Teresa
de Sousa, entrevista em Público
A
Alemanha decide e, muitas vezes, os outros sofrem as consequências. Nem a
França nem a Comissão conseguem equilibrar o seu poder. Apenas Draghi. A Europa
revelou-se mortal e ninguém tem a certeza se é ainda possível salvá-la, diz a
investigadora francesa Anne-Marie Le Gloannec.
Anne-Marie
Le Gloannec, uma das mas consideradas especialistas francesas da Alemanha, é
directora de Investigação do CERI em Sciences Po e investigadora convidada do
Instituto Nobel de Oslo. Ensinou na Universidade Libre de Berlim, na
Universidade de Colónia e de Estugarda. Escreveu em 1989 uma obra que marcou o
debate sobre a unificação alemã: “La Nation Orpheline: les Alemagnes en
Europe”. Hoje, reconhece que continua a haver no centro da integração europeia
uma “questão alemã”. Critica a forma como Merkel lidera a Europa. Olha para a
França com desilusão. Perante a mortalidade da União Europeia, que a crise fez
descobrir, pensa que alguma coisa ficará. Está pessimista "mas não
totalmente pessimista".
A
Europa ainda pode ser salva, agora que descobrimos que ela é mortal?
Questão muito difícil. É verdade que compreendemos que a União Europeia é
mortal, mesmo que, infelizmente, não tenha a certeza de que toda a gente tenha
compreendido. Há os que desejam que ela morra. Os que têm medo de que ela seja
mortal, que são os pró-europeus, incluindo os governos, a classe política e
intelectual e as elites em geral. E depois há uma enorme proporção de pessoas
que nem sequer sabem bem o que é União Europeia e que não se interessam por
saber se ela vai ou não morrer. Não faz parte da sua paisagem política. Podemos
salvar a Europa, sabendo que ela é mortal? Há ainda um modo de salvá-la? Bom,
eu sou pessimista, mas não totalmente pessimista. Por um lado, ela vai mal em
toda a parte. Mas podemos dizer que não é mais disfuncional do que a América,
com Trump, que a Rússia, que é governada por uma ditadura, que o Brasil, que a
China…
Mas
esses países são nações, nós somos uma União de nações.
Mas há coisas que ainda se mantêm. Há coisas muito importantes que integram o
nosso quotidiano - os direitos, a liberdade, a protecção dos consumidores, o
mercado comum, que as empresas europeias querem preservar. Em tudo isto, há
leis, há regras comuns e desfazê-las pareceria algo de inacreditável. Até
podemos pensar num euro reduzido a meia dúzia de países, mas imagine um mercado
comum que se reduz. O que quero dizer é que haverá sempre qualquer coisa que se
vai manter.
A
diferença é que, até esta crise, nunca tínhamos tido esta sensação de
mortalidade.
Exacto, mas o que eu penso é que ela nunca desaparecerá totalmente. Dito isto,
há uma multiplicidade de crises, que se reforçam mutuamente e que multiplicam
as fracturas. Vivemos crises múltiplas e podemos vir a viver uma crise que
ainda nem sequer imaginamos, uma espécie de “Cisne Negro” que nos pode levar a
uma crise sistémica de grande dimensão. A eleição de Donald Trump, por exemplo,
iria criar uma crise maior, que nos atingiria a todos.
Salvar,
mas salvar o quê? O que nós vemos é que há já um bom par de anos o Conselho
Europeu passou a ter todos os poderes e isso cria problemas. Primeiro, porque
ele está completamente submergido pelas crises e, em segundo lugar, porque,
quando se trata de questões como as quotas para os refugiados, pura e
simplesmente não funciona.
Cá
está uma crise que, lamentavelmente, divide toda a agente.
Já foram tomadas muitas medidas, algumas vão avançar, outras não. Outras ainda,
exigem mais tempo, como é o caso da Turquia. Ainda não sabemos se vai haver dispensa de
vistos para os turcos porque o Conselho e o Parlamento europeus ainda
têm de se pronunciar. Mas, se acabarmos com os vistos, teremos menos refugiados
mas mais turcos. Qual será o efeito disto sobre o referendo britânico? Não sei.
