Martinho Júnior, Luanda
1
– O mês de Setembro, que em Angola tem como dedicação e referência a abordagem
multifacetada da complexa personalidade do camarada António Agostinho Neto, 1º
Presidente de Angola, está a chegar ao fim.
Este
ano multiplicaram-se as iniciativas à volta da sua memória, até por que a
Fundação António Agostinho Neto esmerou no seu próprio programa, (a Fundação
perfez 10 anos de existência).
As
abordagens multiplicaram-se e foram-se repercutindo na informação pública e nas
redes sociais, com tendência para maior evocação da sua poesia.
Duma
forma geral há um importante esforço para se transmitir às novas gerações um
conjunto muito alargado de ensinamentos resultantes da vida do camarada
Agostinho Neto e, na perspetiva de Angola, de sua incontornável experiência de
luta.
2
– O contraditório à sua personagem foi sobretudo assumido no exterior, num
centro difusor como é Portugal, por Carlos Pacheco (acerca do homem político) e
por Agualusa (acerca do poeta).
No
que diz respeito a Carlos Pacheco muitas observações já foram sendo produzidas,
mas parece-me ser de realçar sobretudo uma insuficiência básica (ou
propositada?) na sua produção dita“histórica”: ele faz uma leitura a partir do
Arquivo existente na Torre do Tombo, profundamente sustentado nos documentos
das autoridades coloniais, incluindo da PIDE/DGS… sem querer ter o cuidado
mínimo de confrontar com outras fontes!…
O
resultado no meu entender, na abordagem do homem político que foi Agostinho
Neto, é ele assumir, enquanto “fazedor de história”, a alavanca duma
espécie de “revivalismo pidesco” em pleno século XXI, cristalizada
que está a sua personalidade no ambiente que viveu durante o próprio
colonialismo…
Julga
assim que está a ser muito útil (sem dúvida que é em relação a correntes “revivalistas” que
têm vindo a despontar com os sentidos nas “novas” correntes,
motivadas a partir também do exterior de Angola), pelo que a explicação põe a
nu o seu inveterado oportunismo de salão!
Quanto
ao escritor Agualusa, tem sido perentório em considerar Agostinho Neto como um
poeta menor, pois considera que o facto de não ter uma trilha de formação com
base nos clássicos da literatura, diminui o seu estro e as formas poéticas de
sua expressão…
É
o império que procura manipular o campo das atuais contradições por si mesmo
forjadas!...
3
– Creio que quer um, quer o outro, se estão a aproveitar de serem muito poucos
aqueles que chamam a atenção para o facto do camarada Agostinho Neto ser
efetivamente um homem que, tendo-se dedicado por inteiro à Luta Armada do
Movimento de Liberação em África por via do MPLA (contra o colonialismo, contra
o “apartheid” e contra algumas das suas sequelas), ter cultivado o
materialismo dialético aberto ao marxismo-leninismo e ao não-alinhamento, a
ponto de transmitir aos seus contemporâneos e aos vindouros, a substância
política e poética de sua própria trajetória, de sua própria obra e do próprio
Movimento de Libertação em África, nesses mesmos termos!
Como
nada que se passa em Carlos Pacheco, ou em Agualusa, tem tido implicância
pessoal alguma em relação a essa corrente histórica, é evidente que ambos se
socorrem à sua maneira e de acordo com suas próprias personalidades e
trajetórias, de interpretações que correspondem a autênticas abordagens de
salão, por que nenhum deles alguma vez se identificou com a Luta de Libertação
em África, alguma vez mexeu um pé nessa trilha sacrificada, difícil e quantas
vezes cheia de imponderáveis obstáculos, muito menos numa via próxima que fosse
do materialismo dialético marxista-leninista e não-alinhada!
É
claro que quando advogam os direitos humanos, jamais assumem que foi o
Movimento de Libertação em África nesse caminho trilhado que trouxe ganhos
incomensuráveis em benefício do resgate de povos que foram oprimidos com
escravatura, colonialismo e “apartheid” até bem dentro da segunda
metade do século XX…
Os
direitos humanos que advogam, foram formatados pelos mesmos interesses e
conveniências que instrumentalizaram colonialismo e “apartheid”: no seu
verbo e na sua escrita autopromovem-se como fatores de progresso, quando são
afinal atávicos fatores de evidente retrocesso.
