Luaty
Beirão fala sobre o dia-a-dia na prisão, a ligação familiar ao MPLA e as
eleições gerais de 2017. Mantém as críticas ao partido e ao presidente, e
reafirma as intenções políticas do processo judicial.
Ao
fim de pouco tempo Luaty Beirão desce as escadas de calções, chinelo e t-shirt.
Tem a barba curta e no final da entrevista, quando chega a altura de fazer as
fotografias, veste uma camisola pintada pela tia. Nessa altura, a mulher,
Mónica, faz questão de dar um jeito na imagem do músico e activista. O almoço
está quase pronto.
Depois
de mais de um ano em prisão preventiva, o grupo de 17 cidadãos condenado pelos
crimes de actos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores, viu o
Tribunal Supremo dar provimento a um pedido de habeas corpus. A partir do
momento em que o tribunal aceita o recurso da condenação em primeira instância,
a lei prevê a restituição à situação anterior até que nova decisão seja
anunciada.
Mesmo
com algum atraso, o Tribunal Supremo decretou, como medida de coacção, o termo
de identidade e residência. O que significa que o grupo dos 17 revús, que
condenados entre dois e oito anos de prisão, voltou para as suas casas e tem de
se apresentar uma vez por mês no tribunal. Até quando? Não se sabe. Também não
podem viajar para fora do país. A libertação aconteceu quarta-feira e foi
seguida de uma passeata até à sede da União dos Escritores Angolanos, no Largo
das Escolas, em Luanda.
“Neste
momento aquilo que mais me preocupa é a situação do Nito Alves, que continuou
preso, e do Dago Intelecto, que foi condenado a oito meses de prisão por ter
gritado dentro da sala do tribunal, durante o julgamento”, recorda Luaty
Beirão, que chegou a passar 36 dias em greve de fome.
A
partir do momento em que oficializaram o recurso sobre a condenação em primeira
instância, o discurso passou a ser que a vossa detenção era ilegal. Estavam à
espera de serem libertados na quarta-feira?
Os
advogados transmitiram-nos sempre o que estavam a fazer e o que não devia ter
acontecido. Tínhamos a noção que a partir do momento em que o recurso é aceite
pelo juiz em primeira instância, a pessoa volta para a situação em que estava
antes de ser pronunciada a sentença. Tínhamos noção da violação da lei mas
deixámos as coisas andar um bocado – os advogados também têm de fazer o seu
trabalho. Sabíamos que as coisas estavam a ser resolvidas, até porque os
tribunais andaram a atirar responsabilidades de um lado para o outro. Tentámos
fomentar o debate à volta desta questão até para ver como a nossa sociedade e a
comunidade internacional iam reagir.
Estavas
nervoso com isso, achavas que nunca iria acontecer ou, pelo contrário, era
apenas uma questão de tempo?
A
maioria de nós foi sempre tentando manter as expectativas em baixo, até por uma
questão de sanidade mental e de controlo emocional. Tentámos sempre olhar para
o pior cenário possível. “Isto é política, depende da ordem do José Eduardo
[dos Santos], o que ele quiser é o que qualquer tribunal vai decidir, então
mais vale estarmos focados noutras coisas”. Mas há sempre aquela ponta de
esperança, que não se admite totalmente, mas que está lá.
A
lei prevê a libertação mediante a apresentação de recurso. O texto é explícito.
Se
formos pela lei não devíamos ter sido detidos, não devíamos estar presos e por
aí adiante.
Não
se agarravam um pouco à ideia de justiça, de no final do dia a lógica
prevalecer?
