sexta-feira, 15 de junho de 2018

USA e UE em Confronto, mas Inseparáveis contra a Rússia e contra a China


Manlio Dinucci*

Neste período de evolução acelerada das posições internacionais, é de particular importância, não se deixar ludibriar por este ou aquele elemento, mas conservar o conjunto dos elementos no seu campo de visão. Ao observar ao mesmo tempo, o G7, a NATO e a OCS, o géografo Manlio Dinucci, salienta a direcção escolhida pela potências ocidentais.

Se bem que o G-7 se divide em virtude da guerra aduaneira, esses países litigantes reagrupam-se, fortalecendo a NATO e a sua rede de afiliados. A proposta táctica de Trump de restabelecer o G-8 - destinada a vigiar a Rússia como um G-7 + 1, afastando-a da China - foi rejeitada pelos líderes europeus e pela própria União Europeia, que temem ser surpreendidos por um acordo Washington/Moscovo.

Pelo contrário, esse projecto foi aprovado pelo novo Primeiro Ministro italiano, Giuseppe Conte, definido por Trump como “um rapaz corajoso” e convidado para a Casa Branca. No entanto, a estratégia permanece comum. As últimas decisões tomadas pela NATO, cujos membros principais são os Estados Unidos, o Canadá, a Alemanha, a França, a Grã-Bretanha e a Itália, além do Japão como parceiro, ou seja, todas as potêncas do G-7, confimam esse facto.

A reunião dos 29 Ministros da Defesa (em representação da Itália, Elisabetta Trenta, MoVimento 5 Stelle) em 7 de Junho, decidiu por unanimidade: 

- reforçar a estrutura de comando nas missões contra a Rússia, aumentando o pessoal em mais de 1200 unidades; 

- criar um novo Comando Atlântico conjunto, em Norfolk, nos EUA, contra “submarinos russos que ameaçam as linhas de comunicação marítima entre os Estados Unidos e a Europa”; 

- estabelecer um novo Comando Logístico, em Ulm, na Alemanha, como “dissuasão” contra a Rússia, com a tarefa de “mobilizar as tropas mais rapidamente através da Europa, em qualquer conflito”.

A “mobilidade militar” está no centro da cooperação NATO/UE, que será reforçada através de um novo acordo em Julho.

Em 2020, a NATO instalará na Europa, 30 batalhões mecanizados, 30 esquadrões aéreos e 30 navios de combate, disponíveis em 30 dias ou ainda menos, contra a Rússia. Para este fim, conforme solicitado pelos EUA, os aliados europeus e o Canadá aumentaram as despesas militares em 87 biliões de dólares desde 2014 e estão empenhados em aumentá-las. A Alemanha elevá-la-á, em 2019, para uma média de 114 milhões de euros por dia e planeia aumentá-la em 80% até 2024.

Se bem que a Alemanha, a França, a Grã-Bretanha, o Canadá e a Itália, reunidos no G-7, no Canadá, disputem as taxas aduaneiras com os EUA, de facto, na Europa participam sob o comando USA no exercício Saber Strike que, mobiliza 18.000 soldados de 19 países e decorre de 3 a 15 de Junho, na Polónia e no Báltico, próximo do território russo.

Esses mesmos países e o Japão (os outros seis membros do G-7) participarão no Pacífico, sempre sob comando USA, no RIMPAC 2018, o maior exercício naval do mundo numa missão contra a China. Nestes exercícios de guerra da Europa no Pacífico, participam, pela primeira vez, forças israelitas. As potências ocidentais, divididas por diversos interesses, fazem uma frente comum para manter a todo custo - e cada vez mais, a guerra - o domínio imperial do mundo, posto em desequilíbrio pelo aparecimento de novas questões estatais e sociais.

No mesmo momento em que no Canadá, o G-7 se dividia sobre a questão das taxas aduaneiras, a China e a Rússia estipulavam novos acordos económicos em Pequim. A China é o principal parceiro comercial da Rússia e esta é o primeiro fornecedor de energia da China. O intercâmbio entre os dois países aumentará este ano para cerca de 100 biliões de dólares. A China e a Rússia cooperam no desenvolvimento da Nova Rota da Seda em 70 países da Ásia, Europa e África.

