão tem tintas. O dia está quente, a ventoinha alivia o calor. Kwame de Souza viveu em vários países africanos, como Angola e Moçambique, e viveu em Portugal, onde ainda vai regularmente. Agora vive entre Itália e São Tomé e Príncipe. Não gosta, não quer, não vê utilidade em falar de racismo em São Tomé e Príncipe. “Não existe branco nem preto dentro da minha cabeça. Temos muito para trabalhar. Estamos num país em que passa no telejornal o primeiro-ministro a preocupar-se com elevadores e água na torneira. Se ficar doente, agora apanho o avião para Lisboa. A diferença entre branco e preto importa? Não. A independência que estamos a festejar agora chama-se ‘dependência’. Isso é mais importante para mim do que a diferença que ficou lá atrás”, argumenta com vigor. “Não precisamos das pessoas que nos vêm chamar ‘pretinhos, coitadinhos’.”

Kwame diz que estudou o período da escravatura, mas nunca encontrou provas de que tenha realmente existido em São Tomé e Príncipe, nunca viu chicotes nas roças. “Houve escravatura onde? Nunca vi nenhum livro a dizer que são-tomense era escravo.”

Também afirma que um “são-tomense não lembra se existe um branco ou preto”. “Acho que até seria bom não lembrar que há diferenças raciais”, sublinha. Afirma: “Não sei se existe racismo. Existem algumas pessoas estúpidas. Torna-se cliché que todo o mundo bate na cena do preto e do branco. Eu não penso assim, o mundo hoje não pensa assim. Nós vamos encontrar branco estúpido, preto estúpido, chinês estúpido.”

Em suma: “Dizer ao povo ‘tu foste escravo’ não vai ajudar o meu país. Sou a primeira pessoa a apagar na mente do meu povo e a dizer: ‘Esquece essa merda, anda para a frente.’ Estar a remontar a merda da escravatura não ajuda a nada. O caminho para andarmos para a frente, para fazer o país crescer não passa pelo nosso passado. Não façam esse povo lembrar que foi filho de escravo. Não nos faz falta.”

Assim como “não é útil lembrar aos africanos que eles são inferiores”. “Falar de racismo, só o simples acto de falar, já é prejudicativo. Não me lembres quem eu sou, deixa-me ser quem eu quero ser. A ideia de que nós, africanos, somos inferiores não veio da nossa cabeça: alguém veio e tum-tum-tum.”

Inocência Mata, doutora em Letras e com pós-doutoramento em Estudos Pós-Coloniais, está de visita a São Tomé e Príncipe para as comemorações dos 40 anos da independência a 12 de Julho. Nasceu na ilha, onde fez quase todos os estudos até 1974 — depois viveu em Angola, em Portugal, agora está provisoriamente em Macau. Tem uma agenda preenchida com reuniões e encontros, conversamos num final de tarde no hotel onde está hospedada, junto ao mar azulíssimo.

 Diz que é preciso notar que mais de metade da população de São Tomé e Príncipe nasceu depois do 25 de Abril — é um país muito jovem. Dos cerca de 190 mil habitantes, mais de 64% tem até 24 anos, segundo os últimos dados, de 2014. É por isso normal que as marcas do colonialismo estejam “sobretudo na ideologia”, “não no quotidiano”. “É um país em que as memórias do colonialismo não estão presentes. E isso é bom e é mau. É bom, porque o país quer estar a olhar para a frente; é mau, porque é um país que assimila valores que são coloniais, mas não tem consciência que são coloniais.”

Ideologia da subalternidade

Os portugueses foram mais brandos porque se miscigenaram? “Quero lá saber com quem é que o colono dormia”, comenta Inocência Mata. “Dormia com a negra e ia-se casar com a branca”, diz, quando falamos da ideologia do luso-tropicalismo, que vingou e vinga entre muitos estudiosos e são-tomenses. “O colonialismo é abominável. Não faço esse discurso de que o colonialismo é mau, mas. Não, o colonialismo é mau, ponto. Porque é a sujeição de uma comunidade por outra. É dominação, espoliação, apropriação dos recursos naturais. É também um sistema em que existe a dominação cultural. Isto é porventura a parte mais negativa, na medida em que ela é perene, cria uma ideologia de subalternidade.”

Lembra-se bem do sistema colonial e da forma como era exercido. Em nova ia percebendo a injustiça do regime, porque o pai era “muito politizado”: apesar de altamente qualificado e de ser da elite, não podia ascender na profissão por ser negro, “trabalhava num sistema em que tinha de ensinar o metropolitano branco que vinha para mandar nele”.

Hoje, é uma professora (na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) que faz questão de saber de cor os nomes dos alunos, porque nos anos 1970 tinha uma professora que nunca sabia os nomes dos alunos negros. “Lembro-me que ela me chamou Helena e eu disse-lhe: [‘Não sou Helena.’] Ela [respondeu]: ‘Vocês são todos iguais, não vos distingo.’”

A cor das pessoas contava durante o colonialismo, defende, “e quem disser o contrário está a dourar a pílula e a fazer do colonialismo uma contradição e um encontro de culturas”. Ora, “o colonialismo não é um encontro de culturas, o colonialismo estabelece uma relação de poder de uma cultura sobre a outra”. E “é a instrumentalização da cultura do colonizador para a dominação do colonizado: não que a cultura do colonizador seja, per se, uma cultura de dominação —  não, ela é instrumentalizada”.

