José Soeiro | Expresso | opinião
Já quase tudo foi dito e ainda
assim vale a pena insistir. O caso de Cláudia Simões obriga-nos a olhar de
frente para muitos problemas graves por resolver no nosso país.
1. Por causa de um passe gratuito?
De tudo o que se conhece, choca
desde logo o nível de violência. Independentemente de tudo o resto - e já lá
vamos – como é possível que o facto de um miúdo de oito anos não levar consigo
um passe, que ainda para mais é gratuito, possa dar origem ao que se passou
depois? Uma intervenção daquelas com um fundamento desses – a ausência do passe
gratuito de uma criança – é tudo menos razoável e proporcional.
2. E se a Cláudia fosse outra?
É também por isso que é preciso
identificar que outras motivações estão na base do que aconteceu com Cláudia
Simões. Há uma investigação em curso para perceber o fio e a sequência dos
acontecimentos? Há. Mas também há coisas que sabemos sobre as características
do racismo estrutural, que se manifesta quotidianamente em tantos aspetos, do
emprego à habitação, da escola à saúde, no viés da ação policial, das decisões
judiciais ou no abuso da força, como lembrou Wilds
Gomes ou Susana
Peralta. E há perguntas que têm sido feitas como lanças, sobre o que
aconteceria noutras carreiras de autocarro, noutras zonas ou com outras cores
de pele. A atriz Cláudia
Jardim foi das que fez essas perguntas: “Somos duas Cláudias da
Amadora, com 42 anos e filhas pequenas. E se fosse eu naquele autocarro? A
história era a mesma? Não era. Sabemos bem que não era”.
3. Uma “queda”?
João Miguel Tavares resumiu num
artigo o argumento risível que a polícia invocou junto dos bombeiros
para justificar o estado em que Cláudia Simões se encontrava: é como se
determinados cidadãos tivessem “o hábito de cair quando a polícia está por
perto”. De acordo com o relato de Cláudia Simões, ela foi espancada no carro da
PSP, a caminho da esquadra, enquanto estava algemada e era insultada: “grita
agora sua filha da puta, preta, macacos, vocês são lixo, uma merda”. Os
polícias insistiram que foi o chão que espancou Cláudia. A lógica corporativa
de encobrimento tem sido, infelizmente, o padrão da própria instituição, que
inventa “escadas” e “quedas” de cada vez que se investigam agressões policiais.
Cabe à justiça, desta vez, fazer justiça.
4. O burlão do Chega que enterra
a polícia
Se nessas declarações os polícias
quiseram sacudir a acusação de a violência utilizada ter motivações racistas, o post feito
pelo Sindicato Unificado da Polícia (SUP), dirigido por um candidato do CHEGA,
Ernesto Peixoto Rodrigues, conhecido pelas suas intrujices
com dinheiro público e por ter faltado ao trabalho 83 dias seguidos (o
que lhe valeu uma aposentação compulsiva) só veio enterra-los. Se querem
inimigos da polícia, olhem para este sindicato e para as alarvidades que
escreve. Não há nada que manche mais a imagem de uma instituição do que esse
tipo de posições, que incitam ao ódio contra aquela mãe, que apostam na
animalização das vítimas para legitimar a violência e que parecem querer pôr a polícia
contra a segurança dos cidadãos.
5. Afinal, não se exerce a
autoridade?
Esse é o outro problema em cima
da mesa. A direção da PSP admitiu vir a encaminhar o tal post para o
Ministério Público, mas a sua obrigação não é só lavar as mãos e chutar para
cima, é impedir imediatamente comportamentos desse tipo. Como assinalou Daniel
Oliveira, a Polícia não pode autorizar que a selvajaria se instale no seu
seio. Se é uma instituição que tem na ordem e na hierarquia princípios que
reivindica, não pode ser permissiva perante a multiplicação de porta-vozes
paralelos e de comportamentos que põem em causa a sua credibilidade. Acabar com
as milícias dentro da PSP, combater a partidarização da polícia e a sua instrumentalização
pela extrema-direita, extirpar e expulsar quem tenha esse tipo de
comportamentos, impedindo que haja criminosos a usar a farda de polícias, deve
ser uma prioridade da direção nacional da PSP e do próprio Governo.
6. Não cair na armadilha
De cada vez que estes casos vêm a
público, sou interpelado sobre as condições laborais dos polícias. Por várias
vezes, a esquerda tem-se batido por carreiras justas e remunerações dignas para
todos os funcionários públicos, incluindo as forças de segurança, contra a
especulação imobiliária que faz com que pessoas deslocadas não tenham dinheiro
para arrendar casas decentes, pela redução dos horários ou pelo reconhecimento
do desgaste associado ao trabalho por turnos, que abrange muitas profissões,
incluindo estas, pelo investimento público capaz de dar condições aos serviços
e a quem neles trabalha. Esse debate está aliás a ser feito na discussão deste
Orçamento. Substituir as alianças sociais para melhorar as condições de
trabalho com o isolamento corporativo de defender comportamentos indefensáveis,
como o que aconteceu agora, é uma armadilha em que os polícias que zelam a sua
missão não podem deixar-se cair, porque estarão a dar um monumental tiro no pé.
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