Neste
caso só posso falar por mim. Eu tentava não pensar muito. Tínhamos de nos
focar. Eu sei o que a lei diz e nas visitas dos advogados pedi para falarmos no
habeas corpus e no efeito suspensivo – e explicar às pessoas o que isso
significa. Mas vi, na Tv Zimbo, que a própria jornalista também não sabia
muito bem se a decisão é definitiva, se é apenas mais um passo. Temos de
explicar às pessoas. Temos de nos focar. Nestes últimos tempos, com a data do
“aniversário” da nossa detenção [que ocorreu a 20 de Junho de 2015], decidimos
começar a falar do assunto. Escrevemos uma carta, que foi estrategicamente
direccionada aos serviços prisionais mas é uma carta aberta à sociedade.
Começámos a pedir que as pessoas se concentrassem no efeito suspensivo da
condenação quando o recurso é aceite pelo tribunal. A pontinha de esperança
existia e tínhamos um plano para pressionar da nossa maneira, dentro do
estabelecimento prisional (com várias formas de protesto), para que o tribunal
se pronunciasse – sobretudo em relação ao habeas corpus. Havia uma réstia
de esperança, mas por uma questão de sanidade tentámos não nos agarrar a isso
como se fosse uma tábua de salvação.
Quem
te deu a notícia de que iriam ser libertados?
Foi
o Nélson [Dibango]. Nós estávamos na parte da frente da prisão, onde só víamos
a TPA. Os outros dez, que estavam noutra zona do estabelecimento
prisional, é que tinham acesso à Tv Zimbo. Eu estava a ler e, por volta do
meio-dia, o Nélson disse-me que tinha ido ao outro lado e que tinha passado na
televisão que o habeas corpus tinha sido aceite.
O
que sentiste?
Nem
sequer senti uma euforia contida, não, foi tipo “ok, era o que tinha de
acontecer. É o normal”. Mas comecei logo também a pensar o que quererá dizer,
qual é a mensagem, a decisão está relacionada com a conjuntura actual? Será um
passo para nos puxarem o tapete de novo? Por isso é que não estou muito no
espírito do “ganhámos, vamos em frente”. Ainda estou a tentar perceber o que se
está a passar. O que se quer é que isto termine de uma vez por todas. Não quero
uma liberdade provisória, o que queremos é saber que ler um livro não é
proibido, pensar diferente, exprimir-mo-nos, não é algo proibido. Acompanhando
o último ano, mesmo na imprensa convencional, é curioso verificar que alguns
espaços estão a ser conquistados por todos.
Ou
então, a propósito das eleições gerais de 2017, vamos ter um país fantástico
nos próximos 365 dias. Através da campanha eleitoral.
Ou
isso, são as eleições a tornar o país num pequeno oásis.
Agora
que conheceste vários estabelecimentos prisionais, que conheceste o outro lado,
com certeza formaste uma opinião muito concreta sobre o nosso sistema
prisional. Qual é a tua visão?
Antes
de responder a essa pergunta, e porque também tinha uma péssima opinião,
gostava que conseguisses resumir a imagem que tinhas dos estabelecimentos
prisionais.
A
imagem que eu tenho e os relatos que conheço é que as condições básicas são más
ou muito más – há falta de água potável, a comida não é boa, o acompanhamento médico
é deficiente. Alguns estabelecimentos estão sobrelotados, há excesso de prisão
preventiva e enfrentam péssimas condições de habitabilidade. E que tudo isto
resulta em violações dos direitos humanos.
Vou
responder da seguinte maneira – antes de ir imaginava todas as prisões iguais
aos filmes, tipo “Carandiru” [referência a um filme sobre as más condições da
Casa de Detenção de São Paulo, no Brasil, onde mais de 100 detidos foram mortos
pela polícia, em 1992] e cenas assim.
Não
iria tão longe.
Também
eu imaginava que as coisas fossem como descreves, então fiquei agradavelmente
surpreendido ao não encontrar merda nas paredes e condições caóticas e de ar
irrespirável. A primeira prisão onde estive foi Kalomboloca e achei o ambiente
bastante asseado. Tanto fiquei impressionado que os meus primeiros escritos na
prisão são de surpresa em relação às condições. E estava numa cela de punição,
isolada, não tive contacto com a população prisional. Obviamente que existem
coisas a criticar, como em qualquer instituição, sobretudo em Angola.