Por outro lado, para muitos são-tomenses como Isaura Carvalho, a imagem do colonialismo não tem o peso que tem noutras ex-colónias. “Basta pensar que sou filha de um português, e neta de português, que a ideia do colono se suaviza automaticamente. Quando saímos de São Tomé, um dos destinos preferidos é Portugal. A nossa relação com o colonizador nunca foi de agressividade. Se nos perguntar: ‘Gostavam de voltar a ser colonizados?’ É claro que não. Não há nenhuma colonização que seja boa. O que fica das relações é que podem ser menos boas, no nosso caso com Portugal temos uma relação muito equilibrada.”

Essa “suavização” também tem sido a imagem passada na escola, nomeadamente na que dirige, o Instituto Diocesano de Formação, conhecida como “Escola Portuguesa” e frequentada “em 90% por são-tomenses”. Apesar de ter currículo português, também aborda a História de São Tomé e Príncipe. “A imagem não é do colono suave, a relação é que é suave”, esclarece. “É um passado que ficou, não podemos apagar. Mas temos o presente e o futuro.”

A luta pela independência nunca foi contra o indivíduo, mas contra o sistema, lembra. Isso explica também a ausência de conflito agora. “Se tomarmos como termo de referência a miscigenação, não acredito que o meu pai era racista. Mas o sistema era racista, estabelecia que os negros não tinham determinado tipo de capacidades e competências.” São Tomé e Príncipe foi uma colónia criada com o objectivo de produzir — açúcar, café, cacau. A relação com o colonizador foi “um bocado ambígua”, porque em determinadas situações os são-tomenses queriam ser parecidos com o colonizador, noutras rejeitavam. “Havia coisas no quotidiano em que reflectíamos essa vontade de sermos mais próximos. Se no período colonial não era bem visto que se falasse o forro, os nossos pais e avós também não queriam que falássemos.”

São Tomé e Príncipe é um país de fundação colonial, lembra Inocência Mata. Quando os portugueses chegaram, as ilhas estavam desabitadas. O primeiro são-tomense, “vamos chamar assim”, é mestiço — não apenas em termos de branco e negro, mas de mestiçagem interafricana. “É aquele indivíduo que nasceu aqui tanto filho de africanos que vinham de regiões diferentes, como filho de escravos e de senhores.”

A primeira carta de alforria que o rei concede a pessoas nascidas em São Tomé e Príncipe é em 1520, diz. E durante 300 anos o país torna-se entreposto de escravos. “Uma sociedade que nasce a partir de relações de escravidão, de uma estrutura escravocrata, é obviamente uma sociedade que traz na sua génese um problema racial.”

O estatuto do indigenato, que dividia as populações de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau entre indígenas e assimilados e colonos, estes com mais direitos, e que vigorou até 1961, não se aplicava aos naturais de São Tomé e Príncipe e Cabo Verde. “A conferência de Berlim não terá tido o impacto que teve noutros países continentais, em que houve a partilha a esquadro e régua dos territórios. Mas quando as roças aceitam os contratados de Angola, Moçambique e Cabo Verde, as relações complexificaram-se, porque passou a haver não o grupo de negros e brancos, metropolitanos e naturais, mas um grupo de metropolitanos, naturais e um outro grupo que estaria na base da pirâmide, os contratados. Entre os contratados havia os cabo-verdianos que vinham voluntariamente para as roças por causa da fome — havia diferenciações mesmo dentro do grupo dos contratados. Os naturais de São Tomé e Príncipe [os chamados ‘forros’] interiorizavam essas diferenças, essa hierarquia. Ainda durante o colonialismo temos relações internas entre os africanos de grande discriminação.”

A ideia de forros como um grupo superior tem assim as suas raízes na história. “Os forros não participaram nos trabalhos forçados [nas roças] no século XX — era mão-de-obra importada. Quando são introduzidas as culturas do cacau e do café, as terras desses forros são expropriadas pelos brancos que começam a chegar às ilhas para fundar as grandes companhias. As grandes roças são fundadas no século XIX e os forros são expropriados, perdem essas terras que lhes são retiradas. As roças eram verdadeiros Estados. Há relatos de pessoas que não saíam de lá, havia tudo, hospitais, etc.”

A recusa de são-tomenses trabalharem nas roças dá origem ao massacre de Batepá em 1953, quando, seguindo ordens do coronel Carlos Gorgulho, mais de mil são-tomenses (calcula-se, não há dados exactos) foram mortos por se recusarem a trabalhar — este é um episódio que espelha a violência do colonialismo português, mas pouco divulgado em Portugal.

“Tratados como cães”

Teotónio Torres, 88 anos, economista, tinha 25 anos quando se deu o massacre de Batepá. “Foi a pior fase da minha vida”, conta, sentado no sofá da sua sala de estar, num bairro de moradias baixas e cores de terra. “Um dia saía eu de casa, quando me dizem: ‘Morreram 29 homens na cadeia.’ Presos da Trindade chegados à cadeia, encerrados numa cela e de madrugada, depois de muito gritarem, abriram a porta, caíram mortos 26 ou 27. Eu fiquei como louco: como era possível que se matasse tanta gente?”

