Aos desequilíbrios financeiros já
conhecidos, somam-se três prováveis choques de abastecimento – todos gestados
pelos EUA. Agora, de nada adiantará inundar de dinheiro os mercados. Das
entranhas de uma crise, pode surgir outra maior
Noriel Roubini | Outras Palavras | Tradução: Antonio
Martins | Imagem: Robert Cenedella, Pence on Earth (2017),
detalhe
Há três choque negativos de
abastecimento que poderiam desencadear uma recessão
global em torno de 2020. Todos refletem fatores políticos que envolvem
relações internacionais. Dois envolvem a China, e os Estados Unidos estão no
centro de todos. Mais importante: nenhum deles pode ser aplacado pelas
ferramentas tradicionais de política macroeconômica contracíclica.
O primeiro choque potencial
deriva da guerra
comercial e monetária entre Estados Unidos e China, que ampliou-se no
mês passado, quando o presidente norte-americano, Donald Trump, ameaçou impor
tarifas adicionais às exportações chinesas e rotulou formalmente a China como
“manipuladora de moedas”. O segundo diz respeito à guerra fria de lenta
maturação entre EUA e China sobre tecnologia. É uma rivalidade com todas as
marcas de “Armadilha
de Tucídides”. A China e os EUA disputam entre si o domínio sobre as
indústrias do futuro: inteligência artificial (IA), robótica, 5G e outras. Os
EUA incluíram a gigante chinesa Huawei em sua lista de companhias estrangeiras
que representam, supostamente, uma ameaça à segurança nacional. Embora a Huawei
tenha se beneficiado de exceções temporárias, que lhe permitem continuar usando
componentes norte-americanos, o governo Trump anunciou, esta semana, que está
acrescentando 46 parceiras da Huawei à lista.
O terceiro grande risco
relaciona-se às fontes de abastecimento de petróleo. Embora os preços tenha
caído nas últimas semanas, e uma recessão desencadeada por uma guerra
comercial, monetária e tecnológica tenda a deprimir a demanda por energia a a
reduzir os preços, um confronto dos EUA contra o Irã poderia ter efeito oposto.
Se ele degenerasse em confronto militar, os preços globais do petróleo poderiam
disparar e provocar uma recessão, como ocorreu nas conflagrações anteriores no
Oriente Médio em 1973, 1979 e 1990.
Todos estes três choques
potenciais teriam efeitos estagflacionários, elevando o preço de bens de
consumo importados, componentes intermediários e tecnológicos, além da energia
– reduzindo, ao mesmo tempo, a produção, ao cortar cadeias internacionais de
abastecimento. Pior: o conflito movido pelos EUA contra a China já está
impulsionando um processo mais amplo de desglobalização, porque os países e
empresas já não podem contar com estabilidade de longo prazo nas cadeias
integradas de valor. À medida que o comércio de bens, serviços, capital,
trabalho, informação, dados e tecnologia tornar-se cada vez mais balcanizado,
os custos de produção global crescerão em todos os setores.
Além disso, a guerra comercial e
monetária e a competição tecnológica amplificarão umas às outras. Considere o
caso do Huawei, hoje líder global em equipamentos 5G. Esta tecnologia será em
breve a forma-padrão de conectividade para a infraestrutura civil e militar
mais crítica – para não mencionar os bens de consumo que estão conectados por
meio da emergente Internet das Coisas. A presença de um chip 5G implica que
tudo (de uma torradeira a uma máquina de café) poderia se converter num
aparelho de escuta. Significa que se a Huawei for amplamente vista como uma
ameaça à segurança nacional, também o seriam milhares de exportações de bens de
consumo chineses.
É fácil imaginar como a situação
atual poderia levar a uma implosão em grande escala do sistema global de
comércio. A questão, portanto, é se os formuladores de políticas monetárias e
fiscais estão preparados para um choque prolongado – ou mesmo permanente – de
abastecimento.
Na sequência dos choques de
estagflação dos anos 1970, estes formuladores apertaram as políticas
monetárias. Agora, porém os grandes bancos centrais, como o Fed
norte-americano, já estão praticando o afrouxamento das políticas monetárias,
porque a inflação e as expectativas de inflação permanecem baixas. Qualquer
pressão inflacionária de um choque de petróleo será vista pelos bancos centrais
como um mero efeito no nível de preços, mais que uma alta persistente da
inflação.
Ao longo do tempo, os choque de
abastecimento tendem a se converter em choque negativos de demanda, que reduzem
tanto o crescimento quanto a inflação, ao deprimirem o consumo e os investimentos.
Sob as condições atuais, os gastos das empresas nos EUA e em todo o mundo já
estão severamente deprimidos, devido às incertezas sobre a probabilidade,
severidade e persistência dos três choques potenciais.
Na verdade, à medida em que
empresas dos EUA, Europa, China e outras partes da Ásia reduziram os gastos de
capital o setor global de tecnologia, manufatura e indústria já está em
recessão. A única razão para isso não ter se traduzido em recessão global é que
o consumo privado permanece forte. Se os preços dos bens importados subir mais,
como resultado de qualquer um destes três choques de abastecimento, o aumento
da renda real (ajustada à inflação) disponível das famílias sofreria um choque,
o mesmo ocorrendo com a confiança dos consumidores, o que conduziria a economia
global a uma provável recessão.
Dado o potencial para um choque
negativo de demanda no curto prazo, os bancos centrais estão corretos ao
reduzir as taxas de juros. Mas os responsáveis pelas políticas fiscais deveriam
também se preparar para uma resposta de curto prazo. Um declínio agudo no
crescimento e na demanda agregada convidaria ao afrouxamento fiscal
contracíclico, para evitar uma recessão muito severa.
A médio prazo, porém, a melhor
resposta não seria uma acomodação aos choques de abastecimento, mas um ajuste a
eles, sem novos afrouxamentos. Afinal de contas, os choques de abastecimento
oriundos de uma guerra comercial e tecnológica seriam mais ou menos
permanentes, assim como a redução do crescimento potencial. O mesmo aplica-se ao
Brexit: deixar a União Europeia condenará o Reino Unido a um choque de
abastecimento permanente e, portanto, a um potencial de crescimento menor, a
longo prazo.
Tais choques não podem ser
revertidos por meio de políticas monetárias ou fiscais. Embora eles possam ser
geridos, no curto prazo, tentativas de mitigá-los permanentemente acabariam
levando tanto a um aumento da inflação quanto das expectativas de inflação, que
subiriam muito além das metas dos bancos centrais. Nos anos 1970, os bancos
centrais mitigaram dois grandes choques de petróleo. Os resultados foram o
crescimento, de forma duradoura, da inflação e das expectativas de inflação;
déficits fiscais insustentáveis e rápido crescimento da dívida pública.
Por fim, há uma importante
diferença entre a crise financeira global de 2008 e os choques de abastecimento
que poderiam atingir a economia global hoje. Como naquele ano houve
principalmente um grande choque de demanda, que deprimiu o crescimento e a
inflação, foi possível enfrentá-lo, de forma adequada, com estímulos monetários
e fiscais. Mas desta vez, o mundo estaria se deparando com choques prolongados
de abastecimento, que requiririam um tipo muito distinto de resposta política a
médio prazo. Tentar consertar o dano por meio de estímulos monetários e fiscais
de duração indefinida não seria uma opção inteligente.
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