Quais
são os pontos críticos?
É
um facto que existe uma dificuldade no abastecimento de água e que a
alimentação deixa a desejar. As duas únicas vezes que comi em Kalomboloca – sou
semi-vegetariano, não como carne e a comida vem sempre misturada, por isso evitava
– até nem achei a comida tão má assim. Uma das vezes foi funje de milho com um
molho de repolho meio aguado, mas eu estava mesmo cheio de fome, e a outra vez
foi o mesmo funje de milho com feijão. Não era péssimo, mas claro que me ponho
a imaginar quem tem de comer aquilo todos os dias. As refeições são sempre
iguais. Não encontrei um ambiente tão trágico assim e percebi que há um grande
esforço dos serviços prisionais para lidar com toda a logística necessária.
Na
verdade, situações como falta de água potável, por exemplo, são lutas que todos
os angolanos enfrentam.
Claro,
tentamos entender, podemos compreender, mas não devemos aceitar. Obviamente que
há momentos em que a situação ficava caótica. Curiosamente, os outros reclusos
diziam que bastava a nossa entrada nas celas para que a comida ficasse melhor,
para que dessem mais quantidade, tinham logo acesso aos banhos de sol e à
televisão… E quando fomos embora diziam que tudo voltaria ao “normal”.
Como
foi a vossa relação com os outros detidos?
A
maior parte das pessoas que vinham interagir connosco (pelo menos eu senti
isso, nós não estávamos todos juntos), pelo menos 90 por cento, estavam
solidárias. Muitos diziam que o próximo crime ia ser político, que também iam
ser activistas [risos]. Gostavam de conversar e aqui tenho de particularizar –
comigo o pessoal gostava de fazer perguntas, de ouvir, e aparentavam um grande
respeito pelo que fazemos. Senti uma grande solidariedade da população
prisional em geral. Obviamente que há um caso ou outro em que sentes maior
hostilidade, mesmo só pelo olhar, percebes que não simpatizam contigo. Mas
nunca tive um caso, como às vezes vejo e oiço noutros locais, de nos desejarem
a morte ou a prisão perpétua.
Que
tipo de conversas tinham, falavam de política, da vida em geral?
Interagíamos
de forma bem fixe. Obviamente que alguns tinham cometido crimes chocantes e,
nesse sentido, fui obrigado a rever a minha forma de estar e os meus
preconceitos em relação a uma série de coisas. Deixavam-me um pouco confuso
intelectualmente. Pessoas que admitem que matam e violam depois de matar…
Ficava na dúvida se realmente tinham feito aquilo ou se era uma espécie de
gabarolice para ter estatuto entre os criminosos e para serem mais bem
tratados.
Há
um sistema de classes dentro das prisões?
Sim,
há. São os próprios reclusos que tratam da limpeza, são os próprios reclusos
que tratam da disciplina. Eles entendem-se entre si. Eu achei muito fixe a
existência de um sistema que acaba por afastar um pouco os serviços prisionais
da vida das pessoas. E depois tudo está relacionado com a respeitabilidade que
cada um consegue granjear.
Também
se utiliza um código de conduta entre os presos?
Sim,
que é organizado por caserna. Uns são mais rigorosos, outros mais permissivos e
todos aplicam sanções. As sanções são coisas como limpar a sanita durante algum
tempo e situações desse género.
Alguma
vez foste sancionado?
Não.
Éramos logo colocados como chefes das celas, eu tenho de dizer que sempre fui
muito bem recebido por toda a gente. Não tenho nenhuma má recordação. Também
fiquei surpreendido com muitos agentes dos serviços prisionais. É evidente que
muitos têm um baixo nível de escolaridade e de formação, mas são pessoas de
quem sentia um nível de humanidade muito grande. Tem de se parabenizar, de
certa forma, e não incondicionalmente, o trabalho que eles tentam fazer.