Esse projecto - que contribui para “uma Ordem Mundial Multipolar e para relações internacionais mais democráticas" (Xi Jinping) - tem a oposição quer dos EUA, quer da União Europeia: 27 dos 28 Embaixadores da União Europeia, em Pequim (excepto a Hungria), afirmam que o projecto viola o comércio livre (free trade) e visa dividir a Europa.

Em crise não está só o G-7, como também a Ordem Mundial Unipolar imposta pelo Ocidente.

Manlio Dinucci* | Voltaire.net.org | Tradução Maria Luísa de Vasconcellos | Fonte  Il Manifesto (Itália)

*Geógrafo e geopolítico. Últimas publicações: Laboratorio di geografia, Zanichelli 2014; Diario di viaggio, Zanichelli 2017; L’arte della guerra / Annali della strategia Usa/Nato 1990-2016, Zambon 2016.

Na foto: Em 8 de Junho de 2018, em Bruxelas, os membros da NATO (incluindo 6 membros do G7) muniam-se de novos meios para neutralizar o desenvolvimento da Rússia. Vemos aqui, o General francês, Denis Mercier e o Secretário da Defesa dos EUA, General Jim Mattis. Ao mesmo tempo, em Québec, os membros do G7 degladiavam-se devido aos direitos aduaneiros.

O curioso caso do silêncio da esquerda sobre Julian Assange


John Pilger e Dennis J Bernstein [*]

Numa comunicação recente entre Randy Credico (produtor de rádio e apoiante de Assange) e Adam Schiff (membro do Comité Judiciário da Câmara dos Representantes), o temor de Assange de prisão e extradição para os EUA foi confirmado pelo líder da histeria Russia-gate. 

Credico recebeu a seguinte resposta de Schiff após a reunião com a equipe do congressista, na qual Credico tentava ligar Assange a Schiff: "Nosso comité estaria desejoso de entrevistar Assange quando ele estiver sob a custódia dos EUA e não antes".

Dennis Bernstein conversou com John Pilger, um amigo próximo e apoiante de Assange em 29 de Maio. A entrevista começou com a declaração de Bernstein apresentada por Pilger no Fórum Esquerda no último fim-de-semana em Nova York num painel dedicado a Assange intitulado: "Russia-gate e WikiLeaks".

Declaração de Pilger 

"Há um silêncio entre muitos que se consideram esquerda. O silêncio é Julian Assange. Quando todas as falsas acusações caíram por terra, quando todas as falsificações sujas se mostraram ser trabalho de inimigos políticos, Julian levanta-se vingado como um dos que revelaram um sistema que ameaça a humanidade. O vídeo Dano Colateral, os registos de guerra do Afeganistão e do Iraque, as revelações do Cablegate, as revelações da Venezuela, as revelações dos email de Podesta ... este são apenas algumas das tempestades de verdade bruta que explodiram através das capitais das potências opressoras. A falsificação do Russia-gate, a conivência de uma media corrupta e a vergonha de um sistema legal que persegue os que contam a verdade e não foi capaz de conter a verdade bruta das revelações da WikiLeaks. Eles não venceram, ainda não, e eles não destruíram o homem. Só o silêncio das pessoas boas permitirá que vençam. Julian Assange nunca esteve tão isolado. Ele precisa do vosso apoio e da vossa voz. Agora mais do que nunca é tempo de exigir justiça e o direito de livre expressão para Julian. Obrigado.

Dennis Bernstein: Continuamos a nossa discussão do caso de Julian Assange, agora na embaixada equatoriana na Grã-Bretanha. John Pilger, é bom conversar consigo outra vez. Mas é uma tragédia profunda, John, o modo como eles estão a tratar Julian Assange, este jornalista e editor prolífero de quem muitos outros jornalistas dependeram no passado. Ele foi deixado totalmente no frio para defender-se por si próprio.