Crítico do sistema colonial, Teotónio Torres diz que até hoje não acredita “na comunidade lusófona”. Não se lembra de qualquer convívio mais próximo com os portugueses — dava-se bem com o chefe, mas ele nunca o convidou a ir a sua casa, “nunca”, nem se lembra de um europeu tratar os são-tomenses de “igual para igual”. “Havia sempre preconceito, e até hoje há. Europeu supõe-se superior aos outros.” E comove-se, pede desculpa: “Se me passasse pela cabeça deixar de ser independente, morria. Só de pensar nisso me vêm as lágrimas aos olhos. Não trocaria um minuto de vida para voltar ao tempo colonial. Éramos tratados como cães e hoje somos homens, quer queiram, quer não queiram. Nós somos donos disto.”

Os portugueses estiveram em São Tomé e Príncipe com duas grandes prerrogativas, lembra o escritor Albertino Bragança: “O direito de resgate da costa africana e ‘o direito a uma mulher negra para dela se servir e a dita ilha povoar’, na linguagem daquele tempo.” Um dos contos que Albertino Bragança escreveu chama-se Preconceito, baseado no preconceito contra os descendentes dos contratados nas roças. “As relações amorosas entre um filho da terra e um contratado eram impensáveis e eu pus isso no fim do conto.”

Ex-futebolista amador, 78 anos, Albertino Bragança viveu em Portugal para onde foi em 1964 jogar na Académica de Coimbra — estudou Engenharia e regressou em finais de 1975-76 a São Tomé e Príncipe. Em casa tem fotos dos seus tempos de jogador. É uma moradia no centro da cidade onde tem um escritório com livros seus e de outros autores. Fundador do Partido de Convergência Democrática, foi deputado até 2014 — e foi ministro da Defesa, ministro dos Negócios Estrangeiros, ministro da Educação, Cultura e Desporto.

“O combate que se fez a línguas nacionais e a alguns aspectos da cultura nacional foi completamente despiciente e foi tão forte que hoje, 40 anos depois da independência, não somos capazes de assumir alguns aspectos da nossa cultura que a meu ver são essenciais para afirmar a nossa identidade”, critica.

Lembra que o racismo chegou muito ao desporto, sobretudo depois da guerra em Angola em 1961, e que havia grande tensão nos jogos de brancos contra pretos: “Os clubes eram o único espaço onde brancos e negros podiam estar em contacto.” Na assistência os brancos sentavam-se de um lado, os negros do outro.

“Em São Tomé e Príncipe nunca se esteve habituado a confrontos directos entre negro e branco.” Não havia leis a separar oficialmente as pessoas, mas a verdade é que os espaços estavam delimitados, recorda, a vincar a “ideia de supremacia do branco sobre o negro, da discriminação no emprego, dos lados opostos nos campos de futebol”. 

“Campos de concentração”

Damos uma volta na Roça Agostinho Neto com a historiadora Nazaré Ceita, 50 anos, que nos mostra como eram verdadeiras “regiões autónomas”. Estamos na Casa Grande e ao fundo vemos o hospital, até há pouco tempo o lugar onde muitos são-tomenses nasceram. Está completamente abandonado, com água a escorrer no chão, buracos, gente deitada à porta.

À beira da estrada que une os dois edifícios há casebres e muita gente em grupo, pessoas que ficam debaixo das árvores a protegerem-se do calor, miúdos a brincar. Há uma escola e o terreno é imenso, com casas que foram sanzalas e outras construídas depois da independência — aqui vivem milhares de pessoas. Um dos trabalhadores leva-nos a ver cacau fresco e indica-nos a estrada por onde apenas os patrões brancos podiam passar. As roças são hoje uma espécie de metáfora do colonialismo português, grandes edifícios, estruturas imensas, que um dia simbolizaram a imponência do poder imperial, mas que hoje têm bolor, estão a cair — abandonadas, ninguém lhes pega. São também bolsas de pobreza onde crianças descalças e com camisolas sujas e rotas lutam por um lápis de cor.
“Nas roças as pessoas sentem-se mal, porque sabem que foi aí que a população serviçal sofreu bastante — essa marca do castigo, dos maus tratos fica”, explica Nazaré Ceita. A historiadora está neste momento a fazer uma investigação para a qual entrevistou mulheres que foram serviçais. “A primeira coisa de que falam são os vários castigos que sofreram — corporais, humilhação sexual, a utilização do corpo pelo patrão. Há vários relatos desses entre as trabalhadoras rurais — algumas delas eram vítimas de assédio sexual pelos seus pares e pelos patrões.”

Fernanda Pontífice (n. 1955), reitora da Universidade Lusíada desde 2006, ex-ministra da Educação e Cultura, acha que o que se “passava nas roças deixou uma memória muito má dos brancos”, comenta numa das salas de aula da universidade. “Porque havia o pelourinho onde as pessoas eram chicoteadas, quer homens, quer mulheres — embora já se tivesse abolido, a escravatura era um regime serviçal quase escravo. O homem branco era identificado com tudo isso, com racismo e repressão. Quando olhamos para o panorama do que hoje são as antigas roças, uma das leituras que faço foi uma espécie de mandar cá para fora toda a raiva, uma reacção violenta à violência a que foram sujeitos ao longo dos anos. As casas grandes foram todas destruídas.”