Sobretudo ao nível da humanização dos agentes, porque sentia realmente essa
sensibilidade. Mas não havia a capacidade, em temos práticos, de concretizarem
aquilo que devem fazer. Veja-se a situação dos reeducadores, que agora chamam
reabilitador. É esta figura que deve trabalhar com o recluso para o
sensibilizar, para não voltar a cometer crimes.
É
um psicólogo?
Boa
parte das vezes, sim. Mas connosco havia uma preocupação especial, eles eram
indigitados para se ocuparem de nós. Os outros reclusos queixavam-se que nunca
viam aquelas pessoas, que nunca conversaram com eles.
E
faz falta uma aproximação desse tipo em ambiente carcerário?
Para
alguns casos, sim, faz falta. Para nós acho que não, não cometemos crime
nenhum. Os psicólogos que falaram connosco sentiram alguma dificuldade, eles
perguntavam: “Estás arrependido?” E nós dizíamos: “Esquece, obrigado pelo teu
trabalho mas precisas de perceber melhor porque estamos aqui”.
Alguma
vez conseguiram debater o assunto com os reabilitadores?
Quando
estavam dispostos a isso, sim, conversávamos. Muitas vezes, sobretudo os
agentes mais baixos (da ordem interna), mostravam algum interesse. Outras
vezes, mesmo que não pedissem, tentávamos sensibilizá-los. Explicávamos que não
tínhamos nada contra eles. Ao mesmo tempo eram o nosso elo de ligação, eram a
ponte com quem dá as ordens. “Quando nos chateamos não é nada pessoal”, dizíamos.
E eles percebiam, pelo menos afirmavam que percebiam. A tarefa dos guardas
prisionais é ingrata, eles explicam que têm de cumprir ordens e se não cumprem
são penalizados. Estamos a falar de jovens inseridos numa estrutura castrense.
A
maior parte dos agentes prisionais são jovens?
Sim,
a maior parte. Alguns vêm da polícia e do exército. Tentávamos sensibilizá-los
porque a mentalidade deve mudar connosco – se obedecemos cegamente a ordens que
não são legítimas também corremos o risco de responder por elas. Quem manda não
vai colocar certas ordens por escrito. De cada vez que fazíamos um pedido (uma
pendrive para ver filmes, por exemplo), obrigavam-nos a fazê-lo por escrito.
Tudo tinha de ficar escrito. E nós dizíamos, ok, mas se negarem o pedido escrevam
também – já não. Já não pode ser. Então propusemos escrever mas os serviços
davam também uma cópia para confirmar que o pedido foi bem recebido – já não.
Já não pode ser. Já não se comprometem. Da parte de quem manda não há
comprometimento com nada.
Nem
com o cumprimento da lei?
Cobrávamos
isso, não podiam esperar que nós cumpríssemos e eles não. Vou dar um exemplo,
que não sei se chegou até ti: há mentalidades a mudar, mesmo dentro do sistema
castrense. Quando estávamos em prisão preventiva, numa situação com o Benedito,
alguém ordenou que se ele se mexesse o guarda prisional deveria utilizar a arma
de fogo. Ou seja, se o Benedito se mexesse levava um tiro. O guarda prisional
pousou a arma e disse: “Eu não fui formado para isso”. E foi-se embora. Soubemos
depois que ele teve uma semana de punição e acabei por não saber o nome do
agente. Mas gostava de saber quem é para lhe dar uma força. São exemplos que
nos dão esperança. Não se pode mais viver num país assim. Estes pequenos
exemplos devem ser exaltados.
Um
ano depois continuam com a sensação que todo o processo tem motivos políticos?