John Pilger: Nunca vi algo assim. Há uma espécie de silêncio misterioso em torno do caso de Julian Assange. Julian foi inocentado de todos os modos possíveis e ainda está isolado como poucas pessoas estão nestes dias. Ele está desligado das próprias ferramentas da sua actuação, não lhe são permitidos visitantes. Estive em Londres recentemente e não pude vê-lo, embora falasse com pessoas que o tinham visto. Rafael Correa, o antigo presidente do Equador, disse recentemente que encarava o que estão agora a fazer a Julian como tortura. Foi o governo Correa que deu refúgio político a Julian, o qual foi agora traído pelo seu sucessor, o governo liderado por Lenin Moreno, o qual está outra vez absorvido pelos Estados Unidos conforme a tradição, com Julian como pião e vítima.

Deveria ser um "Herói constitucional" 

Mas realmente isto deve-se basicamente ao governo britânico. Embora ele ainda esteja numa embaixada estrangeira e realmente tenha a nacionalidade equatoriana, o seu direito de passagem para fora da embaixada deveria ser garantido pelo governo britânico. O Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias das Nações Unidas ( Working Group on Arbitrary Detention ) deixou isso claro. A Grã-Bretanha tomou parte numa investigação, a qual determinou que Julian era um refugiado político e que uma grande perversão da justiça lhe fora imposta. É muito bom que esteja a fazer isto, Dennis, porque mesmo nos media não convencionais há este silêncio acerca de Assange. As ruas do lado de fora da embaixada estão virtualmente vazias, mas deveriam estar cheias de pessoas a dizerem estamos consigo. Os princípios envolvidos neste caso são claríssimos. O número um é o da justiça. As injustiças feitas a este homem são legião, tanto em termos do falso processo sueco como agora no facto de que ele deve permanecer na embaixada e não pode deixá-la sem ser preso, extraditado para os Estados Unidos e acabar num buraco infernal. Mas é também acerca da liberdade de expressão, acerca do nosso direito a saber, o qual está cristalizado na Constituição dos Estados Unidos. Se a Constituição fosse adoptada literalmente, Julian seria realmente um herói constitucional. Ao invés disso, entendo a acusação que eles estão a tentar cozinhar como uma acusação de espionagem! É demasiado ridículo. Esta é a situação tal como a vejo, Dennis. Não é uma situação feliz, mas sim uma situação a que o povo deveria acorrer rapidamente.

DB: Os seu irmãos jornalísticos parecem-se com os seus perseguidores. Eles querem apoiar aberrações como o congressista Adam Schiff do Russia-gate e como Mike Pompeo, os quais gostariam de ver Assange na prisão para sempre ou mesmo executado. Como é que responde a jornalistas que actuam como perseguidores, alguns dos quais utilizaram o seu material para escrever notícias? Este é um tempo terrível para o jornalismo.

JP: Você está absolutamente certo. É um tempo terrível para o jornalismo. Nunca vi uma coisa assim na minha carreira. Dito isto, não é novo. Sempre houve um chamado media mainstream o qual realmente representa o grande poder nos media. Isto sempre existiu, particularmente nos Estados Unidos. O Prémio Pulitzer deste ano foi concedido a The New York Times e The Washington Post por caça a feiticeiras em torno do Russia-gate! Eles foram louvados pela "profundidade das suas investigações". As suas investigações não mostraram nem um fragmento de prova real a sugerir qualquer intervenção russa séria na eleição de 2016.

Tal como Webb 

O caso Julian Assange recorda-me o caso Gary Webb. Bob Parry foi um dos poucos apoiantes de Gary Webb nos media. A série "Aliança negra" de Webb continha evidência de que o tráfico de cocaína estava em curso com a conivência da CIA. Posteriormente Webb foi perseguido por colegas jornalistas e, incapaz de encontrar trabalho, acabou por cometer suicídio. O Inspector-Geral da CIA justificou-o posteriormente. Agora, Julian Assange está muito distante de atentar contra a sua própria vida. A sua resiliência é notável. Mas ele ainda é um ser humano e tem sido massacrado.

