quarta-feira, 14 de junho de 2017

BOAVENTURA | PARA UMA SOCIOLOGIA DAS AUSÊNCIAS



Por que, há cem anos, os círculos intelectuais e artísticos mais férteis da Europa eram cegos para o resto do mundo e a guerra em que mergulhariam. Como tudo isso se repete hoje

Boaventura de Sousa Santos | Outras Palavras | Imagem: Oswaldo Guayasamin, Ramblas

Estamos em 1913, no centro da vida cultural e política da Europa, um centro que passa fundamentalmente por Viena, Berlim, Praga, Paris, Munique e, à distância, Londres. As elites culturais alimentam incessantemente a sua ilustração nos jornais, folhetins e saraus literários, nas galerias de arte, nos concertos, nas tertúlias de café. Estão febrilmente a par da atualidade cultural e artística e seguem com alguma distância a atualidade política, bem menos excitante. Mas há, entre essas elites, jovens revolucionários que, na clandestinidade, vão preparando tempos novos. É um tempo que se imagina como sendo de enorme criatividade, de inovações e irreverências que rompem com as rotinas, as inércias, as convenções. É o novo século em plena efervescência da primeira juventude.

Discutem-se nomes, obras e acontecimentos, muitos dos quais ainda hoje, um século depois, nos são familiares. Kafka conclui a Metamorfose, uma das suas obras mais geniais, que será publicada em 1915. Sob pseudônimo, chega a Viena Josef Stálin mandado por Lênin para estudar a questão nacional, um tema a que os marxistas austro-húngaros tinham dedicado particular atenção. Como Stálin não sabe alemão, será Nicholai Bukharin, outro revolucionário russo no exílio, que o ajudará a ler a bibliografia. Este apoio não mereceu a gratidão de Stálin. 25 anos mais tarde, em 1938, Bukharin, sem dúvida um dos mais brilhantes intelectuais da revolução russa, será mandado assassinar por Stálin, no decurso dos infames processos de Moscou.

Pela mesma altura e na mesma cidade, um jovem pinta, sem qualquer qualidade, aguarelas de catedrais para vender a turistas. Chama-se Adolf Hitler. Sigmund Freud publica Totem e tabu, um livro em que a psicanálise é aplicada à antropologia social e cultural e que viria a ser tão influente quanto controverso. O conflito no interior do movimento da psicanálise entre Sigmund Freud e Carl Jung agrava-se e atinge proporções muito para além de um debate científico. Thomas Mann acaba de publicar A morte em Veneza, um romance que, segundo a intelectualidade da má língua, trai a secreta homossexualidade do romancista. A famosa pintura de Leonardo, Mona Lisa, é encontrada num hotel de Florença, depois de ter sido roubada do Louvre em 1911 por um “nacionalista” italiano.

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