Acho
que posso arriscar responder por todos os colegas, neste caso. Todos os 17
estão convictos que é um assunto meramente político. Não há matéria de crime,
não há provas, o julgamento foi uma farsa sem piada nenhuma. Tentámos satirizar
a coisa mas obviamente que é uma vergonha para a nossa Justiça e para o país. Apresenta-se uma brochura de um livro, um quadro e algumas insígnias
como prova – e depois ainda saem com a cartada da associação de malfeitores.
Não vejo outra interpretação possível. Alguns tão jovens e tão rapidamente
comprados e assimilados por este regime estão aí para defender estas teses. Mas
alguém com bom-senso e capacidade de análise percebe que não há mais nada para
além de uma questão política. E a vontade vem de cima, vem directamente do
palácio presidencial.
São
acusações de ingerência na Justiça que são recorrentes.
É
claro que as pessoas podem sempre dizer que essas alegações são baratas. Temos
de respeitar essas opiniões. Estamos a tentar construir um país democrático,
então temos de conseguir respeitar esses posicionamentos. Ainda bem que existem
e que podemos debater os assuntos. Grande parte do nosso trabalho foi ajudado
pelo regime – conseguimos fomentar um debate acerca da nossa sociedade e da
nossa demo… bem, não ouso ainda chamar democracia ao que existe no nosso país.
Mas pelo menos fomos capazes de trazer a discussão e de trazer para o centro do
debate pessoas que não eram ouvidas. São algumas pequenas conquistas.
Achas
que há alguma relação entre as eleições e a liberdade condicional que vos foi
concedida?
Acho
que vão tentar evitar que a nossa libertação sirva como arma de arremesso da
oposição contra o MPLA. Vão querer evitar o assunto. A ligação entre a nossa
saída e a campanha eleitoral pode ser considerada com seriedade. Antes de
sermos libertados, a dúvida seria se era estrategicamente melhor para o MPLA
manterem-nos presos, porque não sabem o que podemos fazer com a força que esta
exposição nos deu. As pessoas estão insatisfeitas, é fácil de medir. É natural,
especialmente numa sociedade em crise. E ainda temos as nossas
particularidades. O que seria mais vantajoso para o MPLA? Ter-nos lá dentro e
arcar com a dificuldade de ter de responder por isso durante a campanha ou
livrar-se desse peso?
Qual
é a tua opinião?
O
facto de nos terem libertado denota, claramente, que eles decidiram que é mais
fácil poder descartar essa arma de arremesso, que seria sempre utilizada pela
oposição. Os políticos fazem política e o nosso caso corre o risco de marcar a
campanha eleitoral. Agora vai ter um impacto menor, porque estamos soltos (até
quando, não sei). Mas connosco fora das prisões terá menos eficácia como
crítica. Dentro das duas hipóteses, fica patente que para eles é mais vantajoso
terem-nos em liberdade.
E
sobre o futuro de JES? Ontem foi apresentada a sua candidatura oficial à
liderança do MPLA. É a única candidatura, como sempre. Acreditas na sua
retirada da política activa em 2018?
Quando
ele anunciou que planeava retirar-se em 2018, por acaso ainda estávamos em
prisão domiciliária. A SIC, de Portugal, ligou-me e a minha opinião
mantém-se – JES já disse a mesma coisa em 2001. Coitados daqueles que se
voluntariaram para o substituir. Desta vez já ninguém foi na conversa e então é
o único candidato à própria sucessão. No outro dia, na TPA, o Dino Matrosse
deixou fora de hipótese qualquer alternativa. É uma música que já ninguém
dança. Não o vejo a sair em 2018. Na eventualidade de sair, estamos a ver o
encaminhamento das coisas. Os filhos estão em lugares estratégicos, seja o
Zenú, a Isabel ou a Tchizé. Está a garantir que não o vão atraiçoar no dia em
que abandonar o cargo.
Qual
seria o caminho ideal para a saída de JES, na tua opinião?
Seria
algo que eu não o vejo com capacidade de fazer, porque seria admitir fraqueza.