João Carlos Silva, fundador da Cacau, chefe de cozinha, autor e protagonista dos programas de televisão Na Roça com os Tachos e Sal na Língua, cresceu numa roça. É na roça onde agora tem um restaurante e pousada, São João dos Angolares, um edifício colonial recuperado, que nos recebe. A varanda enorme de madeira tem vista para o mar e para a enorme mata, os livros numa mesa à entrada convidam ao lazer. A cozinha está à vista: os tachos e as papaias, o cacau, a cajamanga, o peixe usados no menu tropical que será servido.

A vida nas roças durante o tempo colonial de que se lembra era bem diferente desta enorme tranquilidade e exotismo. Nasceu e cresceu numa roça ali perto, depois o pai seria transferido para outra, mais próxima da cidade. “A minha infância foi feita quase toda no meio de cabo-verdianos”, comenta. As roças, descreve, faziam lembrar “campos de concentração nalgumas situações”: “Eram fábricas a céu aberto. O meu avô trabalhou num dos hospitais e tinha indicações muito claras: um trabalhador só podia ficar [internado] três dias, porque senão a máquina deixava de dar rendimento.”

Essa memória, e o que ouviu contar, fá-lo pensar que São Tomé foi das “coisas mais terríveis do império colonial”. “O meu pai conta-me histórias terríveis de justiça privada nas roças, o abuso descontrolado e ilimitado dos patrões em relação aos próprios trabalhadores” — algumas delas o próprio João Carlos presenciou, como sevícias, maus tratos, abuso. Por exemplo, não era possível sair de uma roça para outra sem uma guia. “As pessoas estavam reféns.” Quando se fazia a contagem de pessoal às cinco da manhã, já havia capim apanhado “que não entrava na conta do trabalho”. Os trabalhadores saíam de manhã cedo e voltavam às 17h-17h30; a partir das 18h-18h30 “já não podiam falar”.

Isto são coisas que deviam constar nos livros de História e que não constam, considera. “Os próprios são-tomenses ainda não estão a escrever a sua história. A história ainda é escrita pelos colonizadores, feita por gente que tinha interesses que não os nossos. Um autor são-tomense dizia que os portugueses estiverem entre nós, não estiveram connosco. Claro que temos de ter a capacidade de redesenhar o nosso país e nunca se parte do zero”, comenta.

Os frutos proibidos

A geração de João Carlos Silva, como a de Fernanda Pontífice, é a que aprendeu nas aulas de História mais sobre Portugal do que sobre São Tomé e Príncipe. Como diz a reitora: “Na 4.ª classe tínhamos de ter um conhecimento de toda a geografia [de Portugal] e, paradoxalmente, não sabíamos nada da história de São Tomé e Príncipe, também não sabíamos nada da geografia do país — sabíamos que o pico mais alto era o pico de S. Tomé na ilha de São Tomé.” “Era como se as nossas coisas não tivessem dignidade para serem estudadas.” Conta este episódio: “Veja só, os nossos professores mandavam fazer redacção sobre os frutos. E os frutos que nós conhecíamos era manga, cajamanga, mamão, abacate, jaca, anona. Mas se puséssemos esses frutos os professores riscavam, tínhamos de pôr uvas, maçã, pêra, coisas que nunca tínhamos visto! Era uma espécie de negação que levava a negarmos a nossa própria cultura.” E, já adulta, teve um professor que dizia: “Não sei o que andam cá a fazer, porque a raça negra vai desaparecer.”

Fernanda Pontífice foi uma espécie de discípula da poeta Alda Espírito Santo — um dos rostos femininos do nacionalismo africano que conviveu na Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa, com Amílcar Cabral, Agostinho Neto ou Mário Pinto de Andrade. Lembra-se dos livros que leu por sua influência, muitos deles clandestinos, muitos deles “tinham que ver com a questão da negritude”.

A sala de aula onde conversa fica em frente ao Liceu Nacional, um edifício enorme de arquitectura do Estado Novo. O bairro onde está implantada a universidade era “só habitado por portugueses” e “os cães intimidavam”, assustavam as crianças que iam apanhar frutos das árvores. “Havia uma espécie de segregacionismo velado. Havia empregados negros, mas não os víamos como nossos.”

O racismo manifestava-se através das notas, por exemplo. “Uma das razões por que o meu pai me acompanhava nos estudos era porque dizia que eu tinha de estudar para ter mais do que 10.” Fernanda tinha uma colega de carteira branca a quem fazia os trabalhos de casa que conseguia ter nota 15, enquanto ela tinha 11 valores, “uma injustiça muito grande”. “Muitos de nós não éramos vítimas directas de racismo. Ao mesmo tempo havia uma política de assimilacionismo que se fazia através de instituições como a Mocidade Portuguesa, o liceu. Portugal era tido como multirracial e nós fazíamos parte desse multi. Estávamos integrados, havia uma tentativa de nos assimilar com esses valores.”