É extremamente difícil de antecipar. Esta situação da Europa faz-me lembrar um
conto que li quando era pequena, passado na Holanda, em que um rapazinho
descobre um buraco na mangueira e põe lá o dedo, mas rapidamente descobre que
há imensos buracos e que não tem dedos que cheguem. A dúvida que resta é saber
se vamos enfrentar um sobressalto de tal dimensão, em que a mortalidade se
coloca, levando toda a gente a perceber que é preciso fazer alguma coisa. A
alternativa é mergulhar no pânico geral.
Falou
de 28 países, mas, nos últimos anos, é apenas um que decide. Continuamos com a
mesma questão alemã que herdamos da unificação?
Absolutamente. E o problema é que Angela Merkel é eleita pelos alemães, e não
por 500 milhões de europeus. Ela é responsável perante o eleitorado alemão.
Mudou algumas vezes de opinião do dia para a noite, fez várias reviravoltas
políticas. Por exemplo, estava disposta a deixar cair a Grécia [em 2010],
quando compreendeu que a banca alemã ia perder muito dinheiro. O problema é que
ela é muito poderosa e tem um verdadeiro talento, no Conselho Europeu, para
convencer uns e outros. Mas não tem sempre uma linha de orientação clara e leva
tempo a decidir. E isso, obviamente, causa problemas.
Para
os outros.
Sim. Todas as decisões que ela toma vão ter um impacto no resto da União. Por
exemplo, na questão dos refugiados, o que se lhe critica, e acho que com razão,
é o seu famoso discurso em que propõe
uma política de portas abertas. Aliás, essa decisão é mais complicada do
que parece. Foi o Departamento Federal para os Refugiados e Migrantes que,
desde o início do ano passado, avisou que não tinha meios suficientes para
tanta gente e que, por isso, ia aligeirar o procedimento de pedido de asilo. A
partir de Agosto, esse afluxo aumentou ainda mais e o mesmo departamento
federal disse que deixaria de fazer entrevistas. A mensagem espalhou-se por
todo o Médio Oriente e vieram ainda mais. Merkel foi confrontada com esta realidade
e teve a inteligência de dizer que a Alemanha conseguiria aceitar o desafio.
Simplesmente, quando disse isso, esqueceu-se de que havia vias de trânsito na
passagem entre a Grécia e a Alemanha. Inicialmente, a Hungria, a Croácia e a
Eslovénia disseram que os refugiados poderiam passar. Mas eles atravessavam as
estradas, os campos, as cidades e que é preciso dar-lhes apoios de toda a
ordem, o que criou rapidamente uma situação ingerível. Ela não pensou nisso.
Foi como no abandono do nuclear [depois de Fukushima], quando decidiu de um dia
para o outro, sem pensar nas consequências que a sua decisão teria para os seus
parceiros.
Agora
decidiu construir um segundo gasoduto, o Nord Stream II, entre a Rússia e a
Alemanha, sem consultar ninguém e fazendo o mesmo que Schroeder.
Faz a mesma coisa, sem sequer falar no assunto. É inadmissível porque já
conhecemos as consequências da sua decisão sobre a Polónia e a Ucrânia e boa
parte da União Europeia. Há neste momento um excesso de reservas de gás na
Europa. A pressa é apenas para satisfazer algumas empresas alemãs. É
inaceitável.
E
não leva em conta as decisões europeias, por exemplo, em matéria de segurança
energética.
Como
é que se explica esse unilateralismo? Pensa que a Alemanha já estabilizou o seu
papel na Europa?
Não. A crise dos refugiados desestabilizou a chanceler no Conselho Europeu.
Antes, ela tinha esse talento de convencer uns e outros. Tinha uma espécie de
“toque de mágica”. Creio que o perdeu com o caso da Turquia.
Porquê?