Provavelmente o que é mais duro para ele é a absoluta hipocrisia das organizações noticiosas – como The New York Times, o qual publicou "Registos de guerra" e "Cablegate" da WikiLeaks, The Washington Post e The Guardian, os quais tomaram uma vingança deliciosa a atormentar Julian. Mas a sua cobertura de Snowden deixou-o em Hong Kong. Foi a WikiLeaks que conseguiu tirar Snowden de Hong Kong e pô-lo em segurança.

Profissionalmente, considero isto uma das coisas mais repugnantes e imorais que já vi na minha carreira. A perseguição a este homem por enormes organizações de media que extraíram grandes benefícios da WikiLeaks. Um dos grandes atormentadores de Assange, Luke Harding de The Guardian, ganhou muito dinheiro com uma versão Hollywood de um livro que ele e David Lee escreveram e no qual basicamente atacam a sua fonte. Suponho que seja preciso ser psiquiatra para entender tudo isto. O meu entendimento é que muitos destes jornalistas estão envergonhados. Eles percebem que WikiLeaks fez o que eles deveriam ter feito há muito tempo e que é dizer-nos como os governos mentem.

DB: Uma coisa que me perturba muito é o modo como a imprensa corporativa ocidental especula acerca do envolvimento russo na eleição estado-unidense de 2016, que foi um golpe (hack) através de Julian Assange. Qualquer investigador sério desejaria saber quem seria motivado para isso. E ainda a possibilidade de que possa ser a dúzia ou mais de pessoas irritadas que foram trabalhar para a máquina da Clinton e aprenderam dali de dentro que o DNC [Comité Nacional Democrático] fazia tudo para se livrar de Bernie Sanders... isto não faz parte da narrativa!

Oitocentas mil revelações sobre a Rússia 

JP: O que aconteceu a Sanders e o modo como ele foi esmagado pela organização da Clinton, toda a gente sabe que isto é a notícia. E agora temos o DNC a processar a WikiLeaks! Há uma espécie de elemento farsesco nisto. Quero dizer, nada disto veio dos russos. Que a WikiLeaks de algum modo estivesse na cama com os russos é ridículo. A WikiLeaks publicou cerca de 800 mil grandes revelações acerca da Rússia, algumas delas extremamente críticas do governo russo. Se você for um governo e fizer algo inconveniente ou estiver a mentir ao seu povo e a WikiLeaks obtiver os documentos para mostrá-lo, eles publicarão não importa quem seja você, seja dos Estados Unidos ou da Rússia.

DB: Randy Credico, devido ao seu trabalho e à sua decisão de dedicar uma série de artigos à perseguição de Julian Assange recentemente encontrou-se ele próprio sob ataque. Ele foi a um churrasco para a imprensa na Casa Branca e, depois de ter uma linda discussão com o congressista Schiff, ele gritou: "E sobre Julian Assange?" A sala estava cheia de reporters mas Randy foi atacado e arrastado para fora. Era como se toda a gente ali ficasse embaraçada ao reconhecer que um dos seus irmãos estava a ser brutalizado.

JP: Randy gritou algumas verdades. Isto é muito semelhante ao que aconteceu a Ray McGovern. Ray é um antigo membro da CIA mas um homem com princípios. Posso sugerir que agora ele é um renegado.

DB: Era histérico observar estes quatro guardas armados que se mantiveram a gritar "Pare de resistir, pare de resistir!" enquanto lhe batiam de modo infernal!

JP: Penso que a imagem de Ray a ser arrastado foi particularmente tocante. Estes quatro pesos-pesados, obviamente jovens mal treinados a tratarem Ray com grosseria, o qual tem 78 anos. Para mim houve algo extremamente emblemático quanto a isso. Ele enfrentou até ao desafio o facto de que a CIA estava prestes a entregar a sua liderança a uma pessoa que fora encarregada das torturas. É tanto chocante como surreal, o que naturalmente o caso Julian Assange também é. Mas o jornalismo real deveria ser capaz de penetrar o chocante e o surreal e contar a verdade. Há demasiado conluio agora, com todos estes desenvolvimentos sombrios e ameaçadores. É quase como se a palavra "jornalismo" estivesse a tornar-se deteriorada.

