quarta-feira, 10 de outubro de 2018

Brasil | Como dialogar — de verdade — com quem vota num fascista


Inútil argumentar racionalmente com os que optaram pela extrema direita: espalhar amor e acolhimento é nossa maior defesa agora

Débora Nunes | Outras Palavras*

Milhões de brasileiros, e sobretudo brasileiras, nos enchemos de alegria e emoção com as manifestações de 29.09.2018. O sentimento de estarmos juntos e sermos fortes contra o obscurantismo propiciou essa emoção prazerosa, essa euforia emancipada que a liberdade nos dá. As imagens inesquecíveis da maior manifestação feminista da história do mundo falam por si: milhões de pessoas desfilando em paz, cada uma portando em si mesma os traços de suas escolhas. Gente poeta e músico cantando suas rimas pela liberdade; gente preta ostentando sua cores, seus cabelos frizados, suas homenagens aos ancestrais; gente gay e sua bandeira multicolorida rindo e dançando pela euforia de serem quem são e se amarem sendo assim; gente de todo tipo se abraçando ao encontrar um companheiro ou companheira de lutas nesse Brasil que exigiu tanto de duas gerações pra restabelecer a democacia e sair da semi-escravidão. Lindo de ver pra nós que estamos nesse desafio cotidiano de sermos nós mesmos, de pagar o preço de viver como acreditamos ser o certo, de buscarmos profundamente a igualdade e a emancipação. Sobretudo nós, mulheres.

Mas como nos viram aqueles que ainda não declararam sua autonomia, nem sentiram o sabor da liberdade de serem quem são? Olharam pra nós com medo. Viram o perigo de que os valores tradicionais “da família” pudessem ser abalados inclusive em suas casas. Viram nossos sorrisos, beijos e abraços como “libertinagem” confrontando seus próprios desejos escondidos de serem espontâneos. Viram aquela massa de mulheres botando por terra o establishment, o “modo normal de ser”, como algo de desestruturador de suas vidas. Essa vida que buscam manter intocável, mesmo que doa, com medo da incerteza do novo, com medo da liberdade.

A liberdade causa medo porque significa também responsabilidade, significa ter que estar à altura do que virá, sem poder controlar. A corrida em busca de um “pai severo” que livre os que têm medo da incerteza fez as intenções de voto para o candidato da direita subir. Os argumentos que envolvem o comunismo, a Venezuela, Cuba, os “ladrões do PT” são só uma desculpa, na maior parte das vezes. Muito pouca coisa, racionalmente, poderiam fazer as pessoas terem medo de um governo do PT, cujas escolhas de aliança com as elites foi oposta àquela de Chavez, de confronto total.

Quando uma criança tem medo de um monstro imaginário atrás da porta, o abraço da mãe, ou pai, é muito mais efetivo que a frase “não tem monstro nenhum, filho”. Não adianta argumentar racionalmente com esses que resolveram votar na extrema direita. É muito mais uma necessidade de se sentirem protegidos e amados, sem pagar o preço da responsabilidade pelos próprios atos. Não deixar que essa onda de medo atinja a nós mesmos e espalhar amor e acolhimento é nossa maior defesa agora. Reforçar o “campo mórfico” da compaixão em face do medo dos outros, vibrando empatia pelas fraquezas tão humanas de quem tem medo é mais poderoso que esbravejar contra o que nos ameaça. Vamos conversar calmamente com quem está confuso, confiar nas vitórias que já tivemos até aqui e manter a paz de espírito para vencer. O que acontecer nos encontrará fortes e dispostxs a defender a liberdade, a igualdade e a fraternidade, valores universais destinados a ganhar, como nos mostra a História.

*Inês Castilho - Jornalista, cineasta e pesquisadora, integra o corpo editorial de Outras Palavras, foi editora do jornal Mulherio, realizadora dos filmes de curta-metragem "Mulheres da Boca" e "Histerias" e cofundadora do Nós Mulheres, primeiro jornal feminista de São Paulo.

- Publicado em 7 de Outubro de 2018

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