A imposição dos valores e culturas deixou marcas. Quando se deu a independência, adoptou-se um regime socialista, de partido único (o MLSTP, que durou até 1990), e todas as plantações de cacau foram nacionalizadas. Depois distribuíram-se as terras, mas não se sabia “o que fazer com as roças, porque eram muito grandes”: “Já estavam a cair antes no tempo colonial, foi um modelo que não deu”, comenta Jorge Coelho (n. 1958), candidato à Presidência da República em 2011, e a preparar um romance histórico sobre a escravatura.

Para este homem, que viveu anos nos Estados Unidos e tem um sotaque em que isso se nota, os são-tomenses ainda carregam a “marca para obedecer, uma marca da escravatura”: ao mesmo tempo que “a discriminação e maus tratos criaram revolta contra esforços, sacrifícios, geraram também o hábito de esperar que alguém faça, conduza”. Um dos efeitos da opressão racial foi ter deixado “um complexo de inferioridade” em alguns, “a tendência para achar que tudo o que um branco faz é melhor e o que vem de fora é melhor”.

Também para Isaura Carvalho essa é uma das grandes marcas deixadas pelo colonialismo. “Continuamos a ser uma sociedade mais servil do que civil”, observa a historiadora sentada na Fundação Cacau, um armazém enorme onde há restaurante com música ao vivo e uma ala grande com exposições — nas paredes vemos fotografias antigas das roças, uma extensão imensa de trabalhadores a descaroçar o cacau, por exemplo. “Estamos muito dependentes do Estado e do exterior [quase 100% do Orçamento do Estado vem da ajuda externa], como se estivéssemos sempre à espera que alguém desenhasse o percurso do país”, continua.

A historiadora passou parte da vida a conviver com pessoas de outras origens, viajou, confirmou que era uma pessoa igual a outra qualquer: “Fui experimentada em várias situações, trabalhei fora de São Tomé e Príncipe e pude constatar que eram as minhas capacidades que prevaleciam relativamente à minha cor da pele. Isso, quer se queira, quer não, ajuda-nos na luta pela afirmação. Considero-me privilegiada, mas grande parte da população vive esta realidade que é confrangedora: somos livres, mas continuamos a ter a postura servil que ainda é muito inconsciente.”

Advogado e sócio de uma empresa de prestação de serviços de segurança, Filinto da Costa Alegre (n. 1952) acrescenta: “Na senda do que foi o colonialismo continuamos com desigualdades profundas, cada vez maiores.” “A classe política é muito pouco eficaz e tem sérios problemas — não se identificam com os interesses dos são-tomenses em geral, por isso as desigualdades aprofundam-se.” Lembra que a pobreza em São Tomé e Príncipe tem origem no colonialismo, quando as terras foram usadas para produzir café e cacau e pertenciam sobretudo aos colonos. “Os nativos só muito dificilmente tinham acesso a esta produção de produtos de exportação — tinham sido espoliados e isso excluía os sectores mais produtivos”, comenta.

Não tem dúvidas: “O fundamento do colonialismo era o racismo. A linha de fractura era a raça e nós éramos a raça inferior que precisava de ser civilizada — nós estávamos fora do mundo civilizado, era através do colonialismo que podíamos aspirar a ser cidadãos. Sendo um fenómeno histórico, social, não é algo que se varra com a proclamação da independência: o racismo criou um sistema desigual, discriminatório e, mesmo quando o poder que o sustentava foi erradicado, os seus efeitos perduram. Essa situação prevalece.”

Mas “a memória dos homens é muito curta”. Eduardo Malé, 42 anos, artista plástico e professor no liceu, conta que já teve uma obra sua censurada, Os Comedores de Dinheiro, sobre a corrupção em São Tomé e Príncipe. A trabalhar num projecto para a comemoração da independência a 12 de Julho, Eduardo Malé encontra-se connosco na inauguração da exposição de outro artista com a t-shirt pintalgada. Conversamos depois em sua casa, um espaço junto ao mar num dos bairros periféricos da cidade. Ouvimos as ondas, enquanto conta que se lembra de ter ideias muito diferentes das dos seus pais sobre o colonialismo, que lhe diziam muitas vezes: naquele tempo “não havia liberdade, mas havia comida”. “Aquilo feria-me: então mais importante não é eu poder ter liberdade, dizer o que penso?!”

Quarenta anos passados, porém, nota que continua a haver “uma espécie de neocolonialismo nos dois sentidos”. “E aqui não acuso só Portugal, mas os europeus, os americanos, os chineses.” Por exemplo, a questão dos vistos: “Fala-se muito de que o mundo é global: é mentira. O mundo é global só para a Europa, para a América. O africano vai para a Europa e é logo: ‘Tem visto? Tem autorização? Quem mandou vir?’”

Bisneto e tetraneto de angolanos, de gente que veio de Angola, Eduardo Malé lembra-se de a mãe se juntar com as irmãs e falar “a língua de Angola”. “Lembro da minha mãe contar que perante uma situação de incumprimento ou falta o branco punha o preto a andar em cima da casca de caroço — que é tipo lâmina. Isto é uma raça sobrepor-se a outra. A raça é uma questão mental. É tão simples. Gostamos dos cães, independentemente de serem brancos, castanhos ou cinzentos, às pintas ou malhados. Podíamos fazer isso a um cão: ‘És preto, sai daí.’ Então, porque é que fazemos isso com o ser humano?”