DB: Há certamente um bocado de conluio quanto a Israel. Assim, a palavra "conluio" é bastante apropriada.

JP: Esse é o conluio final. Mas é conluio através do silêncio. Nunca houve um conluio como este entre os EUA e Israel. Isto sugere uma outra palavra e esta é "imunidade". Há uma imunidade moral, uma imunidade cultural, uma imunidade geopolítica, uma imunidade legal e certamente uma imunidade dos media. Vemos o tiroteio sobre mais de 60 pessoas no dia da inauguração da nova embaixada dos EUA em Jerusalém. Israel tem algumas das mais perversas munições experimentais do mundo e eles dispararam-nas sobre o povo estava a protestar contra a ocupação da sua pátria e tentava recordar o povo da Nakba e o direito de retorno. Nos media isto foi descrito como "choques". Embora aquilo se tornasse tão mau que The New York Times numa edição posterior mudou a manchete da sua primeira página para dizer que Israel estava realmente a matar pessoas. Um momento raro, na verdade, em que a imunidade, o conluio, foi interrompido. Toda a conversa sobre o Irão e armas nucleares sem qualquer referência à maior potência nuclear no Médio Oriente.

DB: O que você diria acerca das contribuições feitas por Julian Assange nesta era de censura e covardia no jornalismo? Onde é que isto entra no quadro?

JP: Penso que representa algo de modo fundamental para a informação. Se remontar à época em que a WikiLeaks começou, quando Julian estava assente no seu quarto de hotel em Paris começando a montar tudo, uma das primeiras coisas que ele escreveu foi que há uma moralidade na transparência, que temos o direito de conhecer o que aqueles que pretendem controlar as nossas vidas estão a fazer em segredo. O direito a conhecer o que os governos estão a fazer em nosso nome – em nosso favor ou no nosso prejuízo – é o nosso direito moral. Julian sentia isso muito apaixonadamente. Houve momentos em que ele podia ter-se comprometido ligeiramente a fim de possivelmente ajudar na sua situação. Houve vezes em que lhe disse: "Por que você simplesmente suspende aquilo por um momento e concorda com isso?". Naturalmente, eu sabia antecipadamente o que seria a sua resposta e esta era "não". A enorme quantidade de informação que veio da WikiLeaks, particularmente nos últimos anos, representou um extraordinário serviço público. Eu estava a ler outro dia na WikiLeaks um telegrama de 2006 da Embaixada dos EUA em Caracas dirigido a outras agências na região. Isto foi quatro anos depois de os EUA tentarem livrar-se de Chavez através de um golpe. Ali se pormenorizava como a subversão deveria actuar. Naturalmente, eles vestiam isso como um trabalho de direitos humanos e assim por diante. Eu lia este documento oficial a pensar como a informação contida nele valia por anos da espécie de reportagem distorcida vinda da Venezuela. Também nos recorda que a chamada "intromissão" da Rússia nos EUA é apenas insensatez. A palavra "intromissão" não se aplica à espécie de acção implicada neste documento. Ela é a intervenção nos assuntos de outro país.

A WikiLeaks tem feito isso por todo o mundo. Ela dá às pessoas a informação a que elas têm direito. Elas têm o direito de descobrir a partir dos chamados "Registos de guerra" ("War Logs") a criminalidade das nossas guerras no Afeganistão e no Iraque. Elas têm o direito de descobrir acerca do Cablegate. Foi quando, numa observação da Clinton, soubemos que a NSA estava a reunir informação pessoal sobre membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, incluindo os números dos seus cartões de crédito. Você pode ver porque Julian Assange fez inimigos. Mas ele também deveria ter um enorme número de amigos. Isto é informação crítica pois ela nos diz como o poder funciona e nunca aprenderemos o suficiente acerca disso. Penso que a WikiLeaks abriu um mundo de transparência e deu substância à expressão "direito a conhecer". Isto deve explicar porque ele é tão atacado, porque está tão ameaçado. Para a grande potência o inimigo não são tipos do Taliban, somos nós.

DB: E quem pode esquecer a divulgação do filme "Assassinato colateral" de Chelsea Manning?