Para o resto dos angolanos seria um sinal de magnanimidade. A magnanimidade
passaria por assumir as falhas e promover uma real abertura ao diálogo a todas
as franjas da sociedade. O primeiro passo seria liberar a imprensa, que está
sequestrada pelo poder, autorizar a criação das milhentas rádios que estão
encalhadas no INACOM e deixar as pessoas conversarem. Ouvir toda a gente. JES
não tem capacidade para isso, seria admitir uma fraqueza e admitir que a sua
governação falhou. Sinceramente, gostava muito de estar errado, mas não acho
que ele tenha capacidade para o fazer.
Há
uma proximidade familiar, devido à figura do teu pai, entre ti e o MPLA. Há
outras pessoas na mesma situação (são parentes ou amigos muito próximos de
figuras ou antigas figuras do partido), que concordam com as críticas que
fazes, mas não são visíveis e também não estão disponíveis para isso.
Consideras que emerges do seio da “grande família” do MPLA? Também podemos
considerar que és um dos poucos rostos visíveis da uma possível contestação
interna?
Em
relação a isso, gostaria de responder da seguinte forma: o máximo que posso
fazer é abrir o livro sobre mim, sobre o meu percurso de vida, onde me encaixo
dentro dessa família ou dentro dessa estrutura. Mas depois cabe aos
jornalistas, que ouvem e analisam os factos, às pessoas de uma maneira geral,
de me atribuírem esse papel, de decidirem se realmente faço parte da família do
MPLA. Nunca me identifiquei com o MPLA. Lembro-me das eleições em 1992, era
muito pequeno. Não é que me identificasse com o MPLA mas tinha medo do resto.
Tinha medo. Mas não me agarrava às saias do partido por saber que eles me
protegiam. Estava ao abrigo deles, estava sob sua protecção. Antes de 1992
tinha de ser assim, querendo ou não o MPLA era o povo.
Com
essa idade as pessoas, normalmente, dependem dos pais. A política é uma coisa de
adultos. Por outro lado, antes de 1992, Angola vivia um regime de partido
único, era o MPLA e mais nenhum.
Não
havia opção, eras do MPLA e acabou.
Então
a ligação não é tanto de estares envolvido como militante do MPLA, porque ao
que se sabe não há registos de actividade política. A tua ligação ao partido é
familiar e simbólica, apenas isso. Mas é um simbolismo que pode levar-nos a
outras conclusões pouco visíveis, sobretudo no que diz respeito à existência de
várias tendências e de um sentimento negativo que também existe no seio do MPLA
(ainda que em minoria, talvez) em relação à liderança de JES.
Obviamente
que eu beneficiei de todo o sistema que o MPLA criou. O MPLA, o meu pai, que
fazia parte das estruturas do partido (se não fizesse, não tinha os cargos
todos que teve e muito menos teria sido director-geral da FESA – Fundação José
Eduardo dos Santos), deu-me a possibilidade de estudar, de ter os meus cursos,
de viver onde vivi e de ter o percurso de vida que tive. Eu estive do lado dos
beneficiados da hegemonia do MPLA.
A
minha associação entre o teu percurso e o MPLA é exactamente nesse sentido.
Exacto,
tenho de reconhecer que sim, que vim de lá de dentro. Mas nunca frequentei
nenhum Comité de Acção do Partido (CAP), nunca me envolvi em nenhuma actividade
partidária. Aliás, desde o momento que comecei a pronunciar-me sobre a vida em
sociedade, através da música, sempre o fiz com uma mensagem crítica. De que o
país não está fixe, que não vamos lá assim. Sempre fui um bocado, não a ovelha
negra, não é por aí, mas sempre tive uma perspectiva crítica sobre o país. Que
num primeiro momento era tolerada, se calhar até para mostrar que havia esse
espaço. Mas nunca fui conivente, nem solidário com a realidade. Sentia-me
angustiado por não fazer mais e achava que a música não era suficiente.