Espreitaram
o momento para tecer essa espécie de considerações que têm manifestado em
relação a Agostinho Neto com o fito de integrar um propositado espaço
contraditório perfeitamente identificável na sua orientação e nos seus
propósitos imperialistas, sabendo também de antemão que são poucos os que
perfilham hoje a mesma ideologia que o camarada Agostinho Neto, mais ainda, que
se manifestem interessados em defender sua imagem integral com os mesmos
argumentos vitais que ele assumiu então!
Se
em relação a Carlos Pacheco estamos conversados por que é um homem do passado e
duma espécie em vias de extinção, em relação a Agualusa haverá muito mais a
dizer, inclusive em função de seus correntes alinhamentos doutrinários,
ideológicos e sócio-políticos, a favor dos interesses, conveniências e
correntes identificadas com a hegemonia unipolar…
4
– Não foi fácil gerar e gerir um Movimento de Libertação moderno e Não-Alinhado
em África, nem sob o ponto de vista meramente geo estratégico, nem sob o ponto
de vista doutrinário-ideológico e de prática, face à complexidade de situações
que se colocavam em vários patamares de confrontação, uns mais visíveis que
outros!
Efetivamente
a Luta Armada de Libertação em África antes da independência de Angola,
confrontava-se desde logo não só com o colonialismo, mas também com a
multiplicidade de esforços e apoios de toda a ordem que contribuíram para a
sobrevivência do colonialismo devidamente integrado e enquadrado no campo
capitalista do império, até à implosão do sistema fascista e colonial
português, com o advento do Movimento das Forças Armadas.
Era
o campo capitalista que alimentava colonialismo, o “apartheid”, as opções
neocoloniais e o próprio império que desde a IIª Guerra Mundial vinha a
consolidar os alicerces de seu projeto de globalização.
Muitos
dos que produziam esses esforços e esses apoios, sobrevivendo no espaço e no
tempo ao fim do colonialismo e à proclamação da independência de Angola,
prolongariam nos seus patamares e espaços geopolíticos eminentemente capitalistas,
a proliferação de trincheiras contra o progresso e a liberdade, manipulando e
injetando seu estro, criando múltiplos obstáculos, recorrendo quantas vezes a
orientações sobretudo emanadas a partir da África do Sul sob a égide do “apartheid”,
de países componentes da União Europeia, ou dos Estados Unidos, sempre com o
fito de perpetuar seus interesses, suas conveniências e as expressões que se
foram enquadrando nos processos típicos da fluência da hegemonia unipolar
adaptados a África e vividos na região!
Muitas
vezes também no campo socialista houve divisões e hesitações que beneficiaram
os esforços do campo capitalista e da construção da hegemonia unipolar!
5
– Quando assumiu a liderança do MPLA, Agostinho Neto marxista-leninista e
não-alinhado teve de se ver com uma corrente que não admitiu na altura os
termos doutrinários, ideológicos e sócio-políticos conformes aos que seguiam
seu curso nos países socialistas e nos de vanguarda do Movimento Não Alinhado
(unindo seus esforços em confluência com a URSS), entrando em rutura com esse
campo, que por seu turno se confrontava com o campo capitalista.
Esses
acontecimentos divisionistas desenvolveram-se ao longo dos primeiros anos da
década de 60 do século passado…
A
República Popular da China entrou em rutura com a URSS e internamente, no MPLA,
houve a imediata repercussão nos posicionamentos da corrente de Viriato da
Cruz, o que coincidiu com os reflexos também dessa cisão no contexto africano e
no então Zaíre, onde o MPLA tinha instalado suas estruturas.
A
afirmação duma vanguarda progressista no MPLA teve então de ser feita sobre
brasas, com importantes custos humanos, por que de outro modo seria a
fragilização do próprio MPLA como uma organização moderna de Luta de Libertação
Nacional, que cairia na vulgaridade submissa dum etno-nacionalismo, como era a
UPA/FNLA, sem que em África houvesse inteligência e capacidade suficiente de
manobra para contrariar a tendência para a confusão e a divisão.