JP: Essa espécie de coisa não é incomum. O Vietname pretendia ser a guerra aberta, mas realmente não era. Não havia as câmaras em torno. É na verdade informação chocante mas ela informa o povo e devemos agradecer à coragem de Chelsea Manning por isso.

DB: Sim, e graças a isso ele ficou sete anos em confinamento solitário. Eles querem processar Assange e talvez enforcá-lo nas vigas do Congresso, mas e quanto a Judith Miller e The New York Times que põem o ocidente em guerra? São infindáveis os exemplos horrendos do que passa por ser jornalismo, em contraste com a admirável contribuição feita por Julian Assange. 

11/Junho/2018

[*] Dennis J. Bernstein: jornalista da Pacifica Radio Network, autor de Follow the Money e Special Ed: Voices from a Hidden Classroom, dbernstein@igc.org.

O original encontra-se em www.mintpressnews.com/silence-julian-assange/243665/

Este diálogo encontra-se em https://resistir.info/ 

Cuba: a Revolução saberá reinventar-se?


Em meio a sanções dos EUA e a furacões, novo governo precisa organizar fim do Estado todo-poderoso e da duplicidade de moedas. Mas como fazê-lo sem comprometer igualdade e conquistas sociais?

Felix Contreras, em Crônicas de Havana, nova coluna de Outras Palavras

Na mesa de trabalho do novo presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, um dos principais problemas é a corrupção administrativa, que ele apontou no fim de maio como “o principal inimigo da Revolução”. E acrescentou: “Não podemos conviver com esse fenômeno”.

Díaz-Canel tem nas costas outros grandes problemas: os sistemas de controle deficientes, ou quase inexistentes; a má seleção dos chefes, que não são feitas por sorteio ou curriculum, mas pela bênção do partido único. Aos grandes obstáculos para o Plano de 2018 somam-se agora os danos materiais das inundações no centro da ilha, logo que passou a tormenta subtropical Alberto.

O turismo, segunda fonte de ingressos de divisas (quatro milhões de visitantes ao ano), tem sido afetado pelo “recrudescimento das medidas do governo norte-americano”, que põe pedras no caminho de seus cidadãos interessados em viajar à ilha.

Mas há que lembrar que Cuba ainda está se recuperando dos danos feitos pelos furacões Irma e Matthew, em 2016 e 2017, e pelos limites à importação de matérias primas para a produção nacional. Um retrato dos problemas do turismo fica registrado neste pequeno detalhe: quase nunca há guardanapos nos restaurantes e, quando há, os garçons levam para casa como papel para o banheiro.

Quais são neste momento os principais investimentos que se fazem? No turismo, na Zona Especial de Desenvolvimento de Mariel, no transporte ferroviário, em energias renováveis e no Sistema Elétrico Nacional. Há que lembrar que Cuba não tem recursos naturais suficientes: seus rios são muito pequenos, tem pouco petróleo e sem a tecnologia para sua extração. Seus produtos de exportação são charutos, rum e níquel, e há cientistas que acreditam que a ciência e da técnica podem fazer crescer as exportações.

A população não tem senso, costume de poupança, joga e joga água e energia fora como se fossem lixo. O país ficou muitos anos numa economia paternalista, pendurada da União Soviética. Na rua ainda falam: ”Meu pai governo paga”. Lembre-se que hoje o preço do gás, da água e da energia é quase uma brincadeira, um pagamento simbólico, porque o Estado entra com subvenção.

Obviamente, subvenção usada como ferrramenta política, num país onde a política de salário é um problema – o salário médio é de 672 pesos cubanos, ou seja, 28 dólares. Pior, grande parte das aposentadorias é quase de fome, o que explica a grande população de idosos na rua ou oferecendo refeições.

Em 2016, o país entrou em recessão pela primeira vez em 23 anos, ao ver sua economia decrescer 0,9%. A ilha tem uma grande dependência energética dos combustíveis fósseis, por isso a procura febril de novas alternativas de abastecimento, após a forte redução dos envios de óleo cru que recebe subsidiado da Venezuela.