Curiosamente,
JES associou o vosso caso à purga que se iniciou no dia 27 de Maio de 1977 e
que foi um problema interno do MPLA. Ele próprio construiu uma ligação interna
entre vocês e o MPLA. Acreditas que o teu activismo e a tua história pessoal
pode, de forma indirecta, apressar o surgimento de um debate interno sobre a
liderança e destapar algumas vozes críticas, que existem, mas que a direcção do
partido se esforça por apagar?
Gostava
de acreditar nisso… Mas sinceramente falta ver quem são as vozes críticas que
referiste. Obviamente que temos o mais-velho Kasesa [Mário d’Almeida,
ex-ministro da Saúde e ex-deputado], que de vez em quando escreve umas coisas
bem mordazes no Novo Jornal, temos há alguns anos o Marcolino Moco ou o Silva
Mateus. Sabemos que antes das últimas eleições também o mais-velho Ambrósio
Lukoki levantou-se, sozinho, no meio daquela gente toda, para contestar JES.
Mas são poucos.
Nos
últimos dias, segundo algumas notícias, terá havido um encontro entre o grupo
parlamentar do MPLA e Isabel dos Santos, por causa da sua nomeação para a
Sonangol. E a reacção dos deputados não terá sido totalmente pacífica.
Era
fixe começar a ver quem são essas pessoas. Claro que há pequenos indícios de
insatisfação, mesmo no MPLA. Ainda recentemente foi lançado um livro sobre o
Agostinho Neto e a Alexandra Simeão, uma voz activa nas críticas à governação,
foi convidada para estar presente. Creio, apesar de não ter a certeza absoluta
porque não estava lá, que a própria Maria Eugénia Neto acabou por fazer um paralelismo
entre a luta de libertação e a nossa detenção. Estas pequenas coisas são
grandes coisas. Há rupturas que começam a ser mais difíceis de esconder. Ainda
bem que é assim, a unanimidade permanente é completamente anti-natural e
anti-democrática.
O
que sentiste quando JES fez a comparação com o 27 de Maio, um episódio trágico
e violento que até hoje não está bem resolvido?
Ele
também desempenhou algum papel durante esse período e safou-se por causa do
papel que teve. Quanto à comparação entre o nosso caso e o 27 de Maio, feita
por JES, a única coisa que me ocorreu é que, pronto, tinha sido dado o sinal de
condenação. A voz dele é a voz de comando e nós tínhamos de ficar presos. Foi a
minha primeira leitura – achei que foi aberrante e vergonhoso. Depois fiquei a
pensar que aquilo não era para nós mas antes um alerta interno, para o interior
do MPLA.
Em
que sentido?
A
mensagem era do género: “se estes miúdos não fizeram nada e estão naquela
situação, então pensem bem o que vos pode acontecer”. Fiquei na dúvida, talvez
o objetivo fosse interno e também externo. Só JES poderá dizer. Às vezes parece
que está a perder algumas faculdades, ainda que eu não tenha grandes dúvidas
sobre a sua inteligência. A gente percebe que é uma pessoa hábil, estratega e
com muita astúcia. Mas ficou tantos anos no poder, a ser adorado, a promover a
própria adoração, que já não sabe bem para onde se virar e não se adaptou aos
sinais dos tempos. E agora parece que o factor saúde não está muito bem.
Gostava de vê-lo sair por cima, gostaria que assim acontecesse, e há sempre
essa possibilidade.
O
que vais fazer agora, depois da entrevista e depois de alguns meses na prisão?
Não
posso sair do país mas hoje, por exemplo, vou ver o meu sogro. Há um ano que
não saio de prisões, apesar de reconhecer que estar em casa, em preventiva, é
uma prisão bastante melhor. Sou bué caseiro mas quero passear um bocado – e
quero a minha bicicleta de volta.
Miguel
Gomes (texto) – Rede Angola - Ampe Rogério (fotos)