Próxima reportagem, em Março: Moçambique

Esta série foi realizada em parceria com FUNDAÇÃO FRANCISCO MANUEL DOS SANTOS

Portugal. HAJA DECORO!



Rui Sá – Jornal de Notícias, opinião

Numa viagem de carro que fiz esta semana com um colega, e na sequência das notícias que ouvíamos na rádio, ele usou uma expressão que registei: há falta de decoro. Que é um substantivo agora menos usado, mas que significa "respeito por si mesmo e pelos outros", "decência", "vergonha", "dignidade".

Acho que é mesmo isso que se tem passado. Vemos hoje gente do PSD e do CDS com cara escandalizada a investir contra a "injustiça do aumento de impostos" previsto no Orçamento para 2016 e das penalizações que isso acarretará para a classe média. Mas essa é a mesma gente que implementou "colossais" aumentos de impostos (acompanhados de perda de direitos e de aumento de jornadas de trabalho - que desvalorizaram ainda mais os salários)!... A isto chama-se falta de decoro!

Ver o CDS, que detinha os cargos de vice-primeiro-ministro e de ministro da Economia do anterior Governo, a pedir na Assembleia da República esclarecimentos sobre como foi possível, no final do consulado desse mesmo Governo, os administradores da Autoridade Nacional da Aviação Civil serem aumentados em 150%, passando os salários do respetivo presidente para cerca de 16 mil euros mensais, é falta de decoro!

Saber que o Estado injetou cerca de 90 milhões de euros no Banco EFISA e que, depois, o vendeu por 38 milhões de euros a uma sociedade onde pontifica Miguel Relvas é, no mínimo, falta de decoro!

Saber que a Direita calou propositadamente o que se passava no BANIF, procurando retirar o seu impacto do processo eleitoral é falta de decoro!

Ver Maria Luís Albuquerque "desiludida" por não haver lugar ao reembolso da sobretaxa, quando sabe perfeitamente que a ilusão dessa devolução se deveu, apenas, a uma mentira eleitoral, é falta de decoro!

Ouvir Paulo Rangel a apelar em Bruxelas para que a Comissão Europeia "ponha na ordem" o Governo português é, fora o resto, falta de decoro!

Ver os apoiantes do Governo que procedeu à privatização da TAP (porque "privado é sempre melhor gerido") a queixarem-se do desvio dos voos do Porto para Lisboa é falta de decoro!

Por isso aconselho aqueles que foram os responsáveis pelos quatro anos de governação anterior a fazerem, pelo menos, um luto. A bem do decoro da classe política e do país.

Ouvir Paulo Rangel a apelar em Bruxelas para que a Comissão Europeia "ponha na ordem" o Governo português é, fora o resto, falta de decoro!

Portugal. "Limitado avanço" do PS teria sido "impossível" com PSD e CDS



O secretário-geral do PCP afirmou hoje que o "pouco e limitado avanço" que tem sido concretizado nas negociações com o Governo de António Costa não teria sido possível com o PSD/CDS-PP.

"Corremos com o Governo PSD/CDS-PP e, se eles cá estivessem, nada deste pouco e limitado avanço que tem sido concretizado nas negociações com o Governo PS, nada disso teria sido alcançado. Antes pelo contrário, teríamos o PSD/CDS-PP a continuar a impor uma política de exploração e empobrecimento", considerou Jerónimo de Sousa, num comício na Maia, distrito do Porto.

O líder comunista frisou que o Orçamento do Estado não é do PCP, mas do PS, e que tem "elementos positivos" pelos quais o partido se bateu e que, apesar do seu "ainda limitado alcance", poderá dar resposta a problemas imediatos dos trabalhadores e povo português.
E sublinhou: "Naturalmente não iludimos limitações e insuficiências da proposta apresentada pelo Governo."

Jerónimo de Sousa realçou há medidas que preocupam e distanciam o PCP do orçamento, como o agravamento de impostos indiretos que recaem de forma mais generalizada sobre os portugueses, nomeadamente o aumento do imposto sobre os combustíveis, a insuficiente tributação sobre o grande património mobiliário, a falta de resposta estrutural ao problema da dívida ou a manutenção de restrições impostas aos trabalhadores e serviços da Administração Pública.

Na opinião do secretário-geral dos comunistas, os "constrangimentos e condicionamentos" do orçamento são "motivo de preocupação" porque podem comprometer a resposta a que os portugueses aspiram.

Segundo Jerónimo de Sousa, os últimos dias de "pressões e chantagens" exigem a rutura de Portugal com as imposições da União Europeia.

O líder comunista sustentou ainda que vai "lutar" para que um conjunto de matérias, que não foi possível concretizar na proposta do orçamento, sejam consagradas na especialidade, referindo-se ao congelamento do valor das propinas, introdução progressiva da gratuitidade dos manuais escolares, melhoria do subsídio social de desemprego e redução da taxa máxima do Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI).

Na sua opinião, o PSD e o CDS-PP andam "frenéticos" e "em uníssono" andam a agitar todos os "espantalhos do medo, anunciando tragédias e catástrofes iminentes para disseminar o desânimo, impor a cedência, a submissão e a rendição incondicional aos seus objetivos e à sua política de extorsão nacional".