O problema com a água cresce dia a dia, chove muito pouco, mas já começou o plano de dessalinizar da água do mar, como parte da estratégia para enfrentar o déficit. O crescente problema da água é produto da variabilidade do clima, que vai e vem num galope pelo Caribe.

Reformas

Mas, Cuba tem bons cientistas, bom capital humano (tem 1,3 milhões de graduados universitários e boas instituições, num mundo em que o conhecimento passou de saber a mercadoria). Há muitos técnicos preparados para lidar com as características geográficas do país (o financiamento da ciência é tema prioritário), e com consciência sobre um futuro com menos chuvas, temperaturas mais elevadas e secas frequentes. É preciso imaginar um 2100 com redução de 37% da disponibilidade do potencial de águas.

Disso não sabem nada os turistas: a política informativa a respeito é pouca, quase invisível, os muitos brasileiros que visitam o país só têm a cabeça no mojito. Quando falo dessas coisas com meus amigos paulistas, eles abrem os olhos como se eu falasse um palavrão…

Muita gente acreditava que Raúl Castro, o criador do plano de mudanças, deixaria a presidência depois de acabar com a dualidade monetária – a existência de duas moedas, que causa enormes danos. Foi uma vitória voltar a reconhecer a grande necessidade dos capitais estrangeiros para o desenvolvimento econômico. Outro avanço foi colocar na cabeça das pessoas um socialismo alternativo.

Foram dez anos de governo de Raúl, com seu jeito lento, um pacote de transformações e uma atualização do modelo econômico e social cubano. O programa de reformas aberto pelo ex-presidente começou em 2008, pegou velocidade no começo de 2010 e tornou-se oficial no VI Congresso do Partido Comunista em abril de 2011, com o nome Alinhamentos da política econômica e social do Partido e a Revolução.

Mas a dualidade, a dupla moeda teve, ainda tem e seguirá tendo forte presença no debate político e econômico em todos os espaços da vida nacional. Em Cuba, há duas moedas: o peso cubano (CUP) e o peso conversível em dólares (CUC, que vale 24 CUP). A unificação monetária é a reforma mais importante e ineludível. Foi declarada objetivo nacional em 2013, mas não se definem datas para estabelecer o cronograma da mudança.

A sociedade cubana queixa-se da morosidade. Raúl afirmava, em dezembro do ano passado, que a reforma da moeda “já tomou tempo demais e não pode dilatar-se mais sua solução”. A principal questão é: como mudar a política monetária e não ferir a igualdade social, uma das grandes vitórias da revolução cubana?

Argentina: as garotas que desafiam o patriarcado


São multidão — muitas, com menos de vinte anos. Tomam as ruas. Exigem, batucam e dançam. Querem o direito ao aborto e o fim de um mundo governado por homens ricos e tristes

Reportagem do Coletivo Lavaca | Imagens: M.A.F.I.A |Tradução: Inês Castilho

Olhar o que se passa através dos olhos da geração que está abarrotando as ruas argentinas hoje é ao mesmo tempo uma tarefa simples e complexa. As jovens falam até pelas faces pintadas com purpurina, mas o que dizem é tão interessante que faz falta algo mais que aguçe a escuta para compreender o significado de cada palavra. Chiara, Laura e Angelica chegaram com uma dezena de companheiras do ensino secundário. Uma pintou a outra: os olhos, os lábios, as unhas ficaram verdes. Cada uma tem um lenço amarrado no pescoço, nos cabelos ou no braço. É o uniforme desta geração, advertiu Ofelia Fernández no recinto do Congresso.

Tomaram o trem, caminharam desde o bairro de Constitución e ao chegar à 9 de Julho se apropriaram, como todas, da avenida.

Vão cantando, vão de mãos dadas e vão contentes.

A chuva não as molha: as rega. Florescem a cada passo.

O frio não as congela. As faz arder.

Gritam cada vez mais forte e em cada batucada – que há por todos os lados – sacodem as cadeiras para dançar ao ritmo de um dia que elas estão tornando histórico, porque lhe impregnam com seu ritmo. Qual é ele? “Tem que se mexer”, respondem. “São dias importantes e você não pode ficar sentada. Está em jogo o nosso futuro e não podemos deixá-lo nas mãos de ninguém.” Quem responde é Chiara, séria.