O
carácter neocolonialista do poder instalado na então Leopoldville, o carácter
etno-nacionalista que instrumentalizava a UPA/FNLA a ponto de a tornar
vulnerável à inteligência norte-americana (e até aos interesses e manipulações
do colonialismo português) e o carácter da dissidência de Viriato da Cruz no
âmbito da rutura maior do campo socialista, fragilizou o MPLA que foi expulso
do Zaíre, afastado da fronteira com Angola (próximo possibilitaria levar a cabo
a guerrilha de modo muito mais eficaz, no quadro dos pressupostos da sua Luta)
e sujeito a uma prova de fogo que implicou a procura urgente em termos de
sobrevivência de muitos dos seus dirigentes e quadros, dando o salto para a
outra margem do rio Congo.
Salvou
a Luta de Libertação Nacional, nessa época de “Vitória ou Morte”, o MPLA
liderado pelo marxista-leninista e não-alinhado Agostinho Neto e a existência
dum governo progressista instalado no poder em Brazzaville, do outro lado do
rio Congo e face a Leopoldville, assim como o fato de Brazzaville ser àquela
época, a par de Dar es Salam, um centro privilegiado de inteligência da também
não-alinhada revolução cubana em África, mobilizados que já estavam por outro
lado os esforços cubanos no apoio ao Movimento de Libertação em 1965, desde
logo na perspetiva da passagem pelo terreno duma guerrilha sob a liderança do
próprio Che (apesar da rápida deriva neocolonial do Zaíre, depois do
assassinato de Patrice Lumumba)!
Chegar
a Brazzaville significava substantivamente para o MPLA uma vitória… ficar em
Leopoldville seria a morte!
Quantos
terão pago com a própria vida a impossibilidade de atravessar o rio Congo?
O
que isso terá implicado na passagem à clandestinidade de muitos membros e
simpatizantes do MPLA no Zaíre?
Quanto
essa prova de vida não contribuiu para o fortalecimento interno da direção de
Agostinho Neto no reforço do Movimento de Libertação em África?
Quanto
da humildade do Che no seu depoimento “passajes de la guerra
revolucionaria: Congo”, não terão propositadamente escondido a coragem e a
inteligência da Revolução Cubana em solo africano?
Simultaneamente,
o empenhamento da inteligência cubana em Dar es Salam e em Brazzaville (em
função da Iª e da IIª colunas do Che) reforçaria a sobrevivência e o imediato
empenhamento do MPLA, ainda que ficasse barrada toda a fronteira do então Zaíre
com Angola: havia desde logo a possibilidade de Cabinda e, ainda que com outro
tipo de constrangimentos, a abertura do esforço da Frente Leste do MPLA!
Se
a doutrina do MPLA sob a liderança de Agostinho Neto e da revolução cubana sob
a liderança do Comandante Fidel, fosse outra que não a marxista-leninista e
não-alinhada, se ambos não beneficiassem do apoio do governo progressista do
Congo em Brazzaville, como do governo progressista da Tanzânia, então quer o
colonialismo, quer o imperialismo teriam desde logo e nessa altura encontrado
plataformas muito mais fortes para defender os seus próprios interesses e
conveniências em toda a região, em prejuízo da Libertação do Continente
africano!
A
20 de Junho de 1968, a OUA finalmente reconhece o MPLA como único representante
e organização combatente do povo angolano retirando na altura todo o apoio à
FNLA…
6
– Posteriormente foram ainda, quer o carácter marxista-leninista e não-alinhado
de Agostinho Neto, quer o empenhamento dos apoios progressistas que o MPLA
beneficiava, decisivos para fazer face a uma nova crise do MPLA, com o
surgimento praticamente em simultâneo da Revolta Ativa e da erupção da fação de
Daniel Chipenda, entre 1972 e 1974.
Na
desesperada tentativa de neutralizar a guerrilha do MPLA instalada no leste de
Angola, os serviços de inteligência dos países ocidentais (incluindo o
português e o sul africano do“apartheid”), das multinacionais mineiras e do
cartel dos diamantes, instrumentalizaram e“moldaram” o próprio Presidente
Kenneth Kaunda da Zâmbia, levando-o a que ele procurasse a todo o custo alterar
a direção do MPLA, substituindo o marxista-leninista e não-alinhado Agostinho
Neto por um dirigente dócil (agente) que correspondesse aos seus
desígnios!