"PSD e CDS-PP fazem tanta falta no Governo como a fome", ressalvou.

Jerónimo de Sousa frisou ainda ser "escandaloso ver PSD e CDS a falar a linguagem dos mandantes, a aplaudir todo e qualquer despacho ou ultimato de Bruxelas".

Lusa, em Notícias ao Minuto

Austeridade: As notícias sobre a minha morte eram orçamentalmente exageradas



Bom dia, este é o seu Expresso Curto 

Pedro Candeias – Expresso

Quando tudo passou a ser cor de rosa e não cor de laranja, e se abriu um novo ciclo, aparentemente folgado e não apertado, eis que a austeridade apareceu para nos lembrar que ninguém está a salvo. Porque enquanto houver buracos, bancos e banqueiros maltrapilhos, especulações, corrupções e esquemas que consigam derreter €40 mil milhões, ela vai continuar por aí. E não há ginásticas mentais ou orçamentais, nem animais mitológicos ou mesmo ornitorrincos (como se lê aqui aqui), comunicados, linguagens técnicas e técnicas de retórica que a escondam. Nem à direita. Nem à esquerda. Nem ao centro.

E por isso, passado um fim de semana sobre a apresentação do Orçamento do Estado para 2016, as continhas que começam a ser feitas apresentam o resultado do costume: baralhar e voltar a dar. Por exemplo, o Público faz manchete com os condutores que "vão pagar mais 580 milhões este ano", o Jornal de Notícias titula que "as gorduras do Estado aumentam 912 milhões de euros", e o jornal ifala das despesas dos gabinetes governamentais que disparam para 58 milhões".

Resumindo as coisas, o Diário Económico diz que este é um Orçamento de compromisso, para tentar agarrar os parceiros da coligação e as exigências da CE, feito com "um pacote de austeridade com efeito incerto". Para o Jornal de Negócios, chegou o tempo da "nova austeridade".

Contas serão contas, o resto é comunicação e política. E políticos. Vamos a eles, que estiveram ativos durante o fim de semana.

Quem dá a mão a quem?

Ninguém pode acusar o PSD nem o CDS de andarem a pôr os pés pelas mãos - aliás, estão ambos de mãos dadas. Pedro Passos Coelho: "Este Orçamento dá com uma mão aquilo que tira a outros". Paulo Portas: " [Governo] dá com uma mão, mas com a outra lançou todos os impostos indiretos disponíveis e chegaram ao maior esforço fiscal que alguma vez o país tinha visto". A resposta do PS veio por João Galamba, que falou em intoxicação da oposição: "Ainda hoje, o PSD disse que é o orçamento do ‘toma lá dá cá'. É de facto, toma lá 1.400 milhões de euros e dá cá apenas 290 milhões."

São 40 ou 35 horas?

O João Vieira Pereira e o Pedro Santos Guerreiro, diretores do Expresso, perguntaram a Mário Centeno se a redução do horário de trabalho de 40 para 35 horas semanais na função pública tinha pernas para andar. E Centeno respondeu que não podia responder porque tinha de esperar para perceber se isso implicava o aumento das despesas. Mas houve quem decidisse não esperar. No dia seguinte, já com a entrevista do Expresso lida e digerida, António Costa, que é o chefe de Centeno, desdisse o seu ministro das finanças: não se preocupem, minhas gentes, o prometido é devido, as 35 horas de trabalho vão começar a 1 de julho. Deste ano. Então, em que é ficamos? questionaram ontem os sindicatos da Função Pública (Frente Comum e FESAP). Sobre isto, o DN de hoje esclarece que as "35 horas vão chegar de forma gradual e por negociação coletiva", citando uma fonte oficial do Ministério das Finanças.

E a TAP?

O Governo vai pagar €1,9 milhões para honrar o acordo 50/50 com a Atlantic Gateway (o Expresso explica-o, aqui) e os pontos de vista divergem. Para Paulo Portas, isto implica um "encargo superior" para o país e "é um convite à discórdia" quando as coisas apertarem. "Se houver estratégias diferentes, há um risco de impasse. Porque é que os privados terão aceitado?", disse Portas. E Pedro Marques, ministro do Planeamento e das Infraestruturas, argumentou que quem manda na TAP somos nós, o Estado.: "Todas as opções estratégicas para a TAP terão sempre uma palavra inquestionável e incontornável do Estado”. Nas páginas do Jornal de Negócios avança-se que Luís Patrão e Lacerda Machado "são duas das figuras que o Governo irá nomear para o conselho de administração da TAP". São homens próximos de António Costa.

OUTRAS NOTÍCIAS

Lá fora,

É Carnaval e não há Carnaval como no Brasil, sobretudo no Rio de Janeiro. São multidões de foliões a celebrar a vida, que são dois dias, mesmo que os dias de hoje não estejam para brincadeiras. O "Guardian" relata que o brasileiro encara o Zika como um inimigo que dá tréguas durante os festejos. Depois, logo se vê.