De onde vêm? “Vivemos num subúrbio de Lomas, que está pior do que nunca porque as pessoas estão amargas, mal.” O que entristece o bairro? “As pessoas não têm nenhuma esperança.” Vocês têm? “Não sei se temos esperança, mas ao menos temos claro que as coisas precisam mudar e não vamos esperar que sejam mudadas pelos mesmos que fizeram todo esse mal.” A que responde é Laura. A quem se refere? Aos políticos, aos mais velhos, a sua família? “A todos. Minha família me apoia, mas eu digo para minha mãe que ela tem de fazer alguma coisa mais por si, que venha às manifestações, que são pelo bem de todas. Ela foi afastada do trabalho, está fazendo de tudo um pouco, e isso a cansa. Digo que se vier às marchas vai renovar as baterias, mas a entendo: não tem um grupo que a apoie e isso torna tudo mais difícil.

Nós estamos juntas o tempo inteiro, falando de tudo, apoiando-nos em tudo, e isso deixa a vida mais fácil. Nos dá força. Nos dá energia. Se uma cai, as outras a levantam.” O que faz com que caiam? “Eu fico pra baixo quando tornam tão difícil coisas que estão tão claras. Veja o que acontece hoje. Tem de ser muito careta para não se dar conta de que, se tanta gente vem aqui, com este clima, é porque o aborto legal não é uma moda, mas uma necessidade. Por que, então, não votam a lei? O que imaginam que vai acontecer se não a aprovarem? Querem que festejemos que se caguem de rir de nós? Às vezes penso que o fazem para provocar um desastre. Escuto os que falam das “duas vidas” e não sei se rio ou se choro. São cínicos: acreditam que não vamos nos dar conta de que a única coisa que lhes importa é que calemos a boca. E não se dão conta de que isso é impossível: nós não vamos mais nos calar.” Quem fala é Angélica.

As três têm 16 anos.

Quantas como elas há, hoje?

Dizer milhares é pouco.

Algumas sustentam cartolinas com frases que impactam.

“Existo porque resisto”

“A pornografia é a escola da violação”.

“Mulher, não gosto quando se cala.”

“Basta é basta.”

“Nos queremos vivas, livres e sem medo.”

Outras se abraçam para ocupar a amplidão da avenida Maio ao ritmo de uma coreografia de cancan.

Muitas procuram um lugar para entrar na coluna que ocupa mais de 15 quadras e, enquanto vêm passar bandeiras, organizações e palavras de ordem, escolhem seu lugar. Não por acaso, apesar de não estar à frente, a coluna da Campanha Nacional pelo Aborto legal, seguro e gratuito é a mais bem nutrida: mais de duas quadras, maioria de jovens, contidas por um tecido verde infinito que funciona como abrigo, mas também como convite: verde é sua cor.

Cantam que o patriarcado vai cair, que tirem seus comentários de nossos ovários, que não são nem suas nem asus [ni tuyas ni yuta] e que Não é Não. Essas demandas são as que unem as ativistas “soltas” e as manifestações artísticas que, ao longo da Avenida de Maio, denunciam a violência com a convicção de que elas próprias vão freá-la.

As ações comemorativas e agitadoras do Ni Una Menos começaram sábado em vários pontos do país. E mulheres de todas as coordenadas levantaram firmes seus lenços verdes. A mensagem segue sendo Basta, mas neste caso o pedido se dirige a um Congresso que deve representá-las e todavia não se pronuncia a favor. Essa catarata de concentrações que uniu províncias terminou hoje em frente ao Palácio Legislativo com uma maré que lhes lançou um só grito, que teve uma só cor: verde furioso.

Pedimos, assim, algo muito concreto: que o aborto seja legalizado.

As meninas cantam agora o que deve ser cantado: “Agora que estamos juntas/ agora que sim, nos veem.”

Vê-las é compreender.

Não são especiais, não são únicas, não são diferentes.
São.

E são muitas.

E estão dançando.

Vai cair.

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