A
própria URSS (vulnerável ao “lobby” dos minerais), teria apoiado
Daniel Chipenda nesse contencioso contra o camarada Agostinho Neto…
Não
o haviam conseguido em Leopoldville e por isso tentavam desesperadamente em
Lusaka (o tempo esgotava-se para alguns integrantes dos processos capitalistas
na África Austral), recorrendo a novos canais de acesso ao alvo.
Mais
uma vez o Movimento de Libertação moderno correu o risco de se tornar num
etno-nacionalismo, conforme se comprovou pela própria trajetória de Daniel
Chipenda e dos que o seguiram: começaram por integrar, falhados os propósitos
de Kenneth Kaunda, a UPA/FNLA, para depois virem a formar o Batalhão 32,
Batalhão Búfalo, das South Africa Defence Forces e começar por participar na “Operação
Savanah” na tentativa da tomada de Luanda a fim de proclamar a
independência a 11 de Novembro de 1975!...
Seria
também aí, com essa enorme contrariedade tornada internamente desafio, que os
membros do MPLA encontraram psicologicamente forças para proclamar as Forças
Armadas Populares de Libertação de Angola!
Esse
foi um primeiro ato de heroicidade das FAPLA: a sua própria proclamação num
ambiente tão hostil, sob o peso e o olhar das inteligências capitalistas e
imperialistas!
Mesmo
os mais relutantes países socialistas, acabariam por compreender e voltar a apoiar
as razões do carácter e conduta de direção do camarada António Agostinho Neto,
com a República Popular da China a dolorosamente ser obrigada a comprovar os
seus equívocos em relação a Mobutu, a Holden Roberto, a Daniel Chipenda e a
Savimbi, quando descobriu os papéis da CIA e do “apartheid” na tutela
dos etno-nacionalismos angolanos, expostos e confrontados a 11 de Novembro de
1975!...
Mesmo
assim isso não seria revelador do essencial: a República Popular da China
integrou “o mercado” nos seus procedimentos internos e de relacionamento
externo… até hoje!
7
– Foi toda essa linha de pensamento e ação que animou os primeiros anos da
República Popular de Angola, ao longo de praticamente uma década, (de 1975 a
1985), uma história que aliás está toda devidamente por contar, aliás como dos
anos de 1985 até nossos dias!
Há
que considerar todavia importantes conclusões e entre elas realço:
-
Que o MPLA, pela sua própria experiência, foi obrigado por vontade própria a,
por via do marxismo-leninismo e não-alinhamento, assumir a Luta contra o
colonialismo, contra o“apartheid” e contra as suas sequelas
etno-nacionalistas vocacionadas para o neocolonialismo;
-
Que o MPLA ainda pela sua própria experiência, foi por tabela assumindo
capacidades anti-imperialistas e ao mesmo tempo anti-divisionistas, por que
foram vínculos capitalistas que utilizaram instrumentos em toda a região, no
sentido de criar divisões internas e obstáculos de toda a ordem para
neutralizar a direção marxista-leninista e não-alinhada que tinha António
Agostinho Neto à cabeça.
-
Que essa herança é um património antropológico, histórico e sócio-político
inspirador e inesgotável para as presentes e futuras gerações, tendo em conta
que a vocação socialista não teria que ser assumida apenas no quadro da Luta
Armada de Libertação Nacional (e contra o“apartheid” e respetivas
sequelas), mas também num quadro de paz, qualquer que fossem as vulnerabilidade
e os obstáculos que se viessem a encontrar sob a pressão bruta ou em estilo “soft
power” das políticas neoliberais correntes que integram o pacote de
globalização da hegemonia unipolar!...
Se
o materialismo dialético, marxista-leninista e não-alinhado foi o catalisador
para levar Angola à independência e à soberania fora do âmbito neocolonial,
assim como à vitória sobre o “apartheid”, não é já numa situação de paz
que o capitalismo neoliberal, (que antes atuou provocando o choque e agora atua
com o “soft power” da terapia), apagará da história a memória da
experiência do camarada António Agostinho Neto e do que ela representa para o
povo angolano e para África!...
Foto
da chegada a Luanda, do camarada Presidente António Agostinho Neto (4 de
Fevereiro de 1975).