Seguimos paara outros carnavais. No oitavo debate entre os candidatos Republicanos à nomeação para a eleição presidencial nos EUA, Marco Rubio foi atacado à esquerda e à direita (perdão, à direita e ainda mais à direita). À vez, Chris Christie, Donald Trump e Ted Cruz lançaram-se sobre Rubio, cujo 3º lugar nocaucus de Iowa deixara os restantes de olho nele. Aqui estão os pontos de vista da Vox e do New York Times. E aqui está o momento-Trump da noite. Amanhã, há primárias em New Hampshire.

Na manhã de ontem, a Coreia do Norte lançou um foguetão de longo alcance, as Nações Unidas condenaram o dito, Pyongyang defendeu-se com "um programa espacial pacífico e independente", e a ONU garante que tudo não passa de um embuste. O que a Coreia do Norte quer, dizem os Estados Unidos e os seus aliados, é desenvolver a tecnologia para um míssil nuclear capaz de atingir o território norte-americano. Há um mês, convém lembrar, Pyongyang levou a cabo o seu quarto teste nuclear.

Quatro eram os "Beatles", o nome que foi estupidamente apropriado pelo quarteto de terroristas responsáveis pelos vídeos das decapitações que chocaram o mundo. O "Washington Post" garante que dois deles, Alexanda Kotey (ainda a monte) e Aine Davis (detido em novembro), foram identificados como fazendo parte desse grupo. Este é o perfil de Kotey, um tipo com raízes gregas e ganesas que se converteu ao Islão em Londres.

Na fronteira da Síria com a Turquia estão 35 mil pessoas a viver ao relento ou em tendas rudimentares encostadas aos portões. Procuram deixar Alepo, a guerra e a morte para trás. Os turcos fecharam recentemente as portas por razões de segurança, e vive-se um equilíbrio frágil naquela região, como relata o correspondente do Expresso. Há sírios, russos, curdos e jiadistas - e civis.

No desporto,

No Superbowl, a final da NFL, os Broncos bateram os Panthers. Foi uma história à americana: ganhou a equipa menos favorita mas que melhor defendia, e que tinha como líder um quarterback veterano (Peyton Manning) em fim de carreira. Houve anúncios para todos os gostos e um concerto digamos que... deprimente. Os Coldplay tanto quiseram tornar-se os U2 que se tornaram numa versão pirosa de Bono e companhia. O New York Times explica-nos porquê (tem a ver com as cores e a pose e a encenação), e porque é que Beyoncé e Bruno Mars tiveram de dar uma mãozinha a Chris Martin.

No nosso futebol, o FC Porto perdeu em casa contra o Arouca (1-2) e atrasou-se na corrida ao título. Ainda que Pinto da Costa tenha lavado as mãos como Pilatos no Porto Canal, está visto que não era só Lopetegui o mauzinho da fita. Já são três derrotas em 2016.Hoje, o Sporting joga em casa com o Rio Ave, e Jesus e os seus rapazes sabem que têm de ganhar (ou empatar, vá) para se manterem no primeiro lugar.

FRASES

"À medida que vamos conhecendo em detalhe o Orçamento do Estado parece-nos claro que ele fica para a história como o orçamento do toma lá, dá cá." Hugo sósia-de-Ted-Cruz Sousa, deputado do PSD, sobre o OE

"PSD e CDS deverão divergir no futuro", António Leitão Amaro,vice-presidente da bancada parlamentar do PSD, na sua versão de social democracia sempre.

"No Médio Oriente andam a cortar a cabeça de cristãos. Não vemos isto acontecer desde os tempos medievais. Eu traria de voltar o waterboarding e outras coisas bem piores" Donald Trump, quem mais?.

O QUE ANDO A LER

Henry Chinaski é um traste, um sacana, um diletante, um preguiçoso crónico, ideologicamente alcoólico, frequentador de espaços pouco recomendáveis, pagante por sexo, provocador e arruaceiro, viajante errante, incapaz de manter um emprego sólido por mais do que duas noites - e não há como não gostar dele. Chinaski é a personagem central do "Factotum" de Charles Bukowski, um tipo que também teve a sua quota parte de loucuras etílicas, Por isso, muito de Henry é de Charles, e muito de Charles serviu, por exemplo, para compor o Hank Moody da série "Callifornication".

O "Factotum" é uma ode ao deixa-andar e à falta de ambição e objetivos, como podemos ver nestes excertos em que o humor é negro como a noite em que Chinaski vive os dias: “It was true that I didn’t have much ambition, but there ought to be a place for people without ambition, I mean a better place than the one usually reserved. How in the hell could a man enjoy being awakened at 6:30 a.m. by an alarm clock, leap out of bed, dress, force-feed, shit, piss, brush teeth and hair, and fight traffic to get to a place where essentially you made lots of money for somebody else and were asked to be grateful for the opportunity to do so?"; "Baby," I said, "I'm a genius but nobody knows it but me."

É um livro curto, duro, sarcástico e divertido que se lê bem num dia de Carnaval como o de amanhã, em que o Expresso Curto faz uma pausa para folias.

Tenha um bom dia. Ou
早上好, o equivalente em cantonês. Eu moro num lugar que é uma espécie de melting pot à portuguesa e espero ver gente com envelopes vermelhos, os hongbao, com dinheiro lá dentro, miúdos felizes da vida pelos presentes que os mais velhos lhes dão. Porque hoje começa o ano na China. O Ano do Macaco.

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