Porque é totalmente contraditório com os seus princípios morais e com o que
tinha dito antes sobre as portas abertas. Foi um choque ver arame farpado na
fronteira da Hungria, quando a mesma Hungria, em 1989, cortou o arame farpado
para deixar passar os alemães de Leste para Oeste. Depois, a demografia. Merkel
diz há anos que a Alemanha é um país de imigração - é a primeira chanceler
conservadora a dizê-lo. Construiu um discurso corajoso e inteligente. Mas
concluir um acordo com um
Presidente turco cada vez mais autoritário é outra coisa. Erdogan não
perde uma oportunidade para gozar com a União Europeia, os direitos das pessoas
são ignorados nas universidades, nos jornais. Confia-se a um Governo assim a
protecção dos refugiados? É isto que é escandaloso.
Percebe-se
que Berlim tenha decidido aproveitar a crise para redesenhar a estrutura
económica e monetária da Europa? O resultado abriu feridas enormes.
Sim, podemos dizer isso. E não apenas feridas. Isso coloca um vasto conjunto de
questões. Por exemplo, nos anos 90, a Comissão exigiu à Hungria que
liberalizasse a economia, o que levou a que os bancos húngaros fossem todos
comprados pelos bancos suíços e austríacos, que passaram a oferecer crédito
fácil às pessoas que, agora, têm as suas dívidas em francos suíços ou em euros.
Vai ser preciso um dia escrever a História para perceber a repetição destes
erros através das políticas de austeridade. O que é que os países do Sul podem
fazer? Vendem tudo o que têm? Vendem o porto do Pireu aos chineses?
Em
Portugal também.
Eu gostava de saber se a Comissão fez o cálculo de quanto os chineses compraram
desde que começou a crise, graças a esta política de austeridade, que
liberaliza e vende. Lamento mas o que vejo é um governo chinês completamente
autoritário, que controla muitas dessas empresas. Para mim, este é um problema
grave. Esta espécie de cegueira em nome de um dogma.
Disse-me
uma vez que o drama da Alemanha era ser demasiado grande e, no entanto,
demasiado pequena. É esse o drama da liderança alemã?
É uma frase de Kissinger. É verdade. Mas faltam contrapoderes no seio da União.
O único contrapoder é Mario Drahgi e o BCE.
Mas
não da França?
Acabou esse papel da França. É uma relação cada vez mais desequilibrada. Não há
contrapoder da França, não há da Comissão. É só Draghi. Mas já ouvi dizer em
Berlim que, quando terminar o seu mandato, é preciso substitui-lo por um
alemão. Merkel cultiva um estilo relativamente ambíguo em matéria de liderança.
Aceitou a liderança no caso da Rússia porque era do seu próprio interesse.
Tenta estabelecer uma linha intermédia que evite a provocação. Tem uma
participação militar na Síria. É uma evolução progressiva. Mas não pode liderar
a diplomacia europeia porque não há diplomacia europeia, há apenas uma política
de caso a caso.
Como
avalia o risco de um "Brexit"?
Penso que ninguém quer o
"Brexit", nem o Governo alemão nem o francês. O risco é se os
jovens não votarem ou se acontece alguma coisa de negativo na Europa antes do
dia 23 de Junho. Mas custa-me a acreditar. O problema é que, seja qual for o
resultado, o referendo vai inspirar outros países, abrindo as portas a uma
Europa cada vez mais a la carte: eu quero isto e eu quero aquilo.
O
que podemos esperar da França? É um país enfraquecido?
A maior fraqueza é o problema estrutural da sua economia. A dívida sobe, o
desemprego é estrutural, perde quotas de mercado no exterior. Vivemos na ilusão
durante muito tempo. Sarkozy ajudou a manter esta ilusão, fingindo que era ele
que influenciava a chanceler. Agora a assimetria é demasiado grande para iludir
seja quem for.
Mas
qual é o papel que a França quer ter?
Não sei. Creio que pode liderar em questões como o terrorismo e na crucial
partilha de informação entre um núcleo de países, incluindo a Alemanha. Também
sobre a ciberguerra.
Mas
ainda tem muitos instrumentos de poder ao seu alcance. Capacidade militar,
capacidade nuclear. Assinou um tratado de defesa com Londres.
Não vejo isso assim. Durante muito tempo, havia uma legitimidade política e
militar que contrabalançava a sua fraqueza económica em relação à Alemanha.
Agora temos a impressão que estamos um pouco isolados e que isso deixou de
pesar.